LARGA
JANELA PARA UM NEBULOSO HORIZONTE
Luis
Dolhnikoff
O jornalismo cultural
brasileiro tem poucas páginas que poderiam dizer-se autorais
(menos ainda autorais e fundamentais). A mais notória é a
página semanal Poesia-Experiência, que o poeta piauiense
Mário Faustino (1930-1962) manteve entre os anos de 1956 e
1958, no Suplemento Dominical do Jornal do
Brasil, na então capital federal. Havendo-se com a temerária
tarefa de se posicionar face às conquistas contemporâneas
das vanguardas, portanto sem a proteção de uma perspectiva
histórica, e ainda com a tarefa complementar de, em tal contexto,
apresentar ao público geral do jornal novas referências de
poetas estrangeiros, comumente em traduções originais suas,
a página de Mário Faustino, compreensivelmente, fez história.
Principalmente porque se tratava de uma manifestação tão corajosa
quanto consistente, no contexto maior dos grandes embates
pelos quais passava então a cultura brasileira, às voltas
com as questões do vanguardismo x retaguardismo, do popular
x erudito, do ruralismo x urbanidade, do nacionalismo x cosmopolitismo,
do engajado x alienado, do artesanal x industrial, do verbo
x imagem, tudo ao mesmo tempo e às vésperas do golpe de 64
- que, entre coisas, imporia um hiato durante o qual tais
questões (não) seriam respondidas, em grande parte, pela simples
familiaridade com elas (ou seja, por uma mistura de pedaços
dos antigos argumentos, novos fatos consumados e uma compreensível
sensação de exaustão).
Passados 40 anos, e tendo mudado o mundo ainda mais do que
se suporia pela mera quantidade de anos acumulada no calendário,
quais as questões que, em plenos anos 90, fariam surgir uma
nova página de jornalismo cultural autoral de grande fôlego,
se porventura ainda existisse tal demanda?
De fato, ela existia. Quanto às questões a serem, se não respondidas,
ao menos colocadas, falam adiante seus autores (a quem cabe
o mérito daquela constatação bem como o da materialização
subseqüente do meio de começar a suprir a demanda constatada).
Musa paradisiaca
é o nome científico genérico da banana. Banana que, por metonímia,
evoca vários Brasis: o dos antigos quadros de pintores viajantes
dos tempos coloniais, o da economia agrária e dependente,
o de Carmem Miranda, das chanchadas e do carnaval. País não-sério,
mas triste, apesar de alegre.
Por outro lado, a assunção do símbolo da banana, com tal carga
evocativa, bem como sua nomeação em linguagem científica,
apontam para a virada antropofágica e, a partir daí, para
o modernismo e a modernidade. Modernidade problemática, evidentemente.
O que a ironia aqui imposta ao nome científico da fruta traduz
e sintetiza: essa modernidade que é a grande "musa" de si
mesma e que, de paradisíaca, não tem absolutamente nada. A
não ser as antigas - mas já modernas - utopias do Novo Mundo,
dos velhos tempos fundadores: o Eldorado, o paraíso tropical,
o jardim do Éden redescoberto, era - ou deveria ser - aqui.
Mas não é: nem aqui, nem em qualquer outro lugar (por exemplo,
o "lugar" da história e da política), em tempos pós-utópicos.
Abrir uma larga janela para toda uma paisagem nebulosa foi,
em suma, a razão de ser da página de arte e cultura Musa
paradisiaca.
Abrir janelas talvez não seja tão difícil quanto ajudar a
desenhar uma nova paisagem, como o fez a página de Mário Faustino.
Mas pode ser igualmente relevante, dependendo das circunstâncias,
que são soberanas: principalmente se, ao contrário de antes,
quando a velha paisagem precisava ser redesenhada, agora uma
complexa paisagem mutante esquiva-se em ser enquadrada - que
dirá observada. Saber a partir de que ponto instalar a janela
e, desde aí, poder abri-la o mais larga possível, sem que
desmorone, não é tarefa para qualquer arquiteto.
Os arquitetos - e os executores - da Musa paradisiaca
foram a poeta e tradutora Josely Vianna Baptista e o artista
plástico (e ensaísta bissexto) Francisco Faria. Voltemos,
portanto, à citada constatação da demanda:
(...) Cada vez mais estávamos
presenciando uma grande efervescência de idéias em torno de
nós. Estávamos nos comunicando com muitos artistas e escritores.
