ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

VISTA AO JARDIM ADORMECIDO

 

 

 

 

Fabricia Walace Rodrigues

 

 

Na morada que escolhemos, cultivamos plantas vivazes e
recolhemos os mortos.
Sopramos na flauta a cor da distância,
desenhamos um relincho no pó do caminho.
E escrevemos os nossos nomes, pedra a pedra. Tu, ó raio,
ilumina a nossa noite, ilumina-a um pouco.


Também nós amamos a vida quando podemos.

 

Mahmoud Darwish

 

 

Se todos são descobridores, como afirmava Borges, desde as coisas mais elementares até “lacertidumbrecasi total de supropiaignorancia”, uma viagem pressupõe, no confronto com o outro, um percurso de descoberta de si. Toda viagem, seja qual for o destino – se o há –, nos apresenta o fato óbvio, mas não evidente, de nós sermos, mas essencialmente, um outro para alguém. Estabelece-se, nesse não-espaço, nesse espaço de transição, um jogo contínuo de alteridades. O eu se recria a partir do que vê, ouve, sente, cheira e – principalmente – contrasta.

 

O imperador Kublai Khan pergunta a Marco Polo se ele viaja para reviver seu passado. Ao que ele responde: “Os outros lugares são espelhos em negativo. O viajante reconhece o pouco que é seu descobrindo o muito que não teve e o que não terá”. Marco Polo e todo viajante exercita sua outridade, vestindo, momentaneamente, a máscara do outro, se colocando na cena que assiste. E nesse momento encaramos tudo aquilo que poderíamos ter sido e não fomos; tivéssemos nascido naquele lugar, outras mães cantado outras tão diferentes cantigas de ninar, estaríamos, talvez, sentados naquela praça, cruzando aquela ponte ou vendendo rosas na esquina e olharíamos naquele mesmo momento o estrangeiro que passa – e que, não despercebido, nos faria tentar imaginar seu cotidiano, as escolhas que não tomou, ou o fim que terá enfim sua vida.

Talvez por isso existam tantos relatos de viagem. De escritores a viajantes comuns, compartilhamos experiências. Não se trata necessariamente de contar o trajeto, mas talvez de tentar expressar um pouco do que mudou em nós. Ou de como, muitas vezes inexplicavelmente, o silêncio de uma paisagem nos tenha permitido alcançar aquilo que não imaginávamos.

 

Pois este se trata de um relato, o relato da viagem de uma semana que fiz à Jerusalém. Ao contrário do que se possa esperar, não tem o tom aventuroso que já o nome do destino poderia lhe atribuir: não ultrapassei os limites impostos, não ousei ir a áreas de confronto aberto, não atravessei o território clandestinamente. Apenas conduzi meus pais a conhecer lugares cristãos, deles sagrados e sonhados, há tanto.

 

E, conto.

 

Quando chegamos ao hotel que havíamos reservado em Jerusalém, o motorista do transporte que nos conduziu de Tel Aviv até lá disse: “Da próxima vez vocês devem ficar em locais corretos de Jerusalém. Eu entendo que vocês tenham se enganado, pois são turistas. E só por isso vim até este lugar deixá-los”. Agradeci.

 

À porta, olhos fundos e a grande barriga recoberta por um casaco de lã, a idade já no rosto, estava o proprietário, nos esperando. Logo perguntamos onde poderíamos comer por ali. O semblante anunciou a negativa e por um momento releio a fala do motorista, surgida como aviso. Mas então ele indicou, quase como num gesto, o seu jejum e, por isso, não encontraríamos nada aberto. “Posso servi-los uma sopa de lentilhas que fazemos aqui”. Ofereceu três garrafas de água mineral. Tememos o preço e devolvemos uma. Ele nos empurrou de volta, não sem notar nossa ligeira desconfiança, e disse: “é de vocês”. Cinco minutos depois de entrar no quarto, batem à porta. Era Youssef, com um prato cheio de frutas. “Vocês devem estar com fome, foi uma longa viagem”. E completou: “a sopa já está quente, desçam”.

 

A partir de então, tomamos sopas árabes como em um ritual a ser seguido todas as noites. Cortesia do hotel aos hóspedes – o que me disseram depois ser um costume – a sopa era também um pretexto para encontros no restaurante após o dia de passeio.E Youssef estava lá todo o tempo. Era ele mesmo quem servia a sopa e quem perguntava de manhã se queríamos bancakes.

