INCOMUNICAÇÃO
Os livros dos uigures foram escritos para serem esquecidos. Há
três ou quatro especialistas em língua suméria. Uma tribo na
Ásia Central escreve seus livros sagrados nos ventres de
mulheres-anãs. Poucos são capazes de ler as mensagens ocultas
no interior das nozes. Sobre o que conversam as abelhas?
Nuvens serão letras de um alfabeto cabalístico? Os melhores
poemas ainda não foram escritos, disse para mim um asceta
tuaregue. Quem conhece um grande romancista da Lituânia? Há
indícios de vogais e consoantes em teus pequenos lábios. Um
miniaturista persa escreveu um longo poema épico numa pena de
faisão. Devotos de Kali em Nova York, Rio de Janeiro ou
Assunción recitam longas preces rituais no sânscrito do
Rig-Veda. Há poucos tradutores de Fernando Pessoa para o
etrusco. Acadêmicos ilustres discutem a situação da língua
portuguesa no mundo (seu ensino foi banido da Universidade de
Cambridge; prossegue em Oxford, junto com o finlandês e o
turco). Poemas são escritos contra as normas regulares da
fala; mastigamos impossibilidades, como forma de tradução do
ruído. Ou de resistência a formas habituais de decodificação.
Toda escrita quer perdurar, mas o tempo é feito de memória e
esquecimento; as ruínas e os pictogramas permanecem, talvez,
porque não atinamos os seus significados. Quando entendemos o
que um poema diz, ele já pode ser usado para embalar, com
eficácia, meio quilo do melhor salmão norueguês. |