ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

TECER, POR TESSLER

 

Agnaldo Farias

 

Há perto de quatorze anos a artista Élida Tessler, amante da literatura, de James Joyce, Raymond Queneau, Georges Perec, Jorge Luis Borges e de tantos outros que seria injusto permanecer nesse inventariamento, deslocou-se do desenho e da gravura para um projeto de grande fôlego e ainda em pleno andamento, uma grande obra em processo intitulada Falas Inacabadas, que persevera através de bifurcações sucessivas, fundada na lida sistemática com uma extensa quantidade de materiais, direta e indiretamente associados a palavras. E chama a atenção o fato de que, conquanto para Elida Tessler as palavras sejam percebidas a partir de suas qualidades materiais, como densidade, espessura, sonoridade, testadas em diferentes carnalidades, ela está interessada no modo como esses atributos repercutem em seus significados. Assim, a mesma palavra, escrita à mão ou impressa em solução rútila, industrial, pode ter alterado o perfume do seu sentido. E não é mesmo provável que isso aconteça?

 

Mas será incorreto perceber a poética da artista como uma ação que se dá na esfera estritamente corpórea do signo verbal. Até porque não existe palavra sem as coisas que ela leva à trela; objeto, sentimento ou qualidade, à qual ela alude. Palavras e coisas estão enredadas de tal modo que mesmo quando se trata de um simples “caça-palavras”, como este que você tem em mãos, um jogo cuja lógica aparentemente consiste apenas em pescar de uma tessitura quadrilátera, os pequenos e lineares fragmentos que pertencem a uma outra lógica, verbal, substância da linguagem e da comunicação, pois mesmo aí, dizia, não há como, surpreendida a palavra, sopesá-la por um momento, auscultá-la, como a conferir que aquele desenho é mais do que um acontecimento plástico, que há algo palpitante submerso em seu interior.

 

O homem sem qualidades (...), título da obra prima e inacabada do escritor austríaco Robert Musil, e O homem sem qualidades caça palavras, título também desta revista/catálogo, assim como da exposição/instalação composta por cento e trinta e quatro telas realizadas em algodão cru, com as dimensões de 0,90 x 130 cm cada, significa o mergulho mais radical da artista na direção da palavra, ela mesma. Até aqui, obras como Doador, de 1999, Claviculário, de 2002, Todos os nomes chaves, de 2003, traziam-nos palavras diretamente associadas à objetos, tornavam evidente as complexas relações estabelecidas entre ambos como, por exemplo, a surpreendente constatação ofertada por Doador de que uma gama infinita de objetos, como tais voltados a satisfação de nossos desejos, bem como o abrandamento dos nossos esforços, tivessem a palavra dor como traço comum.

 

Com seu empenho e determinação particulares, Élida Tessler enfrentou as hum mil duzentas e sessenta e oito páginas da edição brasileira do livro, na caça dos, salvo engano pois eles parecem proliferar noite a dentro, cinco mil trezentos e sessenta adjetivos, isto é, 5360 qualidades, fulcro da obra máxima de Musil. Ora, segundo os parâmetros da ontologia clássica, o mundo consiste em coisas – pedra, árvore, nuvem, pessoa etc –, cada qual determinada por suas qualidades. Empreender a subtração de seus predicados, tal como efetuou Musil, equivale a abstraí-las, enfim, levar para o mundo o princípio basilar do mundo moderno, que é, a começar pelo homem, da erosão das singularidades. Empreender, como fez nossa artista, à subtração dos adjetivos do livro de Musil, significa levar ao extremo o projeto do escritor, uma ironia da ironia que não sabemos se ele teve a ousadia de pensar, e que merece ser considerado um desdobramento da mais alta importância de seu pensamento e obra.

 

Destituídas de suas qualidades as coisas entram em estado de letargia, flutuando à deriva até que alguém as resgate, alguém que traga de volta os adjetivos, as palavras redentoras porquanto capazes de devolverem a diversidade do mundo. Daí sua importância, leitor amigo, pois esta é a sua tarefa: tomar esta revista nas mãos e caçar os adjetivos divididos pelos 134 caça-palavras que estão dentro dela. De posse deles você poderá enfrentar o mundo apaziguado, andando pelas palavras sem se confundir com o zumbido intermitente dos sons sem sentido, observando cada coisa com cuidado para melhor escolher a qualidade a ser nela injetada e que a fará reviver.

 

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