 

No dia seguinte, reconhecimento de território, caminho até o centro. Dez minutos por uma via paralela ao Monte das Oliveiras, ao longe. Na cidadela, imagens e cheiros nos cruzavam. O primeiro contato embevecia ainda de inúmeras vozes em línguas diversas, também mescladas por música e orações. Para mim, a ideia mais próxima de como deveria ser a mítica Babel. Perdidos nas ruelas por todo um dia. Almoçamos em um barulhento restaurante em que serviam kaftas, homus, rabanetes e molhos perfumados, tudo à mão com a mão. A Via Dolorosa, aos atropelos, nos fez passear alguns dos passos do Jesus mítico. No espaço de sua possível morte, um grande caracol se estendia em fila, entrecortando procissões e viajantes. Era um quarto de teto baixo, todo revestido de tecidos e iluminado por velase prata nos candelabros. Um padre ortodoxo exclamava aos berros em nossa direção: No italians! No italians! A visita a pontos sagrados é tão conturbada quanto a própria imaginação.

 

Nos dias seguintes, fizemos pequenos passeios às cidades ao redor de Jerusalém. A primeira foi Belém. Diante dos preços assustadores das companhias de turismo, acatamos a sugestão do genro de Youssef: ao invés de pagar quase 100 dólares por pessoa, poderíamos ir de ônibus comum, a1 shekel (o equivalente a mais ou menos R$0,50).

 

Como em qualquer rodoviária, pessoas que carregavam potes, que carregavam malas, que carregavam meninos e verduras, tudo emaranhado rumo ao comboio. Um homem gritava: Bayt Lam, Bayt Lam, o que soava em mim Bethlehem, Bethlehem. Entramos no ônibus sem nos atentarmos ao número, não mencionado por nosso anfitrião. Só no meio do caminho a notação fez algum sentido. Em alto volume, o rádio do ônibus reproduzia as orações cantadas do Corão, o que misturado ao calor e a incerteza de nossa direção criou a sensação estranha de nos termos lançado.

 

Chegamos à barreira israelense, onde jovens muito jovens muito bem armados de metralhadoras gritavam para que todos descessem. Cada um, a seu turno, pôs-se em fila e, minha pergunta, de quanto mais estrangeira me sentia, era de haver algo suspeitosamente errado. Na mão agressiva dos meninos, apenas as armas os faziam soldados, pensei estarmos em alguma enrascada. Revistaram a todos, um por um, inclusive o ônibus, e fomos autorizados a partir; não sem antes, da desconfiança, vir de um soldado a mesma sentença de haver sempre um lugar correto de se ir e instalar. Nosso ônibus nos conduzia ao que ainda resta de território palestino. Nossa opção foi o utilizado no dia-a-dia, o 24.1 e não o ônibus de turistas americanos.

 

E na entrada da cidade soubemos o significado do .1: o trajeto do ônibus terminava nos muros que a cercavam. Descemos nesta parada final e entramos no pequeno prédio que dava acesso aos portões. Retiramos os passaportes. Procuramos, dentre os guichês, quase todos vazios, em qual deveríamos formar a fila. A dúvida que estampávamos estimulou um jovem, que se aproximou e disse: “É só seguir, entrem, podem entrar”. Atravessamos uma porta lateral que dava acesso à passagem dos muros. Um pequeno labirinto de cercas nos levava até a cidade que, rodeada por um muro muito alto, em concreto, com uma grossa camada de arame farpado no topo, nos quase excluía e os exilava.

 

O alívio nem teve tempo de começar. Ao alcançarmos enfim a cidade havia ali um aglomerado de taxistas cujo assédio, embora seguíssemos em frente, só aumentava, aos braços e aos preços que desciam, vertiginosamente. A resolução de caminhar, os quase 3 km entre os muros e a catedral, mostrou o que era estar abandonado em sua própria terra, ilhado em extrema seca e calor. A cidade, simples, com ruas sem gente. Vez por outra um carro passava e buzinava. Burburinhos apenas quando nos aproximamos da catedral, o estacionamento apinhado de ônibus de turismo.

