PERCEPÇÃO
E A FILOSOFIA DA FORMA:
A POESIA DE ARNALDO ANTUNES
Alessandra Squina Santos
Nesta época de
meios de comunicação avançados, de informação
constante e de uma penetração tecnológica
nas artes, a confluência entre palavra, imagem e som
é cada vez mais difundida e esperada. A interação
dos meios é vocabulário comum num momento histórico
no qual a maioria da população mundial vive
no meio urbano. A poesia de Arnaldo Antunes é exemplo
vivo deste momento por explorar a capacidade poética
de outros meios artísticos, tais como a música
e as artes plásticas, indo desde a caligrafia até
a computação gráfica. Este aspecto de
sua poesia é o que a propulsiona a ter uma qualidade
extrasensorial, no sentido que suas criações
poéticas não só abrangem tematicamente
as percepções sensoriais, mas também
exploram os efeitos dessas percepções no leitor.
É dentro destes parâmetros que analisarei a poesia(1)
de Arnaldo Antunes como uma produção intersemiótica,
com base lingüística mas de forte ligação
com as artes visuais; e como uma poesia de um formalismo renovado,
que leva em consideração as percepções,
valorizando também o conceito e a temática social
em termos de sua consciência crítica e de seu
posicionamento em defesa à diversidade poética.
Desde o ínicio
dos anos 80, Arnaldo Antunes é agente ativo nas artes
brasileiras. Além de sua famosa participação
com os Titãs, Antunes seguiu uma carreira musical solo
de sucesso. Sua contribuição como músico
colocou-o numa esfera de reconhecimento nacional e internacional.
Antunes também é artista plástico de
importante dimensão. Sua carreira como artista gráfico
está presente no projeto de seus próprios livros
e discos, assim como em várias revistas e publicações.
Ele também produz vídeos e escreve ensaios como
crítico cultural . Podemos afirmar que sua participação
extra-literária e a sua contribuição
na produção cultural brasileira em diversos
meios é evidente. A diversidade de seu trabalho oferece
inúmeras possibilidades de análise, e é
claro que há um intercâmbio entre sua produção
musical e poética . Apesar de sua disseminação
variada, suas escolhas artísticas mantêm uma
coerência e linguagem próprias. O próprio
Antunes declarou: "é por meio da palavra que eu
transito entre as linguagens. Ela é uma espécie
de intersecção" (Feix, 9).
Apesar disto, a obra poética
de Arnaldo Antunes resiste classificação. Porém,
há uma identificação clara com tendências
e explorações formais e com inspirações
construtivistas, cuja manifestação maior vem
nas expressões intersemióticas. Seu estilo é
minimalista, com um rigor e uma síntese experimental-sem
no entanto perder o lirismo. De acordo com sua própria
definição, sua obra é "inclassificável"
. O crítico literário Charles A. Perrone descreve
o trabalho de Antunes como "verso nominativo minimalista
e arte verbal-gráfica, chegando até a poesia-visual,
a caligrafia lúcida e a palavras-imagens geradas no
computador. Tal produção justamente pertence
à categoria de criação intersemiótica"
(Perrone, 114). Podemos observar sua obra poética partindo
desta premissa, apesar de que sua poesia requer uma análise
textual própria devido a características pessoais
inovadoras. Para isto, alguns esclarecimentos históricos
e um esboço dos termos em questão facilitarão
esta discussão.
Dentro da trajetória
da poesia brasileira, desde Oswald de Andrade e, mais tarde,
das conquistas da poesia concreta, vemos uma preocupação
crítica na criação. A poesia concreta
proporcionou uma proximidade com as artes plásticas,
com o aspecto visual da poesia e com as inovações
tecnológicas, as quais abriram espaço para que
a produção poética experimentasse com
novas técnicas, utilizando som, vídeo, recursos
de tipografia e computadores. Como precursora, a poesia concreta
já tinha uma natureza intersemiótica por sua
interação dos códigos, por seu aspecto
teórico e crítico em relação à
linguagem, e sua articulação e emprego da simultaneidade
nas suas produções poéticas. Mais tarde,
com alguns poetas brasileiros dos anos 70 e 80, vemos tendências
intersemióticas no que Charles A. Perrone chamou de
produção construtivista . Perrone define a criação
intersemiótica como "a interação
de signos linguísticos variados: a palavra impressa
em múltiplas representações tipográficas
e espaciais, o verso ilustrado, o projeto gráfico,
a fotografia e a mistura disto tudo" (Perrone, 133).
