ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

KFIA

 

 

 

Lélia Maria Romero

 

 

Aos poetas palestinos

 

O encontro profundo com o diverso. Nem o bonito nem o menor, apenas o descortinar do que não é igual a si. A voz da diferença, suas dissonâncias, o direito à terra e a fé livre, a estética, os símbolos, se misturaram em mim. Singular e para sempre, levo comigo a fertilidade da surpresa.

 

Serpenteiam estrada e pensamentos ao sul de Hebron. Fevereiro de 1986. Quase não cruzamos nenhum carro pelas colinas secas, subindo e descendo as ondulações pedregosas com pequenos tufos verdes dispersos. Tinha enrolado no pescoço um lenço, uma kfia. Desde que a encontrei no mercado de Jerusalém, me aqueci com o desenho preto-e-branco viajando por dois mundos, tão um tão outro; falafel e gefiltefish, burricos descendentes do Domingo de Ramos, uma discoteca cool em Haifa, in ch’Allah! Estamos na Palestina, no estado de Israel, onde os jovens soldados israelenses tomam cerveja ao ar livre: os cabelos louros presos com elástico, descem as costas atravessadas pela tira da metralhadora.

 

Deixamos Hebron há uma hora. Conforme a curva não vemos o sol, a sombra dos arbustos se agiganta oblíqua diante de nós. O carro quebrou. Pouco tempo depois, passa um carro militar: um soldado israelense de cachos claros, diz que pediria ajuda pelo rádio e vai embora. Shalom! Mais uma hora por ali vendo o sol mudar a posição das colinas, o silêncio seco, o vento. Fizemos sinal para um carro que seguia na direção de Hebron. Um palestino ofereceu carona em troca de uma caixinha. Ficamos minha mãe e eu, ela trancada no carro quebrado e eu fora, observando a luz alterar as sombras na paisagem. Ajeitei a kfia pra me proteger do vento, e não muito longe, vi um menino descer correndo uma colina; desapareceu e reapareceu na curva mais abaixo, chegou à estrada e pelo acostamento, veio em minha direção. Teria uns 10 anos e grandes olhos castanhos. O menino pedia algo incompreensível, gesticulava, apontava pra trás das colinas; depois tentou em inglês e mal entendi a não ser que havia um bebê e uma visita. Mais estranho ainda. Por que uma desconhecida parada no meio da estrada vazia visitaria um bebê? Quem era o menino? Onde? 

 

Não sei por que prestava atenção no menino, que se foi pedindo pra esperar, fazendo um sinal de mão. O bebê estaria doente? Minha mãe disse não arredar pé no aguardo do socorro. Só doido varrido entra na casa de desconhecidos, que não falam a mesma língua, em outro país, sobretudo neste, onde dois povos se suportam e disputam o mesmo chão. Mas me conduzi pela história do menino. Acreditei nele! Mas no quê, se não entendi o que queria? Duas estrangeiras sobre um solo em litígio, o vento e a tarde, a tarde e a espera deserta.

 

O menino voltou com uma mulher. A tia ou irmã, não me lembro e insistia, apontava para o alto da colina, que solitária, se juntava a outra e a outra. Não havia sinal humano no horizonte além dos olhos do menino cheios de uma poética universal, que segurava minha mão e puxava, a visita, a visita, good luck to the baby. Seria isso? Uma visita traria sorte ao bebê? A mulher veio ajudar a me convencer. Usava um lenço colorido e gasto na cabeça. Jovem e disposta, me caiu simpática ao darmos os primeiros passos colina acima. Ambos sorriam me contando algo, somente nós e as sombras, o vento, nossas roupas tremulavam e nada de apreensivo marcou o trajeto, ainda claro pelo sol da do fim da tarde, escuro em minha cabeça e vibrante, no coração da terra prometida. No alto da colina avistei abaixo uma casa pobre, ocre e palestina.

 

