ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

ISRAEL E OS ULTRAORTODOXOS – NOTÍCIAS DE UMA GUERRA ANUNCIADA

 

 

 

Luciana Garcia de Oliveira

 

 

“Encobrirei o Meu rosto deles, verei as calamidades que os alcançaram no fim; porque ela é uma geração de perversidade, filhos em que não há lealdade” (Deuteronômio 32: 20).

 

Diante de tantas tentativas de acordos fracassados entre Israel e os palestinos (sobretudo, durante as últimas reuniões ocorridas em Amã, na Jordânia), concernentes sobretudo, ao estabelecimento de fronteiras definitivas para o futuro Estado da Palestina, é observado que os israelenses estão, cada vez mais, se voltando para as questões de seu próprio país. Nesse ponto, as autoridades israelenses têm descoberto um assunto que, até então, tinham sumariamente negligenciado, qual seja, a posição dos judeus ultraortodoxos na sociedade israelense.

 

A atual explosão do radicalismo em Israel, a qual a mídia ocidental conceituaria enfaticamente de "fundamentalismo", caso referisse aos muçulmanos, pode ser considerada como uma grande oportunidade para se repensar acerca desse fenômeno social e, sobretudo a sua não limitação à uma única religião.

 

O que vem ocorrendo, nesse caso, é o sintoma de uma reação popular frente a uma inesperada crise gerada pelo fenômeno da chamada "Primavera Árabe". Fato que acarretou na fragilização da posição de Israel no mundo.

 

Sobre essa questão, o principal foco de preocupação é a discriminação às mulheres. Nesses últimos dias, alguns acontecimentos divulgados geraram muitas controvérsias na imprensa internacional:

 

Os organizadores de uma conferência sobre a saúde das mulheres e a lei judaica impediram as mulheres de subir ao palco para falar, fazendo com que pelo menos oito palestrantes cancelassem sua participação no evento; homens ultraortodoxos cuspiram em uma menina de 8 anos de idade, pois consideravam que ela estava vestida sem recato; o rabino – chefe da força aérea renunciou a seu posto porque o exército se recusou a liberar soldados ultraortodoxos de participar de eventos onde cantoras fossem aparecer em público; manifestantes representaram o comandante da polícia de Jerusalém como Hitler em cartazes porque ele instruiu as linhas de transporte público de uso unissex à passar por bairros ultraortodoxos; vândalos apagaram os rostos das mulheres que apareciam em propagandas de outdoor em Jerusalém.[1]

 

 

A consternação gerada por esses últimos acontecimentos, impulsionou o Fundo Nova Israel (instituição defensora da igualdade e da democracia) à organizar eventos com a presença de mulheres. Da mesma forma, a Associação Médica de Israel se pronunciou à respeito, seus representantes afirmaram sua convicção em boicotar eventos que excluam as mulheres da esfera pública.

 

Frente à tantas reações seculares, autoridades religiosas acusaram os grupos de promoção aos direitos humanos de tentarem travar uma guerra contra a comunidade religiosa.

 

Para quem vive em Israel, nota-se que o grupo dos ultraortodoxos mantém uma posição de ambivalência sobre o Estado, a maioria o consideram insuficientemente religioso e, da mesma forma, ainda muito prematuro em sua fundação (ocorrido, segundo eles, antes mesmo da chegada do Messias).

 

A nova identidade israelense, baseada no sionismo político, choca-se claramente com a tradição judaica e, justamente por isso, provoca muitas críticas religiosas. De acordo com a obra Judeus contra judeus – história da oposição judaica ao sionismo, a ideologia sionista teria infligido mais danos aos judeus do que aos árabes. Segundo o rabino Blau (citado na obra), "Se os árabes perderam seus territórios e suas casas, os judeus perderam sua identidade histórica ao aceitar o sionismo. Se os árabes perderam o lar onde praticavam a sua fé, os judeus perderam a fé, que era o seu lar"[2]. O chamado "israelismo", segundo as comunidades religiosas, substituiu a identidade judaica tradicional, baseado na obediência à Torá.

 

Todo esse desagrado causado com a identidade israelense moderna, pode ser considerada como uma forte premissa para a insurgência de uma geração fanatizada e extremista.

