ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

CARTAS DE BERLIM (II)

 

Simone Homem de Mello

 

15/07/07

Claudio, caro, esta Carta de Berlim será uma carta em trânsito. Ou melhor, será uma carta sobre a Baixa Renânia, pois acabo de tomar o trem de volta de Hombroich - aquela antiga base de mísseis da Otan habitada hoje por cientistas, poetas, compositores e músicos, à qual eu tinha me referido naquele breve ensaio introdutório aos poemas de Thomas Kling que traduzi).

Minto. Não é bem uma carta sobre a Baixa Renânia, pois nos últimos dias Hombroich era praticamente um enclave austríaco em meio à planície em torno de Neuss. É que vim para o encerramento de um colóquio de poesia organizado por Oswald Egger, poeta tirolês italiano de língua alemão (que também estou traduzindo), com uma série de poetas austríacos ou alemães de "ascendência" austríaca. "Ascendência" entra aspas, é claro, pois me refiro a uma filiação estética, ressaltando que os impulsos (que considero) mais inovadores na poesia (literatura?) alemã do pós-guerra vêm em grande parte desse país alpino. Ou talvez seja a minha (nossa) educação poética via Haroldo/Augusto que me aguce os olhos para as tradições barroca e de vanguarda moderna, especialmente marcantes na arte austríaca.

Fujo ao assunto. Não vou falar agora da obra dos poetas que acabaram de passar por Hombroich, algo que poderei fazer nas próximas Cartas de "Berlim". Dentro de um trem em movimento, é difícil de se concentrar em poesia; e assim, tomada pela paisagem que corre rápida, resgato a reflexão topográfica da minha última carta.

Não nada de mais plano que a paisagem da Baixa Renânia; nem a dos Países Baixos, pois - embora a topografia seja a mesma - estas sempre me dão uma impressão maior de profundidade, como se tivessem um ponto de fuga (torre de igreja, moinho) - ou talvez seja a perspectiva da pintura de paisagem flamenga e holandesa que filtre o olhar. E há pouco, ao percorrer a exposição do Instituto Heinrich Heine de Düsseldorf sobre a obra do renano Thomas Kling, que teria completado 50 anos seis semanas, acabei relendo (na vertical) alguns poemas, como Zinnen (Merlões), um texto que toma como motivo a torre da base de mísseis onde o poeta morou até morrer.

Seguem alguns versos, em tradução improvisada (aos solavancos do trem)

está a torre. o muro. cidade.

(...)

Henric van Veldeke sobe na torre., vista
Denteada. de
ouvido no ruído do vento
Adentro: rastejante a sitiar olhos.

Aqui em cima: corte de traquéia.
De
respiro babilônico, o assobio extra-
Ído . digamos
romano, diga-se
Médio alto alemão. força de vento
Seis. Henric van Veldeke

Respira. Henric respira da torre
-
Sobre centenas de torres -
Halitado
sobre cidade cintilante,
e escreve: Cartago
era grande
potência / A mais bem situada.

Mas tudo isso aqui agora antes é: o Reno.
Baixa Renânia! Vento circunda cidade de N.

(...)

Henric olha para baixo e o : Virgílio.
Henric da
torre da torre-linguagem
e viu:
aqui fica Cartago. (...)

De seu observatório, o poeta (um renano exilado em Viena e por fim náufrago na Renânia?) cruza a Eneida de Virgílio e a Eneida do poeta medieval alemão-holandês Henric van Veldeke, nascido não muito longe de Hombroich, nas imediações de Maastricht. Em meio à planície renana, o poeta faz o troubadour subir à torre (mais observatório que de marfim) para avistar a Cartago de Virgílio. E lembrando do recital dos poetas um dia antes, reunidos em torno da ausência de Thomas Kling, pensei que a paisagem alpina (refiro-me ao "relevo" sobre o qual discorri na última carta) transplantada para a planície renana: Barbara Köhler, leitora de Wittgenstein, relê Homero; o vienense Franz Josef  Czernin experimenta com sonetos e com a alquimia medieval dos quatro elementos; Ulf Stolterfoht faz de um subúrbio de Stuttgart (não muito longe da Áustria, portanto) palco de um acerto de contas literário com Helmut Heissenbüttel, Oskar Pastior, Emily Dickinson, entre outros.

Mas será que esta sobreposição de tempos e espaços se deve à lente de convergência da poesia? Ou será que (foi o que me perguntei durante minha caminhada ao longo de milharais até a estação ferroviária mais próxima:) "life imitates art"? É que os tiros reiterados que fui ouvindo ao longo do caminho não eram dos caçadores (agora é época de caça de veados), mas sim das chamadas schützenfeste, festas populares com rituais bastante militarizados que remontam aos grupos armados de cidadãos que se juntavam para defender as cidades medievais de saques. E no caminho, passei pelo Schloss Dyck, um castelo medieval do século XII (assim como a Eneida de Henric van Veldeke), entretanto com feições barrocas, construído sobre uma colina artificial e circundado por um fosso (era esta a fórmula de segurança máxima para os castelos de madeira construídos no século XII numa região plana e pantanosa como a Renânia) - no qual reconheci a correspondência mais próxima da base de mísseis, a apenas sete quilômetros de distância, de qualquer forma mais perto que Cartago.