 

Não havia opção econômica para os passeios seguintes. Passando por Tel Aviv, agora vista de dia, iniciou-se mais um percurso cristão. A primeira paragem estava em Nazaré, caminhar pela Basílica da Anunciação, onde imagens em mosaico da Virgem estampam as paredes, como uma predição mística, representada por diferentes países. Perto dali, o túmulo de São Jerônimo e, na escultura tumular, a famosa caveira de sua mortalidade frente à tradução imortal da Vulgata. O próximo caminho, o “Mar” da Galileia, Cafernaum, casa de Pedro, local que hoje abriga uma moderna igreja Franciscana. Atendendo aos pedidos de alguns passageiros, o guia concordou com uma rápida parada no Jordão para batismos. Havia por lá um padre ortodoxo e um frei. Uma lontra nadava calmamente pelo rio, ignorando o sobressalto das margens. Ao final da jornada, passando pelo deserto da Judeia, transcorreram a Massada, monte a ser repensado por seu povo, o antigo palácio de Herodes e o sal do Mar Morto. E chegamos a caminhar, uma vez mais, pela cidadela.

 

O percurso que fizemos certamente será reconhecido pelos muitos que também o fizeram. Mas há algo aqui impossível de ser testemunhado em palavra: certo contraste indecoroso entre a falta de água potável para uns e as piscinas e fontes decorativas lançadas dos arranha-céus espelhados e modernos de Tel-Aviv; o alheamento humilhante das barreiras e controles nas estradas, que formam a Palestina; os fantasmas que são o seu povo habitando o caminho desabitado pelas forças e muros vindos das mãos de um Estado que não quer retomar, e mesmo não quer deixar que ocorra, a vida considerada normal, aquela do convívio, na qual os parentes não estejam separados, as crianças estejam na escola, os remédios e os alimentos estejam disponíveis.

 

Assim, um estado inventado que controla uma religião que se quer dizer estado determina uma nação de raça ironicamente pura, enclausurada em limites que avançam indiscriminadamente por terras outras, de outros que não são sequer outros porque não são judeus. E, por isso, seus muros não privam apenas palestinos, mas criam o mundo histérico dividido em judeus e não-judeus, entre terras e ocupações de terra.

 

Enquanto o logocentrismo europeu discute a proibição de burcas e o processo de massificação cultural em que não se aceita a diferença de vestimenta ou credo, temos que testemunhar uma história de condescendência por um Estado que prega e se funda na pureza étnica. Nessa circunstância, Israel não parece ser assim tão oriental, e talvez esteja aí um problema. Ao passo que segue o curso da limpeza de território, aumentando o número de civis palestinos mortos, de extremismos crescentes, frente ao desespero.

 

Não sendo somente um problema entre o governo sionista e os árabes, trata-se – e uma viagem fornece ventos ao convívio – de assumir responsabilidade, assumirmo-nos frente ao outro que, na sua diferença, precisa estar habilitado para confrontar a violência (do fundamento) de uma lei que se impõe pela crueldade. As oposições judaicas a esse governo – sejam em suas manifestações intelectuais, sejam daqueles que imigraram e emigraram das terras da Palestina – são uma forma de dizer não ao inaceitável da crueldade, ao irrepresentável da dor. Deixar vigorar a violência implica um olhar desinteressado frente à justiça. Para além de divisões de raça e etnias, que custam muitas vidas – (6 milhões de judeus mortos na Segunda Guerra; estimados 10 milhões de congoleses massacrados pelo colonialismo belga; o genocídio armênio na Turquia, que matou 1,5 milhão, ou o massacre de Ruanda, com quase 1 milhão de mortes) – o que está em jogo aqui é o desrespeito pela vida outra.

 

Em um retorno a Marco Polo, viajar pode ser um exercício de colocar-se em uma vida que não é sua, mas poderia ter sido. As escolhas, para o explorador, tornam nossas vidas diferentes. Mas e quando não as temos? Qual o destino ofertado pelo Estado de Israel à nova geração palestina quando não aceita sua autoridade? Lançar-se ao mar do exílio, enquanto os Youssefs permanecem delicadamente trazendo frutas e água, sem as ter; morrer pela terra a tiros, por bombas de fósforo branco, enquanto os Youssefs permanecem oferecendo bancakes e conversando com seus hóspedes durante o café-da-manhã. É possível um palestino estar com Marco Polo?

 

Fora de seu território, o palestino não pode assumir seu destino. Porque os palestinos também amam a vida quando podem. Frente ao impasse, François Xavier relança a pergunta: Cela voudrait-il dire alors que l’humain qui est en chaque palestinien doit quitter son espace propre pour se confiner dans le ghetto de l’autre? Il devrait se faire le gardien de sa propre absence, au profit de la présence de l’autre ?A máxima sionista já diz tudo: "um povo sem terra por uma terra sem povo". Um lema que simplesmente menospreza a humanidade, palestina e mais, e os priva de seu direito básico como povo, que também é: a terra que se herda.

 

 

 

 

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