Certo dia notamos que vários desses diálogos eram legítimas
preciosidades, que mereciam uma divulgação muito mais ampla
do que aquele restrito ambiente privado. E a Jose [Josely
Vianna Baptista], sempre que isso acontecia, dizia: 'Nós tínhamos
que publicar isso!'. A idéia da Musa [paradisiaca] nasceu
como conseqüência natural da amplitude com que assumimos nossos
trabalhos artísticos.
Quem fala, em entrevista inaugural da página em seu período
da Gazeta do Povo de Curitiba (Caderno G, 7
jan. 1996, p. 8), é Francisco Faria. Entrevista não-tão-inaugural,
portanto: pois a página de arte e cultura Musa paradisiaca
teve dois períodos consecutivos (e por certo tempo sobrepostos)
em dois jornais diferentes, tendo sido o primeiro A Notícia,
da cidade catarinense de Joinville (1995-1998). Não obstante,
foi em sua fase curitibana (1996-2000) que a página teve a
maior duração, a paginação necessária (para dizer o mínimo
de sua altíssima qualidade gráfica - a cargo do próprio Francisco
Faria), e sua maturação. Dito isto, voltemos à entrevista
reinaugural. Mais especificamente, aos "trabalhos artísticos"
supracitados:
Caderno G - Como se dá
o trabalho conjunto entre a poeta e o artista plástico?
Faria - A maioria de nossos
trabalhos é pensada e realizada individualmente. Existem porém
dois núcleos que desenvolvemos conjuntamente. O primeiro é
o trabalho de arte visual e poesia, ou verbo-visual, como
a Lúcia Santaella o definiu, que começou em 1992 com o projeto
Corpografia,1 e que hoje estamos levando à frente
com o projeto Os poros flóridos.2 Imaginamos um trabalho
que pudesse renovar a relação entre arte visual e poesia,
afastando-se da fórmula gasta da poesia visual. Este é um
trabalho complexo, inclui edições de livros, instalações visuais
em diversas cidades do mundo, diálogos interdisciplinares.
Discordo frontal e radicalmente
da expressão "fórmula gasta da poesia visual". Primeiro, porque
não se trata de uma fórmula, mas de uma linguagem-parte dentro
da linguagem maior a que chamamos poesia. Segundo, porque
linguagens não se gastam. Ao contrário: linguagens somam-se
historicamente, e articulam-se culturalmente. Mas se, eventualmente,
a prática de uma linguagem fosse reduzida à reapropriação
de antigas criações então reduzidas a clichês, de fato poderíamos
falar em fórmula, e no mau sentido: "fórmula gasta". Mas por
que a poesia visual parece ter perdido rápida e paradoxalmente
sua vitalidade, quando os tempos informatizados e "visualistas"
da "sociedade da informação" deveriam constituir a base de
suas condições ideais de florescimento?
A resposta é longa e complexa, logo, não pertinente, aqui.
Mas relaciona-se fundamentalmente com o fatal distanciamento
do tronco-mãe da poesia, o verbo. Porém não o verbo descarnado
da lingüística, e sim o de uma dada língua de cultura. A solução,
portanto, se não é a extinção pura e simples da nova linguagem,
a da poesia visual (linguagens somam-se historicamente, e
articulam-se culturalmente), é a síntese com a poesia verbal.
Se em termos de poesia brasileira a contemporaneidade começa
em 22, recomeça nas vanguardas dos anos 50 - não por acaso
o tempo da página Poesia-Experiência do poeta Mário Faustino.
Tempo em que a poesia e as artes plásticas dialogaram de maneira,
senão mais intensa, de certa forma ainda mais profunda que
em 22. O período que se seguiu redundaria na polimorfa e centrí-fuga
década dos 90. Na qual a poeta Josely Vianna Baptista e o
artista plástico Francisco Faria, além de realizarem suas
próprias obras em suas respectivas linguagens - não por acaso,
ela na poesia verbal, ele no desenho, isto é, ambos nas vertentes
fundamentais daquelas -, na verdade, justamente por realizarem
assim suas obras ("o importante é que este trabalho de cada
um de nós mantém uma certa zona de privacidade, de autonomia"
[FF]), puderam partir para uma síntese que, de fato, nada
tem a ver com a poesia visual (embora a poesia de Josely Vianna
Baptista tenha, justamente, uma dimensão gráfico-visual de
estirpe diretamente mallarmaica, na introdução de espaços
brancos em meio aos caracteres, trata-se, nos fundamentos
de sua sintaxe, de uma [grande] poesia verbal).