 

O ápice desse fanatismo é atribuído à uma nova variante da ortodoxia judaica que, por sua vez, têm chamado a atenção em Israel, trata-se de uma seita fundada por Bruria Keren que, segundo a matéria  publicada na revista Carta Capital, a "rabina e santa" (como é conhecida pelas suas seguidoras) encontra-se presa desde 2006, sob a acusação de maus-tratos aos seus 12 filhos. De acordo com o jornalista Antônio Luiz M.C. Costa, as práticas religiosas impõem,

 

suas mulheres a usarem literais monte de roupa para ocultar totalmente o rosto, os olhos e as formas do corpo: a líder usa luvas, dez saias, sete mantos longos, cinco véus na frente da cabeça e três atrás. Como não enxergam por onde andam, usam suas crianças como guias. Para não tirar seus xales, raramente tomam banho e vivem à parte, recusando matricular os filhos em escolas públicas. Além disso, seguem normas estritas de medicina alternativa baseadas em cabala, homeopatia e vegetarianismo, ensinadas pela líder.[3]

 

 

Esse mesmo grupo integra em torno de mil integrantes, segundo as autoridades locais, e tem sido bastante repudiado pela sociedade israelense e, mesmo por algumas lideranças haredim. Esse desconforto pode ser atribuído ao fato de tratar-se de um grupo bastante recente e, por isso, muito carente de fundamentação e senso de tradição. E, por mais que, a primeira vista, defendam o possível retorno à fé de seus ancestrais, a nova seita não passa de uma invenção recente, contrária ao movimento da globalização.

 

Juntamente às integrantes da nova seita judaica, estima-se que a comunidade ultraortodoxa, de uma maneira geral, gire em torno de 1 milhão de pessoas que, enfrentam dificuldades financeiras, em sua maioria. Geralmente, o grupo mantem-se distante da política israelense, de forma a concentrar-se diariamente em suas próprias necessidades materiais e espirituais.

 

Nesse passo, ao mesmo tempo que rejeitam o Estado, os devotos sobrevivem fazendo acordos com os governantes israelenses. De maneira recíproca, o Estado (independentemente de   serem inclinados para a direita ou esquerda) têm sobrevivido, por intermédio de muitas concessões, a fim de garantir votos. Convivência esta que, não impede a existência de atritos.

 

A medida em que a comunidade cresce (em termos vegetativos), cada vez é maior a falta de produtividade econômica. Frequentemente, a comunidade coloca o estudo da Torá como prioridade e, exatamente por isso, muitos membros têm se dedicado arduamente para que os homens ultraortodoxos possam se dedicar integralmente à essa atividade, ao invés de trabalhar. Muito embora, as mulheres religiosas estejam adequadamente empregadas, é muito grande o índice de desemprego entre os homens que, em sua grande maioria, também não servem ao exército. Tudo isso, tendo em média de 6 a 8 filhos por família.

 

A questão que abarca as altas taxas de fertilidade na comunidade ultraortodoxa, tornou-se uma situação especialmente preocupante. De acordo com o diretor executivo do Centro de Estudos Sociais Taub, Dan Ben-David, "eles representam mais de 20% de todas as crianças nas escolas primárias". E, ainda continua: "Em 20 anos, existe um risco de termos uma população de terceiro mundo que não conseguirá sustentar uma economia e um exército de primeiro mundo"[4].

 

Ainda, é possível constatar que as escolas religiosas são inadequadas para o século XXI, uma vez que não aplicam um ensino voltado para o mercado de trabalho (em uma economia moderna), nem tampouco oferece uma formação direcionada aos direitos humanos e às noções de democracia.

 

Essa falta de conhecimento, por sua vez, têm causado uma série de incidentes nas proximidades dos assentamentos judaico (local onde geralmente esse grupo se localiza). A recorrência para o aumento da violência nessas localidades chamou a atenção da responsável pelo Escritório para a Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA) da Organização das Nações Unidas (ONU), Valerie Amos.

 

As práticas "fundamentalistas" praticada pelos colonos, consiste em basicamente pegar em armas a fim de exigir a "Terra Prometida" (definida pelo Antigo Testamento), e a expulsão das comunidades palestinas que ainda vivem nos arredores.