Em relação a estes poetas, ele afirma que eles
"geralmente repudiaram a sintaxe linear e tinham uma
grande preocupação com a materialidade da língua
e com a diagramação", demostrando interesse
tanto em fontes empíricas, como em aspectos extra-verbais
do texto em termos da oralidade e da linguagem da publicidade.
Assim, apesar da poesia de Antunes não se enquadrar
dentro de nenhum movimento ou programa organizado em sua produção
tipicamente contemporânea e individual, surgem nela
algumas tendências intersemióticas. Arnaldo Antunes
declarou não haver mais a necessidade para movimentos
nas artes contemporâneas, tais como foram a poesia concreta
ou a Tropicália. Ele argumentou pela importância
de um "estado pluralista, diverso, no qual a novidade
pode despontar para muitos lados e acaba-se criando um repertório
mais solto". Porém, ele também menciona
como influências na sua obra desde a poesia de vanguarda
de Oswald de Andrade, até os poetas concretistas (especialmente
Augusto de Campos e Edgard Braga), a poesia de João
Cabral de Melo Neto, a prosa de Guimarães Rosa e de
Paulo Leminski, entre outros (Ferraz, 9).
Arnaldo também
argumentou a favor "de várias gerações
de poetas que atuam com independência estética,
frente a uma tradição que inclui a contribuição
preciosa da poesia concreta em seu repertório de referências
e procedimentos, dando desenvolvimento ao fértil campo
de pesquisas ali aberto, não só na poesia visual
como na sua contaminação em outras mídias"
(Antunes, 2000, 93). Sua poesia não é concreta,
até mesmo porque esta declaração exigiria
um anacronismo pouco relevante no caso de Antunes, mas o poeta
estabelece sua posição quanto às inovações
e às possibilidades que esta tendência proporcionou
às gerações futuras de poetas.
Outro elemento importante
em sua obra poética é seu aspecto formal-sua
busca pela objetividade e seu interesse pelas definições.
O próprio Arnaldo menciona que é o "excesso
de definição [de seu trabalho] que gera estranhamento"
. Estranhamento (ostranenie), termo do formalismo russo,
conceito do crítico Victor Chklovski (1893-1984), o
qual identifica um momento onde "a função
instrumental da linguagem diminui e o caráter objetivo
das palavras é posto em primeiro plano", onde
o escritor modifica as percepções habituais
do leitor ao ressaltar a artificialidade do texto. O primeiro
paralelo formalista, por assim dizer, pode ser traçado
devido à consciência do processo de criação
na obra de Antunes. Para os formalistas russos, a intenção
da boa obra literária era de desafiar a noção
da obra de arte automática, habitual e do pensamento
"algébrico", oferecendo uma alternativa criadora
que proporcionaria uma distância desfamiliarizante ao
leitor através de obras poéticas que apresentassem
elementos comuns da realidade como se estivessem sendo vistos
pela primeira vez. Este distanciamento aguçaria os
sentidos, mudando a reação do leitor quanto
ao mundo ao submeter as formas habituais de percepção
a uma conscientização do processo das formas
literárias, renovando assim a relação
do leitor com suas próprias percepções.
Na poesia de Antunes, há uma preocupação
constante da conscientização não só
do meio artístico em questão, como também
do processo da produção artística, da
técnica e do método da criação
poética, e de um coeficiente distanciador quanto aos
elementos habituais nos componentes de sua poesia. Nota-se,
especialmente nos seus primeiros livros, uma linguagem que
desfamiliariza objetos e conceitos banais, lugares-comum e
aspectos da realidade desvalorizados e menosprezados devido
à sua automatização.
O segundo paralelo formalista
vem da importância da visão e do visual (e das
percepções sensoriais em geral) na obra de Antunes.