A poesia
visual é um desenvolvimento da poesia moderna a partir da
incorporação sistemática e significante de variáveis gráficas
(Mallarmé). Um desenvolvimento ao qual hoje parece faltar
uma síntese revitalizadora - para ambas - com a poesia verbal.
Entretanto, no nascimento da poesia visual (logo, da poesia
contemporânea, que a inclui) estavam, além das artes gráficas,
as artes plásticas. Logo, uma síntese (pois mais que a mera
integração de trabalhos) entre a poesia verbal e as artes
plásticas parece profundamente pertinente - e teria, se de
fato o fosse, de ser proporcionalmente fértil: "A idéia da
Musa [paradisiaca] nasceu de nosso cotidiano
e me parece também um produto oriundo destes trabalhos de
arte visual e poesia". (FF)
Síntese na prática, mapeamento e discussão na teoria.
Se a obra de ambos realiza uma síntese possível (não obstante
aquela síntese a ser feita entre a poesia verbal e a própria
poesia visual), a discussão e o mapeamento da arte e da cultura
contemporâneas seriam melhor realizados no seu lugar por excelência,
o espaço público. À falta de uma ágora, o jornalismo cultural
o materializa. Desde que seja um jornalismo cultural em que
as vozes dos participantes dessa discussão sejam diretamente
ouvidas. E que, ao lado de suas intervenções argumentativas,
sejam expostas, na mesma "praça", suas realizações artísticas,
para que o mapeamento da situação contemporânea dê-se integrado
ao desenvolvimento da discussão sobre ele. Daí a estrutura
básica da página de arte e cultura Musa paradisiaca
ter sido uma entrevista ao lado de uma amostragem do trabalho
do entrevistado (conforme o caso, poemas, desenhos, pinturas,
fotos, etc). O que parece, depois de tudo, estranhamente óbvio.
De fato, seria, desde que fosse óbvia, ou comum, a
presença, em nosso jornalismo cultural, de entrevistadores
como os de Musa paradisiaca. E mais ainda: desde que
fosse habitual o que, ora, deveria ser óbvio. Ou seja: um
longo espaço dado sistematicamente aos mais significativos
criadores contemporâneos (em que pese a ausência de dois nomes
absolutamente fundamentais, Ferreira Gullar e Bruno Tolentino,
bem como o de grandes autores de Brasis menos óbvios, como
o poeta pernambucano Alberto da Cunha Melo).
(...) A idéia da página é trazer semanalmente aos leitores
informação cultural, com substância e discussão. E dar
espaço aos artistas para contar algumas idéias que lhes ocorrem.
Eu, por exemplo, estou meio cansado de suplementos culturais
em que a tônica é a opinião do articulista, e em que os trabalhos
dos artistas viram mero pretexto para que o infeliz nos exponha
suas idéias. Esse tipo de jornalismo cultural virou uma praga.
Começou com um erro de interpretação infame daquela idéia
de que bom jornalismo é o que forma opinião. Ou seja, um certo
tipo de redação hoje no Brasil acredita que é justamente a
opinião do redator que deve formar e informar os leitores.
(FF)
"O infeliz" para se referir, por antonomásia, à figura
genérica do articulista cultural, cuja prática "virou uma
praga" baseada num "erro de interpretação infame", talvez
soe sobrepesado na página de um livro. Afinal trata-se de
uma entrevista, ou seja, de afirmações verbais, e ainda por
cima dadas para ser publicadas em jornal, cuja leitura é tão
efêmera quanto diagonal. Mas a verdade é que tais palavras,
não por acaso, traduzem e sintetizam, implicitamente, a verdadeira
razão de ser - e o verdadeiro caráter - da página de arte
e cultura Musa paradisiaca: a militância política.
