O trabalho poético
de André Dick vem despertando o interesse de poetas maduros
e de jovens críticos, bem como de significativas revistas
de poesia do Brasil atual. O autor estreou com um livro
de poemas, intitulado Grafias (Porto Alegre: Instituto
Estadual do Livro, 2002), e divulgou em 2002 e 2003 quase
duas dezenas de poemas nas revistas Cacto, Inimigo Rumor,
Et Cetera, e na Omelete Edições, publicação independente
produzida por Fabiano Calixto.
Ainda que seja pequena
a fortuna crítica em torno de seu primeiro livro, ela é
de alta qualidade. Seria interessante resumi-la aqui de
forma breve, exatamente para informar aos leitores os campos
já cobertos por essas análises, e, por outro lado, descortinar
outros vieses possíveis de leitura.
O livro Grafias
vem acompanhado por um texto muito esclarecedor, de autoria
do poeta e crítico Júlio Castañon Guimarães. Esse texto
busca estabelecer as grandes linhas que coordenam e balizam
o trabalho de André Dick neste livro. Guimarães inicia analisando
o título do livro, procurando com isso indicar o ''exercício
de uma adesão do poema à materialidade da escrita'', caracterizar
essa poética como alheia ao excesso e mapear a dimensão
da visualidade dos poemas, presente tanto nos componentes
temáticos quanto em sua organização sintática. Por outro
lado, ainda segundo Guimarães, o repertório simples e reduzido
dos elementos dos poemas é orquestrado por procedimentos
múltiplos e complexos, configurando uma ''poesia que trabalha
com zonas de silêncio, fragmentos, precariedades, indagações''.
E para dar concretude a essa análise geral, Guimarães ainda
enfoca essas grandes linhas em seu funcionamento no âmbito
de um poema específico, intitulado ''poeira''.
O jovem crítico de poesia
Paulo Ferraz também dedicou um texto longo e percuciente
à análise de Grafias (Novíssima poesia brasileira:
uma apresentação das poesias de Douglas Diegues e André
Dick. Sibila, São Paulo, n. 4, maio 2003.). Para
Ferraz, a principal matéria da poesia de André Dick é o
''mundo em fragmento'', tanto em termos de conteúdo quanto
de forma. Os poemas seriam um exercício de captação sensorial
do mundo, com palavras organizadas numa estrutura sintética
e incomum. Poesia cujo movimento é ''do mundo para o eu'',
um ''eu'' diluído que não tem o leitor como destinatário,
mas observador. E não de uma ''mensagem'', que não há, pois
aqui interessa rigorosamente a própria estrutura de linguagem
da poesia. Em contraste com este mínimo eu, são diversas
as referências a uma natureza personificada. Mas o mundo,
por outro lado, é também reduzido, resumindo-se a parcos
fragmentos geralmente domésticos, ao espaço da casa, já
que o espaço exterior é apenas aquele recorte entrevisto
por uma janela. O mundo exterior, na maioria das vezes,
são somente as imediações da casa. Essa ''poética do precário''
e do fragmento buscaria, antes de tudo, sensações e não
exatamente descrições ou a serventia dos elementos que configuram
os textos. Ferraz empreende ainda uma bela análise de um
dos elementos domésticos mais reiterados ao longo do livro:
a janela. Enquanto peça importante para a ''composição da
imagem metafórica dos fragmentos'', a janela surge como
mediadora entre o sujeito e o mundo.
O privilégio, por um
lado, de uma sintaxe extremamente recortada, de insinuações
e incompletudes, de estrofes que quase sempre não ultrapassam
dois ou três versos, de inumeráveis elipses a exigir do
leitor saltos e preenchimentos de sentidos que não estão
dados, afora outros aspectos, poderiam nos permitir aproximar
a poesia de Grafias de poetas contemporâneos como Régis
Bonvicino e Júlio Castañon Guimarães. Ou ainda do trabalho
do jovem poeta Tarso de Melo. Pense-se, por exemplo, em
termos de imagens ou metáforas, no lugar privilegiado que
ocupa igualmente a janela em um livro como Matéria e
paisagem, de Júlio Castañon Guimarães, onde descortinamos
um sujeito em estado de passividade e que também se compraz
em apenas observar o mundo exterior através dessa abertura
da casa. Ou na sintaxe rascante dos últimos livros de Régis
Bonvicino e dos poemas de Tarso de Melo, próxima dos alvos
visados por André Dick. Mas diferentemente de Tarso de Melo,
cuja exploração da linguagem em sentido estrito parece ser
ainda mais radical, André Dick destila uma experiência microscópica,
quase cotidiana, com os pequenos elementos de seu entorno,
como que numa anotação intermitente, a modo de diário, de
suas diminutas vivências com as coisas e consigo mesmo.
Vivências, note-se bem, que não implicam em uma participação
ativa do sujeito em seu entorno, mas centralmente uma atuação
passiva de registro e observação não objetivos, pois o que
se busca é delimitar no interior do sujeito as sensações
que ele consegue alcançar em confronto com o que vê ou capta
por outros de seus sentidos, como o ouvido ou a pele.
