ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

DA POESIA E DOS DIÁLOGOS INTERARTES

 

Abreu Paxe

 

 

Abordar um texto artístico na dimensão a que Luís Serguilha o propõe remete-nos sempre a muitas cautelas, entrecortadas entre avanços e recuos, certezas e incertezas, atenção e desatenção, paciência e impaciência e, por fim, entre finitude, memória estática e infinitude, visão de futuro. Para assim permitir que façamos, neste turbilhão, as seguintes perguntas: a de saber, por um lado, se o que estamos a ler é poesia? E, por outro, se é, por que causa estranheza?

 

Como sabemos que uma das funções da poesia, entre outras, é a de permitir o alargamento dos horizontes de percepção e de imaginação do leitor, então, em nosso entender, afirmamos que o texto que estamos a analisar cabe no que chamaríamos de poesia, pelo fato de verificarmos que os elementos que organizam as suas estruturas ampliam as dimensões estéticas pela percepção.

 

Por outro lado, esse texto causa estranheza pelo fato de fundar-se, pensamos, nas origens remotas da poesia, nas quais ainda se questiona entre ela e a linguagem o que terá surgido primeiro. Aqui a língua e as suas formas convencionais e imediatas são dispensadas em detrimento da linguagem, vista no seu processo interno, às vezes aleatório, de organização das imagens. O mesmo pode acontecer com a poesia no seu processo, ou de criação ou de leitura. Ao olhar para a poesia neste âmbito, torna-se forçoso vigiarmos, como leitores, a nossa condição de criadores e também de construtores do poema.

 

Vamos no texto que se segue e nesta condição, discutir e mostrar, no limite das nossas percepções, como é que se organizam os elementos que estruturam o texto poético de que estamos a falar e as suas mais remotas relações com a arte, vigiadas na díade entre o verbal e o não-verbal (visual), numa dimensão em que as imagens que captamos pela percepção podem vir a funcionar em suportes artísticos diferentes, embora o mote para Luís Serguilha seja as palavras, ou melhor, o suporte escrito.

 

Um livro de poesia, ou qualquer outro, pensamos, pode começar-se a ler também a partir da capa. A partir mesmo daí podemos construir os sentidos de leitura e estruturá-los de forma coerente de modo a definirmos possíveis horizontes de leitura.

 

Ao olharmos, depois de os termos lidos, a capa dos livros de Serguilha, notamos que todos eles são ilustrados como a seguir os descrevemos; o “Lorosa’e - Boca de Sandálo”, com o quadro de José Passos, o “Externo tatuado da visão”, com desenhos e pintura de Sara Rodrigues, o “Embarcações”, com a pintura de Passos da Silva, o “A Singradura do Capinador”, com a capa de Kata design, a partir da pintura de Ana Viana e, por fim, o “Hangares do Vendaval”, com a capa Infopoema de E. M. de Melo e Castro. Como se pode ver pelas ilustrações das capas, a partida, mantém-se de forma explícita, como primeira impressão de leitura uma relação entre poesia e pintura.

 

Outro indicador de leitura para esta relação entre pintura ou desenho e poesia pode ser verificado nos livros “O Externo Tatuado da Visão”, onde as seis partes de que este se compõem são ilustradas com retratos, “Embarcações”, em que as três partes de que este se compõe são ilustradas com desenhos, e “Hangares do Vendaval”, que  realiza um diálogo intertextual, como se pode ler na ficha técnica, com dezasseis infopoemas de E. M. de Melo e Castro. Por outro lado, no livro “Lorosa’e - Boca de Sandálo” as palavras e as frases são distribuídas, anunciando quebras sintáticas próprias de textos cujas palavras e frases e os intervalos que se constroem entre elas recuperarem imagens, nomeadamente, imagens visuais, sonoras, táteis, olfativas, sugestões básicas ligadas à nossa percepção. Em “A Singradura do Capinador”, a leitura não é feita a partir da capa pela ordem do título, mas sim pelo nome do autor; neste livro, fazemos, ao folheá-lo, um exercício de leitura não habitual.   