Desde que se entenda militância política em sua concepção
original, ou seja, de uma atividade contraposta à postura
idiotés.3
Idiotés, em grego, significa privado, particular, próprio. É o oposto de político (de
pólis, isto é, a cidade), que significa público. A
conotação de estúpido, de cretino, que a palavra idiota adquiriu
vem do fato de que, para os gregos, só era possível haver
vida inteligente na vida política, na vida pública, ou seja,
na participação nos negócios da pólis, o que exigia
boa educação, retórica, esperteza, conhecimento de história,
de filosofia, de armas, em suma, a busca da areté,
que significa excelência (e certa conotação de virtude), e
era o objetivo da educação grega. Por outro lado, a vida idiotés,
a vida privada, a vida doméstica, ou seja, a vida retirada,
na qual a dedicação é apenas aos interesses particulares,
só podia portanto gerar o que Marx nomeia, não por acaso,
como a "idiotia rural" - expressão em que a palavra idiotia
possui simultânea e sinteticamente o sentido antigo e o moderno.
A poesia em particular, e a arte em geral, é normalmente
uma atividade idiota - em sua realização. Mas não em sua razão
de ser e destino.
Necessariamente (até para ser reconhecida enquanto
tal), toda arte que merece este nome é, em algum momento -
e em vários aspectos -, politikós. Pois ou nasce assim,
como a arte popular, ou assim se torna, em sua recepção histórica,
como a arte idiotés de Van Gogh, Franz Kafka e Fernando
Pessoa (no primeiro caso, não há contradição com o fato de
a arte popular, historicamente, ter sido criada por "idiotas
rurais": primeiro, porque fruto de seus momentos mais "políticos",
como as festas religiosas e de colheita; segundo, porque tal
arte servia de repositório de longas e depuradas tradições).
Além disso, arte é, fundamentalmente, linguagem. E
como linguagens são meios de construir o mundo humano (cultura)
e conhecer o mundo não-humano (natureza), todo trabalho de
pesquisa e enriquecimento (e de pesquisa porque de enriquecimento)
de linguagem é portanto politikós.4
Por fim, toda arte é uma forma de comunicação. Comunicar
é, denotativamente, tornar comum. Comum que é do campo semântico
do político (pólis). A arte, assim, é política ao conseguir
comunicar-se com a cultura a que pertence - o que portanto
nada tem a ver com arte engajada.
No mundo contemporâneo, o que existe é um paradoxo:
a idiotia urbana. Pois o pequeno materialismo (há o grande
materialismo da ciência) do capitalismo tardio, traduzido
no consumismo como prática e como crença - como sub-ideologia
- centrais, baseia-se no narcisismo (de que o hedonismo e
o juvenilismo são correlatos). Além do mais, a contracultura,
outra pequena ideologia, centrada na negação da tradição moderna
(no sentido histórico) da cultura ocidental, impôs um corte
na percepção da dívida existencial e cultural que cada geração
tem para com todas que a antecederam. O resultado é uma "cidade",
uma pólis, uma cultura de idiotas, na qual cada um dedica-se
orgulhosa e militantemente a seus pequenos interesses pessoais
imediatos - tanto em termos práticos quanto intelectuais.
Não é por acaso que na expressão "iniciativa privada" a palavra
privada, em grego, diga-se idiotés.
Nem é por acaso que, nos anos 80, anos de ascensão
do neoliberalismo, com a dupla Reagan-Thatcher, e de domínio
do "yuppismo", a arte, no mundo ocidental, tenha sido finalmente
reduzida à lógica do mercado, ou seja, tenha se tornado, de
fato, idiota, resumida a mercadoria e símbolo de status.
Finalmente reduzida (entendido esse "finalmente" como
constatação, não como satisfação), mas não inteiramente.
Pois a poesia em particular, e a arte em geral, se
são uma atividade idiota em sua realização, não o são em sua
razão de ser e destino.5
Portanto, não é de estranhar que, hoje, comece a se
perceber ter sido a década de 90 anos de intensa atividade
politikós no meio artístico - ainda que, compreensivelmente,
não politikós como foram todos os movimentos artísticos
do século XX, desde o modernismo até a poesia marginal dos
anos 70.
Revistas especializadas, centros de estudo, encontros
de discussão - ainda que não páginas de jornalismo cultural
autoral - proliferaram mais ou menos distantes do foco da
grande mídia. Tratava-se, em suma, da tentativa de os artistas
deixarem de ser fornecedores de matéria-prima, seja midiática
ou museológica, para voltarem a exercer eles próprios, diretamente,
a dimensão politikós de sua arte. A diferença com os
movimentos artísticos que marcaram o século XX até os anos
80 (exclusive), é que essa retomada, nos anos 90, não se constituiu
num movimento, numa escola, nem se deu ruidosamente. Pois
tratava-se, fundamentalmente, de uma reação pragmática - ainda
que num nível no qual a própria pragmática tem uma dimensão
verdadeiramente política.