Creio que há dois aspectos
em Grafias que mereceriam uma abordagem mais vertical
a partir das interpretações até aqui empreendidas. Por um
lado, uma análise particularizada do modo como se dá a natureza
personificada nesses poemas. Por outro, uma compreensão
em detalhe de como se configura o ''eu'' poético, a
persona que se representa. Elejo o segundo problema,
pois me parece que através dele podemos reconhecer elementos
importantes que apenas aparecem insinuados nas leituras
já feitas. Evidentemente, a crítica pode ser progressiva
ou acumulativa, mas estou supondo mais que essas análises
podem compor também um campo de diferenças.
Se do mundo exterior
é a ''janela'' um dos elementos mais recorrentes, no mundo
interior do sujeito poético, a emoção mais repetida ao longo
do livro é a ''saudade''. Até porque em poucas vezes são
claras e denominadas as outras emoções do sujeito lírico.
Com relação à saudade, não. Ela invade em diversos momentos
a escritura, o que sugere um apelo, uma invocação que o
''eu'' poético não consegue bloquear ou de que nem quer
se desvencilhar. Esta ''saudade'' (atuação da memória) vem
de mistura com a ''lembrança'' (recordação) e com a ''espera'',
que em geral compõem um mesmo campo semântico de expectativas.
Mas o mais curioso é a ausência de qualquer esclarecimento
sobre o que se espera, o que se recorda ou do que se sente
saudade. Em contrapartida, seria produtivo investigarmos
a dimensão do ''esquecimento'' (também sistematicamente
referido ao longo do livro), como corolário analógico do
mesmo problema. Estes âmbitos, está claro, se ligam por
mais de um fio às dimensões do tempo (presente, passado
e futuro), da permanência e da fugacidade, da presença e
da ausência.
No poema gesto, logo
no início do livro, somos informados de uma ''espera'' sem
objeto. No poema folha, temos ''a lembrança de regresso
/ ao armário'', talvez para nele encontrar alguma coisa
que não é denominada. No poema lembrança, conectam-se
dimensões acima anotadas: ''como se desfaz / lembrança que
implica / permanência''. Destrói-se a lembrança (de algo
sempre ocultado) pela permanência que se esvaiu. É tão onipresente
a faculdade de lembrar, que mesmo as coisas a possuem, como
se vê no poema mudança: ''casa que se recorda''.
Em núcleo, lemos: ''sem a presença / ou lugar //
de quem não está''. A memória é de perdas. Confira-se o
poema memória: ''uma perda / um soco na memória''.
Ou o poema ''elipses'', onde algo (um sujeito? um jarro?
ambos?) é ''consumido pelo / corpo da memória''. A conclusão
não poderia ser outra da que temos no poema movimento:
'' esquecer influi / no pensamento''. Num único momento
do livro, há um esclarecimento sobre o que se esquece. No
poema olhos, lemos ''no branco dos olhos / ela encobre
/ o esquecimento / exato das ruínas - (...) alguém que se
anuncia / antes da perda''. Mas é notável que, mesmo quando
sabemos que são as ruínas que são esquecidas, a ação do
sujeito poético é encobrir esse esquecimento. E algo inominado
se perde.
Não deixa de ser muito
exasperante que não saibamos, na maior parte das vezes,
quais são os objetos que se espera ou se memoriza, quais
são as coisas que são esquecidas etc. Mas, por outro lado,
talvez nesta ausência de esclarecimento resida a principal
exigência dos poemas, ao transferirem para o leitor uma
tarefa de produção de sentido, obrigado que está a preencher
essas elipses com os campos de sua própria experiência.
O mapeamento das referências à saudade, portanto, é desolador.
A começar pelo poema exatamente intitulado saudade,
em que está dito ''onde o abandono da sala, / sua saudade''.
Se casas lembram, coisas (como que) sentem saudade: no poema
''manhã'', ''como se vidros // sentissem saudade / depois
que passa // a paisagem''. Em ''alguma palavra'', sabemos
apenas de ''alguma palavra, / fragmento, saudade''. Não
sabemos qual palavra, nem a causa da saudade. Em ausência,
com a mesma indefinição de base, há uma ''saudade na sombra:
nenhuma delicadeza // faz um corpo me tocar / na ausência''.
Em um raro momento de algum esclarecimento, podemos ver
em escrito, ''o desenho e a saudade / de alguém''. Afinal,
sabemos que é a saudade de alguém que possivelmente se quer,
mas não porque se quer.
Esse sujeito atravessado
por um ''espasmo'' (no poema elipses) não é o único
sujeito no mundo, mas parece ser o único sujeito que conta
no mundo (para o seu bem ou para o seu mal). Pois mesmo
o ''eu'' pode ser simplesmente elidido, como podemos ler
em linhas: ''esta carta / em que o céu não cabe,
/ sem selo, grafias, // extensões sozinhas / sem remetente''.