 

Mas, ao tomarmos contato para além da primeira impressão de leitura na relação entre as artes plásticas e não só com os poemas, vemos que esta relação, este diálogo vem expresso em alguns dos seus poemas.

 

A estratégia de construção poética de Serguilha comporta na sua comunicação um grande suporte visual, extraído no plano da significação por meio de recursos lexicais que se combinam e recombinam, favorecidos pela elasticidade sintática da língua portuguesa. Os efeitos semânticos sobrepõem-se no plano do conteúdo. Por meio das figuras semânticas, o seu texto atenua, amplia, disfarça e simula, entre outras estratégias, a mensagem:

 

é o sangue das espáduas que resiste   ao muro sucessivo dos globos/à ferida sonora à secura a descobrir caprichosamente as partículas/na transição muda das mandíbulas dos acentos fúnebres//É a artéria caiada que identifica o óleo de palma no couro das chagas (…) Serguilha, Lorosa’e, 2001, p. 35” ou ainda “ também cisterna peninsular na ondeação Angolana/no enjoo das formigas carnívoras   toalhas exaltando os caixões de/ fogo/terror dos metais solúveis no zoo humano apoteoses da cavalgada/amável/onde o sítio do cenário é um gorro apodrecido (…) Serguilha, Lorosa’e, 2001, p. 125” ou também “anonimato deslizar na ninfa ocasional da incansável serra onde o sol/é a fêmea que mistura minuciosamente as vidas (…) Serguilha, Lorosa’e, 2001, p. 151.

 

Trata-se de expressões de conteúdo metafórico, por isso passível de estimular imagens mentais que a representariam como se fosse uma foto, ou uma gravura, como ainda se pode ver:

 

(…) ao azul crepitante das pálpebras/que corre insistentemente/como um dilúvio de refúgios comprometidos(…) a cauda incompleta das mariposas, Serguilha, Embarcações, 2004, p. 18” ou ainda “(…) como um turbilhão ancestral da sede a compor/delicadamente/os golpes cinematográficos da florescência/uniformemente desmantelada/pela mecânica suprema das línguas (Serguilha, Embarcações, 2004, p. 20) ou também (…) e o hexágono táctil da lágrima empurra o naufrágio/transparente do lábio silencioso (Serguilha, Embarcações, 2004, p. 138).                

Não é só esta relação de diálogo visto nas capas e nos poemas que sustenta o que descrevemos. A disposição gráfica dos poemas nas páginas, a organização das palavras e das frases se faz pela intensificação e ampliação, as rupturas sintáticas, os recortes devolvem-nos a viva imagem de que, como dizia Castro, “ (…) todo livro constitui uma só unidade poética que o leitor poderá fragmentar, conforme o ritmo da sua leitura. Este fato aponta mesmo para um texto único que poderá ser lido recombinadamente, construindo o leitor as suas próprias sequências, as suas próprias pausas, e os seus próprios sentidos de leitura”1

 

A forma como as palavras e as frases se distribuem na páginas, às vezes de modo aleatório, fazem-nos recordar, por um lado, as propostas da poesia visual ou ainda as formulações concretistas e/ou exprimentalistas construídas no plano visual, e também as imagens que apelam e estruturam o provérbio em algumas práticas patrimoniais angolanas. Por outro lado, a forma como o poeta organiza os seus textos assemelha-se à arte fractal africana pelo caos, no qual as linhas que constroem a desprogramação das estruturas frásicas e textual também organizam sentidos de leitura. Aqui não só passamos a vigiar as palavras, assim como os outros elementos que se anunciam pela ruptura sintáctica, para explorarmos grafismos, desenhos ou a virtualidade artística da própria página. Todos estes elementos ajudam a construir o poema. É daí que nasceu o esforço de levar a nossa atenção a retomar, porque assim se evoca, ao nível das imagens primordiais, as que revelam ao mesmo tempo um raciocínio metafórico, uma composição visual e um repertório de sons organicamente espalhados pela mancha gráfica ou pelas redes neuronais.