Por outro lado, houve a reação complementar no aspecto
pertinentemente idiotés da criação artística. Ou seja,
quanto ao métier, à disciplina da criação. Assim, enquanto
tantos artistas ainda se dedicavam ao prazer "andy-warholiano"
dos quinze minutos de fama que a arte-entretenimento também
oferece como parte do pagamento, alguns retomavam o trabalho
silencioso e intenso no ateliê ou na biblioteca.
Neste sentido, a página Musa paradisiaca não
foi, apesar das aparências, uma pregação solitária no deserto.
Mesmo que tenha sido a única em seu gênero no período - e
mesmo que tenha se realizado fora do eixo Rio-SP.
Pois em consonância com esse aspecto de reação pragmática
difusa da atividade artística, e em coerência com o fato de
que o centro do mercado artístico idiotés era, não por acaso,
o eixo Rio-SP, tal reação deu-se por todo país.
Musa paradisiaca,
portanto, além de se integrar nesse quadro geral em que os
artistas ameaçavam começar a retomar os meios de inserção
e de recepção - em suma, de comunicação - de seu trabalho,
o que envolve não só a divulgação da obra como a discussão
da situação cultural, também contemplou diretamente a retomada
paralela da disciplina criativa, ao dar voz aos artistas através
de longas entrevistas que apareciam ao lado de reproduções
generosas de seu trabalho, seja poético, seja pictórico.
Isso, ao longo de cinco anos de publicação semanal
ininterrupta, representa não apenas um vasto painel da criação
artística brasileira - e hispano-americana - na segunda metade
dos anos 90, como também uma ampla discussão levada a cabo
pelos próprios artistas.
Esse é, em suma, o conteúdo deste livro.
A arte hispano-americana aparece aqui bem representada
por três motivos. Um, o próprio trabalho de um dos criadores
da página, Josely Vianna Baptista, responsável por boa parte
das mais importantes traduções da literatura em língua espanhola
dos últimos anos (da obra magna do cubano Lezama Lima, Paradiso,
à maioria dos livros de poemas de Borges).
O outro, o "fator" barroco, em seu sentido mais
lato, que, sem excluir seu sentido histórico restrito, para
muitos indica um mínimo (ou máximo...) múltiplo comum entre
as culturas do subcontinente. E por fim, o fato de que, no
mundo contemporâneo, a pólis, longe de se restringir
à cidade, tampouco restringe-se mais ao país.
Isso não significa que a dimensão local deixa de ter
importância. Ao contrário. Mas significa que certas dimensões
transnacionais são inevitáveis. Afinal, entre o tribalismo
reativo à globalização e a própria, o verdadeiro fenômeno
da época não é nem um nem outro, mas o "glocalismo": global
e local (na medida da realidade) ao mesmo tempo.
Portanto, além de autores e artistas, além de críticos
e tradutores, brasileiros e hispano-americanos, também aparecem
autores, artistas, críticos e tradutores norte-americanos.
Em suma, a arte americana. Além da cultura pré-colombiana:
a terceira seção do livro agrupa as páginas de Musa paradisiaca
dedicadas à herança ameríndia, com destaque para passagens
de um trabalho de fixação e preservação de partes fundamentais
da tradição oral da cosmologia mbyá-guarani.
Notas
1 O projeto Corpografia consistiu
de um livro (SP, Iluminuras, 1992) e uma instalação de mesmo
nome. Além da poesia de JVB e dos trabalhos plásticos de FF,
o livro contém uma seção intitulada Variações sobre um
mesmo corpo, com textos em prosa especialmente escritos
por Severo Sarduy, Néstor Perlonger, Eduardo Subirats e Rodrigo
Garcia Lopes, além de um poema de Haroldo de Campos. As primeiras
instalações foram apresentadas na Galeria Casa da Imagem,
em Curitiba, e na Galeria Arco, em São Paulo, em 1992. Outra
instalação foi exibida na V Bienal de Havana, no Palacio de
las Artes del Museo Nacional de la Habana, em 1994, e novamente
no Lüdwig Forum für Internationale Kunst, em Aachen, Alemanha,
em 1995.