Quando entrei, o incompreensível encontrou um ponto de harmonia. Seriam talvez dez pessoas numa casa de três cômodos, teto baixo, praticamente sem móveis e com muitos tapetes. Em círculo, nos sentamos no chão e a comunicação aconteceu surpreendente e fluida, sem barreiras idiomáticas e finalmente o bebê, o recém-nascido cerne do encontro. O bebê não estava doente, apenas era imperativo saudá-lo. Uma visita traz sorte ao bebê! A chegada inesperada de um estrangeiro multiplicaria a fortuna da criança, pensei. Os pais agradeceram e me ofereceram chá. God is happy today! O menino entusiasta parecia duplamente contente, o bebê seu irmãozinho, homenageado pela viajante habilmente persuadida por ele. Seus olhos escuros me convenceram. A acolhida daquela gente da terra sem chão consentido, dissipou a atmosfera insólita de um momento sublime. Brindamos à vida, ao nascimento de Kamal, porque Allah ajuda os que celebram uma benção com os demais. O menino entendeu que eu era brasileira. Saiu do círculo e logo voltou com um atlas, folhando rápido, procurando a América do Sul. Look Brasil! Deslizou o indicador desde o Brasil pelo Atlântico, Mediterrâneo, até Israel, a Palestina, Hebron, sua casa. Os outros acompanharam o dedo do menino, sorrimos e me olharam como se tivesse atravessado o oceano pra visitar o bebê. 

 

Antes da despedida, mais uma visitadora que turista, foi desconcertante receber do menino uma caixa lilás com o desenho da escrita árabe. Bombons! Pra que isso? Imagine levar chocolate de uma casa cheia de crianças! O menino empurrou minhas mãos segurando a caixa, apertou contra minha barriga. Please! Os pais me fizeram um gesto parecido, repetindo o mesmo som, a mesma palavra, que complicado! Eu não poderia recusar o presente, oferenda de agradecimento à visita. No meu colo, o bebê piscava os olhinhos recém chegados, balancei seu corpinho enrolado e carreguei comigo, indelével, um pedaço de esperança na terra de dois povos, de um só chão. Uma criança palestina e o futuro, o futuro e o direito ao solo ancestral. Moisés, Mohammed, Jesus e nós, os filhos de Deus e nossa percepção obscura da diferença. Saúde, prosperidade e fortuna para Kamal! O menino me acompanhou até a beira da estrada, onde me achou. Teria falado comigo porque eu usava a kfia? E o soldado israelense, teria desaparecido porque me viu de kfia? O vento aumentou com o avanço do poente e o menino me apertou a mão: Choukran, brazilian woman!

 

Tirei a kfia. Guardada na mala, dobrada junto à caixinha lilás, me lembrei da primeira vez que a vi, no pescoço de um colega de faculdade. Um amigo me trouxe de Jerusalém, me cochichou o moço, durante um ato pela demarcação das terras indígenas.

 

 

“... Não sintas saudades dos encontros do orvalho.

Sê realista como o é o céu.

E não sintas saudades da túnica preta de teu avô,

ou dos muitos agrados de tua avó.

Vai! lança-te como um corcel no mundo.

Sê o que tu és onde quer que estejas.

Leva apenas o peso de teu coração.

E se a tua terra te parecer deveras grande nas outras terras, volta.

Volta, quando mudada a situação.

           

Minha mãe ilumina as últimas estrelas de Canaã, ao redor do meu espelho.

E joga o seu xale no meu último poema.” *

 

Depois do socorro da locadora, comemos três bombons e seguimos viagem pelos cheiros palestinos e hebraicos, o Mar Morto tão azul quanto salgado, a Mesquita de Omar, pés descalços e um céu possível. No jardim das oliveiras, silêncio milenar. Os sinos de Belém soam para dezenas de ovelhas que atravessam a estrada.  Aprendi a escrever meu nome em árabe e, em Tel Aviv, a cena do banho de mar das mulheres-soldado é única: vão à praia nas horas vagas, pousam a metralhadora na areia, tiram as botas, desabotoam a farda e desfilam minúsculos biquínis. Depois do mergulho, deitam-se ao sol do lado da metralhadora. Jerusalém, um cruzamento de memórias, a terra das três fés mais desencontra que encanta. A cidade me desenhou um contorno familiar mas parece não estar mais lá, é como se tivesse desintegrado. O que vi foi uma cidade virtual, um perfil dourado e oco, onde são palpáveis as pegadas da discórdia. Foi o que senti ao inspirar fundo o aroma de um raminho de oliveira que guardei na bolsa.

 

De partida à Paris, a revista no aeroporto já durava hora e meia; uma vistoria de malas, entrevistas com dois policiais diferentes, as mesmas perguntas e a checagem das respostas olho a olho. Um por um, todos, passamos pelo mesmo. Na segunda revista de malas, o primeiro policial achou a caixa lilás. Eu que tinha me esquecido dela, segui viagem guardando coisas por cima, fui levada pelo braço até o segundo policial e com mais dois que se aproximaram, me refizeram as perguntas e mais outras. Meu pai disse que a compramos eu respondi que ganhara.  Amigos palestinos? Não. Onde? Foi só uma visita. Por que recebeu um presente? Porque nasceu um bebê. Como se chama o bebê? Kamal. Onde vive essa família? Não sei. Abri a caixa e ofereci os bombons. Ninguém aceitou e me vi entre a glória e a armadilha da verdade. É indispensável ter à mão um truque, saber tangenciar ou se vestir de camaleão. Qualquer manual de sobrevivência diz isso!