 

Em 13 de dezembro, 50 deles invadiram e tentaram incendiar um quartel, danificaram veículos e jogaram pedras no comandante depois que seus soldados demoliram uma construção ilegal em propriedade privada palestina. O Primeiro-Ministro Benjamin Netanyahu os comparou a insurgentes palestinos e ameaçou submetê-los a Tribunais Militares, mas nada se fez na prática e esses colonos voltaram a incendiar uma mesquita no dia 15 e pichar suas paredes com frases como "árabe bom é árabe morto". [5]

 

 

Muito recentemente e, em decorrência do peso dessa mesma comunidade para o Estado de Israel, no dia 12 de janeiro foi confirmada a validade da chamada Lei de Cidadania, legislação pela qual veta a concessão de cidadania à palestinos casados com israelenses. Por seis votos à favor e um contra, o Supremo não declarou a inconstitucionalidade do texto, mesmo diante dos muitos questionamentos suscitados pelas Organizações não-governamentais (ONGs) de direitos humanos israelenses.

 

O governo anterior havia defendido a lei por razões de segurança numa conjuntura em que a resistência armada palestina (conferida ao grupo Hamas) promovia ataques com bombas e armas. Ao defender a permanência da lei, o juiz Asher Grunis afirmou que revogá-la "significaria milhares de palestinos entrando no país, após se casarem com cidadãos israelenses". Para o magistrado, "os direitos humanos não prescrevem o suicídio nacional"[6].

 

Em contrapartida, a Associação pelos Direitos Civis em Israel, acusou a Suprema Corte pela vigência de uma lei racista, pois fere diretamente ao direito pela liberdade de casamento, como um princípio democrático.

 

Cabe ressaltar que, para muitos palestinos, ser um cidadão ou residente em Israel significa obter melhores oportunidades econômicas (ao compararmos às condições oferecidas nos campus de refugiados, por exemplo), além do acesso aos benefícios estatais.

 

Ainda, dois dias antes da vigência da Lei de Cidadania, foi aprovada em Israel, a chamada Lei Contra a Infiltração, lei que prevê prisão, sem julgamento para imigrantes ilegais. De acordo com o texto, todos os "imigrantes que entrarem ilegalmente no país serão presos por três anos, sem fazer distinção entre imigrantes ilegais e refugiados de área de risco que, de acordo com as leis internacionais, têm direito à asilo"[7]. 

 

A medida, em particular, possui um claro objetivo de diminuir a quantidade de  africanos que, atravessam diariamente, a fronteira localizada ao sul do país. De uma maneira geral, esses imigrantes vem do Sudão e da Eritréia, depois de percorrer todo o deserto do Sinai. Ao se pronunciar na rádio estatal Kol Israel sobre o assunto, o presidente do parlamento israelense Reuven Rivlin (citado pela BBC - Brasil) defendeu que "a entrada em massa de infiltrados pode levar a destruição do país"[8].

 

Ainda não satisfeitos com a medida proibitiva, as autoridades israelense começaram a construir uma cerca ao longo da fronteira com o Egito, e uma nova detenção na mesma localidade, batizada de Saharonin, que terá capacidade (estimada) para comportar mais de 10.000 pessoas (incluindo crianças) em suas dependências.

 

Todas essas medidas de caráter discriminatórias (já citadas), da mesma forma, vem atingindo a comunidade de judeus etíopes. No dia 10 de janeiro houve uma grande manifestação na cidade de Kiriat Malachi (sul de Israel), motivada contra os condomínios que orientaram proprietários de apartamentos a não vender nem alugar os imóveis para membros da comunidade etíope, bem como contra o financiamento estatal de escolas que se negam a aceitar alunos etíopes em Israel[9].

 

Frente a tantas manifestações populares, o premiê israelense Benjamin Netanyahu declarou de maneira categórica que o fenômeno do racismo é "enfurecedor e não tem lugar na sociedade israelense"[10]. Por outro lado, os líderes da comunidade etíope, contrariamente acusaram o governo de conivência com o racismo, uma vez que não são tomadas medidas concretas a fim de banir práticas discriminatórias no país.

 

Atualmente, Israel é uma nação dominada pelos partidos ultraconservadores e pelos partidos da extrema ortodoxia religiosa que, conseguiram finalmente unificar a religião e o Estado. O que significa, nas palavras de  Gershon Knispel, "uma combinação perigosa para a democracia e para a paz"[11].