2
Desdobramento de Corpografia, enquanto ainda inédito
em livro, o poema Os poros flóridos teve excertos publicados
em Desencontrários/Unencontraries: 6 poetas
brasileiros/6 Brazilian poets (III Bienal Internacional de Poetas em Val-de-Marne, 1995; trad. Regina Alfarano), Nothing the sun could
not explain: 20 contemporary Brazilian poets (Los Angeles,
Sun & Moon Press, 1997; trad. Michael Palmer); Boxkyte. A journal of poetry & poetics
(Sydney, The Poetics Foundation, 1997, nº 1, trad. Michael
Palmer); Norte y Sur de la Poesía Iberoamericana (Madrid,
Verbum, 1997); 99 Poets/1999: An International Poetics
Symposium (Duke University Press, Boundary 2, 26:1, 1999;
org. Charles Bernstein; trad. Regina Alfarano); Pindorama:
mostra de poesia brasileira contemporânea (Buenos Aires,
tsé-tsé, 2000, nº 7/8; trad. Roberto
Echavarren); Serta. Revista Iberorrománica. "Poesía y pensamiento
poético" (Madrid, UNED, 1997, nº 1); Esses poetas.
Uma antologia dos anos 90, de Heloísa Buarque de Hollanda (Rio de Janeiro, Aeroplano, 1998); Lies
about the truth [antologia de poesia brasileira contemporânea]
(Nova York, New American Writing, 2000); e nos periódicos
brasileiros Suplemento Literário de Minas Gerais (Belo
Horizonte, fev. 1998) e Folha de S. Paulo ("Mais!",
fev. 2000). Foram também realizadas diversas instalações do
trabalho, em exposições de Francisco Faria: Os poros flóridos
(Curitiba, Museu Guido Viaro, 1995); Nenhum lugar (Curitiba,
Universidade Federal do Paraná, 1995); Naturalezas conjuradas:
"Orbe Mbyá-Guarani" (Havana, Centro Wifredo Lam, 1995);
Os poros flóridos, a palavra-alma - Mostra Internacional
da Gravura de Curitiba/Mostra América (Fundação Cultural de
Curitiba, 1995); Despaisagem (Curitiba, Museu Alfredo
Andersen, 2000). Em livro, ou seja, em versão integral, Os
poros flóridos foi, até o presente, publicado apenas no
México (Aldus, 2002, edição bilíngüe, trad. de Reynaldo Jiménez
e Roberto Echavarren [canto III]).
3
Os seis parágrafos seguintes, estando então este ensaio em
gestação, foram adiantados ao público no contexto de minha
entrevista por e-mail ao site de poesia Balacobaco
(intermega.globo.com/seomario/index.htm), em janeiro de 2003.
4
Assim, pode-se ser politikós em termos puramente lingüísticos.
Porém não se pode ser politikós apenas em termos temáticos
(como em Pablo Neruda e Thiago de Mello, por exemplo). Porque
arte é, fundamentalmente (ainda que não exclusivamente), linguagem.
5 Neste sentido, talvez seja facilmente compreensível o predomínio das performances
e instalações nos anos 80. Pois se a lógica do mercado reduzira
a razão de ser e o destino da atividade artística à idiotia,
é razoável que, inversa e compensatoriamente, tenha então
privilegiado métodos "politikós" de criação. Com a
vantagem adicional de que, assim, o artista era posto no centro
das atenções, em vez de sua arte, o que combina muito bem,
por um lado, com a redução (e a rendição) da arte ao mercado,
e por outro com o espírito do entertainment, do show
(business).
*
:Texto
de apresentação ao livro Musa Paradisíaca,
Antologia da Página de Cultura (1995-2000),
de Josely Vianna Baptista e Francisco Faria (Edições
Mirabilia, 2004). O livro pode ser encomendado pelo e-mail
mirabilia@edmirabilia.com.br.
*
Luís
Dolhnikoff, poeta e ensaísta, nasceu em 1961, em São
Paulo, mas vive hoje em Florianópolis (SC). É
autor, entre outros títulos, de Pânico
(1986), Impressões Digitais (1990), Microcosmo
(1991) e da coletânea de contos Os Homens de
Ferro (1991).
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