O que me surpreendeu na estrada do castelo foi uma espécie de shopping center com lojas de souvenir, venda de flores, frutas, um espaço enorme de comércio, onde não se encontrava nenhuma pista sobre a história do castelo. Nenhum livro à vista. Habitado até 1999 pelos proprietários nobres, o castelo é administrado desde então por uma fundação que tentou transformá-lo - sem muito sucesso - em um espaço europeu de estudo e experimentação de jardinagem e paisagismo e agora busca investidores para a criação de um centro de wellness. (Aliás, o maior desconforto de ter nascido nesta época é ter testemunhado o surgimento de uma deformação civilizacional tão extrema como esta: wellness!). E cheguei a pensar que, enquanto as fanfarras militaristas da schützenfest "pelo menos" correspondem à "turistização" de uma origem histórica a ser reconstruída com um mínimo de interesse, o shopping center em frente aos milharais - sem nenhum livro e nem sequer souvenir que remeta à origem do lugar - é uma completa deletagem do tempo e do espaço.

Segundo me contou uma taxista cujo avô era caçador no castelo, o atual príncipe leiloou há alguns anos a coleção de armas e a biblioteca centenária, da qual um livro - uma edição "encadernada a mão" de Reineke Fuchs, a fábula medieval adaptada por Goethe no começo do século XVIII, foi arrematada por um milhão de marcos. De Jüchen a Düsseldorf, onde parei para ver a exposição de Kling (ao som das fanfarras de mais uma schützenfest nas ruas do centro histórico à margem do Reno), vim pensando na revolta da taxista contra o nobre que leiloou a biblioteca do castelo, pois - para ela - o exemplar "encadernado à mão" de Reineke Fuchs era patrimônio local! Assim como outro importante patrimônio do castelo, o hortus dickensis - uma coleção de plantas exóticas de importância européia, reunida na primeira metade do século XIX -, a biblioteca leiloada era uma configuração local do saber compilado de todas as partes do mundo.

Ao atinar para a concomitância de um laboratório de biofísica na antiga base de mísseis e rituais militaristas medievais, de uma coleção de cactáceas em pleno pântano renano e casas com design estilizado de pau-a-pique em meio aos milharais, começaram até a me parecer mais plausíveis o enclave alpino na Renânia e a vista de Cartago em Hombroich. Lembrei do ensaio do Victor Sosa sobre a América Latina ("Nós, latino-americanos"), quando ele se refere a "diferenças culturais que são diferenças temporais: povos que vivem no neolítico coabitam o mesmo continente com elites altamente tecnologizadas e naturalmente integradas aos códigos da globalização". E fiquei pensando se isso é privilégio do Mundo Novo ou talvez um produto importado da Europa.

A diferença, é claro, é a forma de mistura. Pois acho que a Europa, com sua multiplicidade de tribos locais, tende a resguardar a "exceção cultural" e jamais apaga o caráter estrangeiro do que vêm de fora (e tudo que não venha de um raio de no máximo dez quilômetros é forasteiro), enquanto nós somos mestres em assimilar e "naturalizar" o Outro.

Com isso, volto brevemente à nossa última conversa mais longa por escrito, em que eu proclamava meu desinteresse pelo que considero um abuso ou banalização do conceito de antropofagia, cada vez mais usado como legitimação da prática mais monocultural que intercultural de se apropriar da superfície "do que não é seu" e jogar fora o resto. No fundo, mais uma manifestação do consumismo onipresente. Sobre isso falei o suficiente em off. Aqui, eu gostaria de resgatar uma última imagem, algo para sintetizar o tipo de miscigenação estética que me interessa.

A imagem é a do edifício do museu da Langen Foundation projetado por Tadao Ando na base de mísseis de Hombroich. O arquiteto japonês incorpora referências locais - como os valados ou diques (aliás o Dyck do castelo vem do holandês dijk), as estufas de plantas e os bunkers da base de mísseis -, e as incorpora ao seu marcante traçado oriental. A coleção Langen de arte japonesa está abrigada em uma longa nave de concreto inteiramente envolta por uma estrutura de vidro, uma espécie de redoma quadrangular. A rígida linearidade desta estrutura é rompida pelo valado sinuoso que circunda o museu, pela fluidez do lago e o arco de concreto que marca delimita o limiar de entrada ao museu. Uma aparição em meio à planície, penetrável e impenetrável ao exterior.

No templo de Tadao Ando, mistura entre o que é local e o que é de fora empata, "indecisível". E talvez seja isso que suspenda tempo e espaço.

Com a chegada do trem em Berlim, interrompo a divagação, cumprindo - pelo menos no fim - a promessa de escrever uma Carta "de Berlim".

Beijo
Simone

*

 

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[REVISTA ZUNÁI- ANO III - Edição XIII - SETEMBRO 2007 ]