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

 

BRONNER, Ethan e KERSHNER, Isabel. Israel enfrenta crise sobre papel dos ultraortodoxos na sociedade. Disponível em: http://ultimosegundo.ig.com.br/mundo/nyt/israel-enfrenta-crise-sobre-papel-dos-ultraortodoxos-na-sociedade/n1597582792263.html.

COSTA, Antonio M.C. Fundamentalismo 2012. Carta Capital nº 679, pp. 43-45.

 

FLINT, Guila. Judeus etíopes protestam contra racismo em Israel. Disponível em: http://www.redetv.com.br/ColunistaPosts.aspx?94%2C2390%2Cfalse%2CJudeus-etiopes-protestam-contra-racismo-em-Israel.

FLINT, Guila. Lei aprovada em Israel prevê prisão sem julgamento para imigrantes ilegais. Disponível em: http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2012/01/120110_africanos_israel_gf.shtml.

 

KNISPEL, Gershon. Perseguidos por um bom motivo. Caros Amigos, nº 178, p. 42.

 

ONU alerta para aumento da violência em assentamentos israelenses. Disponível em: http://noticias.terra.com.br/mundo/noticias/0,,OI5565105-EI308,00-ONU+alerta+para+aumento+da+violencia+em+assentamentos+israelenses.html.

 

Suprema Corte em Israel mantém proibição a cônjuges palestinos. Disponível em: http://noticias.terra.com.br/mundo/noticias/0,,OI5555312-EI308,00-Suprema+Corte+de+Israel+mantem+proibicao+a+conjuges+palestinos.html.

 

Israel: extremistas são acusados de atacar soldados. Disponível em: http://noticias.terra.com.br/noticias/0,,OI5548418-EI188,00-Ativistas+de+extremadireita+sao+acusados+por+ataque+a+soldados+israelenses.html.

 

RABKIN, Yakov. Judeus contra judeus: A história da oposição judaica ao sionismo. São Paulo: Editora Acatu, 2009.

 

 

Notas:


[1]   BRONNER, Ethan e KERSHNER, Isabel. Israel enfrenta crise sobre papel dos ultraortodoxos na sociedade. Disponível em: http://ultimosegundo.ig.com.br/mundo/nyt/israel-enfrenta-crise-sobre-papel-dos-ultraortodoxos-na-sociedade/n1597582792263.html, acesso dia 30/01/2012.

[2]   RABKIN, Yacov. Judeus contra judeus – a história da oposição judaica ao sionismo, p. 68.

[3]   COSTA, Antônio Luiz M.C. Fundamentalismo 2012. Carta Capital, nº 679, p. 43.

[4]   BRONNER, Ethan e KERSHNER, Isabel. Op.cit.

[5]   COSTA, Antônio Luiz M.C. Op.cit, p. 44.

[6]   Suprema Corte de Israel mantém proibição a cônjuges palestinos. Disponível em: http://noticias.terra.com.br/mundo/noticias/0,,OI5555312-EI308,00-Suprema+Corte+de+Israel+mantem+proibicao+a+conjuges+palestinos.html, acesso dia 30/01/2012.

[7]   FLINT, Guila. Lei aprovada em Israel prevê prisão sem julgamento para imigrantes ilegais. Disponível em: http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2012/01/120110_africanos_israel_gf.shtml, acesso dia 02/02/2012.

[8]   FLINT, Guila. FLINT, Guila. Lei aprovada em Israel prevê prisão sem julgamento para imigrantes ilegais. Disponível em: http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2012/01/120110_africanos_israel_gf.shtml.

[9]   FLINT, Guila. Judeus etíopes protestam contra racismo em Israel. Disponível em: http://www.redetv.com.br/ColunistaPosts.aspx?94%2C2390%2Cfalse%2CJudeus-etiopes-protestam-contra-racismo-em-Israel, acesso dia 30/01/2012.

[10]  FLINT, Guila. Op.cit.

[11]  KNISPEL, Gershon. Perseguido por um bom motivo. Caros Amigos, nº 178, p. 42.

 

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Luciana Garcia de Oliveira. Pós-graduada em Política e Relações Internacionais pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESP) e integrante do grupo de trabalho sobre o Oriente Médio e Mundo Muçulmano, pertencente ao Laboratório de Estudos sobre a Ásia da Universidade de São Paulo (LEA-USP) – e-mail: luciana.garcia83@gmail.com.

 

 

 

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