 

Esta poesia, a de Luís Serguilha, liga-se no plano visual a essas formulações, entrelaçando-se a tal ponto a visualidade e a verbalidade que se torna difícil vê-las separadas; ele explora e extrapola as possibilidades da verdade convencional na virtualidade artística da página, fazendo-nos recordar o desenho ou mesmo a pintura como elementos de comunicação. Como dizia Soares, “aquele mito modernista, estruturalista, pós-estruturalista, contemporâneo e globalizado, aquele que nos fala da desmultiplicação de sentidos do poema, realiza-se aqui”2. Isto é, como se lê em Castro, “um texto que comporta intermitências, descontinuidades e saltos, assim só se enriquecendo em termos de fruição e de significados recorrentes (…). Ou seja, um texto que está indo na direcção do chamado hipertexto, embora construído e lido apenas no formato livro e no suporte papel. Mas com ele se podia construir facilmente um hipertexto em suporte informático interactivo”3. Ou também, como se lê em António, “quanto ao processo criativo, é possível estabelecer relações e afirmar que Serguilha transforma o action painting de Jackson Pollock em action writing, que explora as técnicas do poema automático mecânico dadaísta e a escritura automática dos surrealistas (…) essa procura de significado toma rumos diversos, tira o chão do leitor e o remete a uma espécie de linguagem onírica, primitiva, inaugural, uma volta no tempo”4.

 

Na verdade, este texto poético discute modos de ver, de perceber, de representação, verdade e ficção, e ainda explora a tensão provocada pelos embates com os sentidos, podendo desencadear discussões importantes sobre estética, a técnica e ainda a simulação das novas tecnologias.  

 

Em suma, constatamos que todos os elementos que vão desde as ilustrações nas capas, assim como no interior dos livros, à  própria disposição gráfica e à semântica dos poemas comunicam interligados pela imagem. A visualidade também orienta o sentido de leitura dos próprios poemas pela mediação das artes plásticas e não só, para formar uma totalidade poética num todo coeso e coerente. Aqui o exercício de leitura não é feito só como convencionada, da esquerda para a direita ou de cima para baixo, mas sim os poemas que temos em presença podem ser lidos também como uma gravura, uma escultura, ou uma peça fílmica, dando às palavras ou às frases uma necessária densidade simbólica. O olhar distribui-se pela mancha tipográfica do papel ou pelos resíduos da fragmentação dos poemas.

 

Este texto teve como objetivo trazer uma pequena amostra de resultados parciais dum trabalho que se quer amplo e aprofundado. O que se pretendeu na verdade foi analisar as funções da linguagem na perspectiva semiótica para promover uma reflexão sobre a expressão poética de Luís Serguilha, bem como os mecanismos cognitivos que levam o leitor a compreendê-la, num princípio de vigiar o lado icônico (representativo, analógico, similar) e indicial (indutivo sugestivo) alicerçados na imagem (visualidade), para a compreensão das funções da linguagem na construção de imagens estilísticas.

 

 

NOTAS

 

1 Castro, Embarcações, 2004, p. 10

2 Soares, Ovi-Sungo, 2007, p. 39

3 Castro, Embarcações, 2004, p. 10

4 António, Hangares do Vendaval, 2007, pp.158/159

 

 

 

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Abreu Castelo Vieira dos Paxe nasceu em 1969 no vale do Loge, município do Bembe (Angola). Licenciou-se no Instituto Superior de Ciências da Educação (ISCED), em Luanda, na especialidade de Língua Portuguesa. É docente de Literatura Angolana nesta mesma instituição e membro da União dos Escritores Angolanos (UEA), onde é secretário para as atividades culturais. É técnico de comércio externo pela escola de comércio. Publicou A chave no repouso da porta (2003), que venceu o Prêmio Literário António Jacinto, e O Vento Fede de Luz. No Brasil, foi publicado nas revistas Dimensão (MG), Et Cetera (PR), Zunái (SP) e Comunità Italiana (RJ), e em Portugal, na antologia Os Rumos do Vento, (Câmara Municipal de Fundão).

 

 

Leia também poemas do autor, as Cartas de Luanda (I), (II) e (III), uma entrevista com o poeta e um ensaio de Claudio Daniel.

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