Diálogo entre linguagens sem suportes. Porém, perguntar
pelo ''eu'' poético é naturalmente um modo de perguntar
também sobre o ''outro'', o ''nós'' (aliás, a palavra ''nós''
não aparece nenhuma vez em todo o livro). Dessa perspectiva,
Grafias é quase omisso. Se mesmo o ''eu'' talvez
se evidencie muito mais através das coisas (daí a importância
de uma reflexão sobre a personificação do mundo), os ''outros''
nos poemas são figurações (personagens) quase ausentes.
Raríssimas menções a outras figuras humanas que não sejam
a da persona poética aparecem no livro, como nos
poemas mais referenciais num quadro de edward hopper
e crianças. E mais raros ainda os encontros entre pessoas.
Ainda no poema saudade, lemos que ''disseram ambos''
(o quê? a palavra saudade? saudade da ''paisagem silente'').
O ''outro'' é sempre demarcado a partir da distância tácita
da persona poética. Em pedra, por exemplo,
em que o ''seu abraço / [é] guardado / à margem''. Em ''não
este corpo'', em que encontramos ''não este corpo / nunca
tocado''. Afinal, ''pessoas são bulbos'' ( árvores).
No máximo, um ''gesto mudo / entre as coxas'' ( petúnia).
Ou a aparição feminina, raríssima no livro, enquanto sinônimo
de tensão, seja real ou fotográfica. Veja-se o poema
retrato, em que a presença de uma mulher, através de
uma fotografia sobre um móvel, ''repetia //a tensão / do
corpo''.
Há, ainda, um poema
que me parece particularmente esclarecedor dessa desolação
do sujeito lírico, de sua (não) relação com os outros sujeitos
do mundo. Certamente não por acaso, é o único poema do livro
em que aparece o pronome ''eu''. E mais, aquele que aborda
um dos sentimentos mais nevrálgicos da experiência humana
no âmbito da cultura do Ocidente Trata-se do poema Amor.
Não é a única menção ao ''amor'' no livro, citado outras
duas vezes e numa epígrafe (de Hilda Hilst). Mas no poema
Amor é que esse sentimento é abordado em mais profundidade.
Vamos a ele:
quando eu pensava "amor",
era vazio - geométrico -,
antecipado do corpo,
cheiro ou fração
de reter a perda,
plano antecipado
do horizonte
depois do sol
O amor é o vazio, mera
previsão do corpo, impulso de reter o perdido, projeção
de um ponto distante, tão distante quanto além o do sol.
E nenhum ''outro'' está configurado nesse texto. Mais ainda,
nele podemos observar a pré-figuração de um futuro irrealizado,
de um fracasso que já pertence ao passado. Isto permite
que retomemos as questões da memória, da lembrança, da saudade,
em uma palavra, o problema do Tempo na poesia de André Dick.
Salvo engano, afora este poema (que inclusive desalimenta
a perspectiva de futuro), a própria idéia de um tempo futuro
está banida de seus poemas. Neles só encontramos menções
de saudade por um passado informe, indefinido, e a experiência
de um presente acachapante. Que isto se coadune com a experiência
dos homens contemporâneos, longe de mim discordar, mesmo
sabendo que esta não é a única projeção possível, a única
vivência provável, ainda que a circunstância mais factual
nas condições atuais.
Ainda uma palavra sobre
os possíveis desdobramentos dessa poética que está se construindo,
com todo o risco que isto implica. Seria o caso de observar
rapidamente os rumos que o trabalho de André Dick tomou
nos poemas que ele publicou recentemente, tanto nas revistas
citadas quanto na Omelete Edições. As ''janelas'', a ''saudade'',
o ''lembrar'' persistem. Não é de espantar. São símbolos
muito caros ao poeta, ele precisará de muito tempo para
dissolvê-los, compreendê-los em toda a sua potencial extensão,
ou mesmo pode vir a nunca abandoná-los, no que não há nenhum
problema. Nesses poemas, pelo menos em um, intitulado
Folhas ( Cacto, n. 1, ago. 2002), encontramos
''o lugar em que se esteve / durante a saudade''. Se, portanto,
o campo temático permanece praticamente inalterado, com
''as coisas intercaladas / a sós no vácuo'' ( Pintura,
idem), insinuam-se aqui e ali indícios de exploração
de novas formas, nova sintaxe e organização do poema. Em
contraste com a sintaxe cortante de inúmeros poemas de
Grafias, com suas estrofes brevíssimas e seus versos
de poucas palavras (duas ou três, geralmente), estariam
os poemas Cedro, Esboço ( Et Cetera, n. 0,
verão 2003) e Regresso (Poucos escritos. Omelete Edições,
n. 8, ago. 2003). Neles, os versos se estendem, a sintaxe,
mais convencional, constrói estrofes mais longas, há momentos
quase narrativos. E isto sem nenhuma perda de qualidade.
Muito ao contrário, o que se verifica é também o domínio
delicado desses modos de escrita por parte do poeta. O mesmo
pode ser notado em suas primeiras experiências com o poema
em prosa, tanto em Matizes (Poucos escritos), quanto em
'Biblioteca e Trajetória (Inimigo Rumor, n. 14,
1. sem. 2003). É de se prever, portanto, que o poeta nos
prepara uma bela surpresa no seu próximo livro.