 

Conversa cansativa, prolongada, repetindo e repetindo como um gravador, afinal, comi um bombom e não explodi! O primeiro policial parece ter entendido a história sem compreender. Como eu. Os tensos olhos azuis, me contaram sobre os motivos das revistas detalhadas, tanta vigilância, aborrecimento para os que vêm à Israel. It’s for your own safety. Convivem com isso diariamente, 24 horas sob ameaça invisível; dentro dos ônibus, bares, lojas, o rádio, de vez em quando, informa que a cidade está tranqüila. A mim, a fortuna me tocou porque celebrei com uma família palestina e me entendi com um militar israelense.  A saída do vôo atrasou quase duas horas. O policial me acompanhou na travessia da pista do aeroporto, lado a lado, sem uma palavra mais. Todos os passageiros em fila indiana até o avião, ainda apresentamos o passaporte, antes de subir a escada. Shalom!

 

Nas viradas e reviradas de mala, guardei minha kfia na bolsa. Liberada, enrolei-me nela mais uma vez. Depois do desembarque no Charles De Gaulle, bagagem na mão, procurava na agenda o endereço do meu amigo Yves e me cercam duas policiais. Bon jour Madamme! Ouvrez votre valise, s’il vous plait. Outra vez a mala? Em Paris? Abri a mala com lenta estranheza, perguntei se havia algum problema no aeroporto ou na cidade, afinal morei em Paris, sempre tão tranqüila para uma capital, e pela primeira vez, uma revista da polícia francesa justo quando volto... a kfia. Depois do papo, camisetas desdobradas e do passaporte brasileiro, soyez la bienvenue, Madamme!

 

Na busca do chão e do viver, Hebron tornou-se uma cidade sitiada. Antes de chegar à mesquita de Ibrahim, Kamal passa pelas ruas estreitas cobertas por um aramado alto, quase uma rede, para reter o lixo jogado das casas da colônia judaica. Kamal parou de ir à escola porque o prédio foi bombardeado e passou a questionar a repetição cotidiana da palavra salam e shalom. Mas voltou a estudar e fez um curso de enfermagem. Trabalha em dobro quando os cortes de energia elétrica no território ocupado, atingem os hospitais e os aparelhos funcionam apenas com geradores. Kamal tem 25 anos, compra pão todas as manhãs, não é partidário da Jihad Islâmica, não explodirá em frente ao cinema, porque Kamal é um jovem de sorte. In ch’Allah assim seja a história.

 

* (Mahmoud Darwish, fragmento de “Ensinamentos de uma Sereia”. Tradução do árabe de Michel Sleiman e Safa Jubran)

 

 “... Não sintas saudades dos encontros do orvalho.

Sê realista como o é o céu.

E não sintas saudades da túnica preta de teu avô,

ou dos muitos agrados de tua avó.

Vai! lança-te como um corcel no mundo.

Sê o que tu és onde quer que estejas.

Leva apenas o peso de teu coração.

E se a tua terra te parecer deveras grande nas outras terras, volta.

Volta, quando mudada a situação.

           

Minha mãe ilumina as últimas estrelas de Canaã, ao redor do meu espelho.

E joga o seu xale no meu último poema.”

(Mahmoud Darwish) *

 

*fragmento de “Ensinamentos de uma Sereia”. Tradução do árabe: Michel Sleiman e Safa Jubran

 

Sinto falta do pão da minha mãe

do café da minha mãe

do toque da minha mãe.

Um dia a infância crescerá

em mim e eu amarei a minha vida

porque se eu morrer

terei vergonha das lágrimas de minha mãe!

 

Se eu voltar um dia, mãe,

toma-me um lenço para seus cílios,

cubra meus ossos com a grama

batizada pela pureza de seu pé

e me amarre com uma mecha de seu cabelo,

com fio solto do seu vestido,

quem sabe assim me torno um deus,

um deus, me torno,

se tocar o fundo de seu coração

 

Se eu voltar, mãe,

Faça de mim lenha para o fogo do seu forno

Faça de mim o varal no seu telhado

Pois não consigo mais me erguer

Sem sua oração matinal ...

(Mahmoud Darwish) *

 

* Tradução do árabe: Safa Jubran

 

 

 

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