No ensaio "A Arte Como Técnica" de Chklovski,
há uma intenção de transmitir, através
da arte, a sensação das coisas como elas são
percebidas, não como elas são reconhecidas
daí o processo de estranhamento. Neste projeto
de renovação das percepções sensoriais,
Chklovski já diz que "o objetivo da imagem não
é tornar mais próxima da nossa compreensão
a significação que ela carrega em si, mas criar
uma percepção particular do objeto, criar a
sua visão e não o seu reconhecimento" (Chklovski,
27). Neste sentido, podemos traçar um paralelo no projeto
estético de Antunes devido ao processo de transformação,
deslocamento e inversão das percepções
na sua forma literária/poética. No entanto,
apesar das semelhanças, sua obra poética é
vista aqui como um formalismo renovado, devido a um fator
importante: num sentido, o processo de estranhamento na obra
de Arnaldo Antunes aproxima-se mais de um distanciamento brechtiano,
baseado no "efeito de alienação" onde
o público (ou leitor) não é passivo,
mas é consciente do processo criativo e do movimento
e das mudanças deste processo, efetuando assim um nível
politico da estética. Para Brecth, o efeito de alienação
revelaria os meios de produção artística,
"despertando" assim o público consumidor
da arte, o qual é anestesiado pelos termos habituais
e familiares aos quais estão acostumados. Neste sentido,
e como já observou Haroldo de Campos, a noção
brechtiana de "ver com novos olhos" é semelhante
ao "ver com olhos livres" de Oswald de Andrade (Campos,
18). Este distanciamento crítico presente na poesia
de Arnaldo Antunes coexiste com sua perspectiva experimental,
sempre aberta a novas técnicas e novos métodos
sem perder a interrelação da forma com o conteúdo.
Neste sentido, o formalismo
da obra de Antunes não só tem um efeito estético,
mas o poeta aborda as conseqûencias sociais da recepção
literária em sua relação interativa e
crítica com o leitor, desafiando sua posição
e questionando as leituras tradicionais e os significados
pré-existentes, revelando os mecanismos hierárquicos
da linguagem. Os deslocamentos de sua poesia causam um distúrbio
da significação dominante que se manifesta na
retórica e no discurso do cotidiano. Portanto, a obra
de Antunes não só proporciona uma distância
crítica mas, num nível conceitual, convida a
participação do leitor e proporciona uma interação
atuante.
Sua poesia dá preferência
aos versos livres, no entanto, há algumas exceções.
Seu trabalho resiste o eu-lírico, mas às vezes
o desestabiliza. Mesmo nos poemas que são mais rigorosamente
formulados em termos de métrica e rima, não
há regras de identificação com uma persona
poética, mas sim uma tentativa de transgredir o subjetivismo.
Nota-se uma preferência e a presença da simultaneidade
(semântica e sintática) dos vocábulos,
e figuras de linguagem como inversões, repetições,
sinestesia e justaposição, assim como trocadilhos,
deslocamentos, colisões, ecos, obscuridade, reticência
e pleonasmos. Em termos visuais, estão presentes em
sua poesia a caligrafia, as imagens fotográficas, as
ilustrações, os jogos espaciais, a exploração
dos espaços gráficos e os deslocamentos visuais
(em termos de separação dos vocábulos,
pontuação usada como versos, etc.). Além
disso, a tipografia e a diagramação são
exploradas ao máximo em seu potencial de contribuição
visual ao poema.
Seu segundo livro Psia
(1986) oferece poemas que questionam a ligação
do poeta com as tradições líricas anteriores.
Desde o título há uma associação
com a palavra "poesia", menos as letras "o"
e "e". Esta palavra inventada joga com as expectativas
do leitor quanto a morfologia, alterando a estrutura da palavra
e sua grafia. Aqui também se percebe a intertextualidade
interna na obra de Arnaldo Antunes, evidente na repetição
de alguns de seus poemas em livros diferentes e nos temas
e recursos empregados em sua poesia. Na verdade, "Psia"
ecoa o título de seu primeiro livro de poemas visuais
OU E (1983), já que o último poema do
livro está conectado a um dos primeiros (onde uma passagem
bíblica citando nomes é posta lado a lado com
os nomes de uma lista telefônica), mas também
há um rompimento da palavra inventada "psia"
onde o "ou" e o "e" encontram-se fisicamente
impressos entre "p" e "sia".
Já na orelha do
livro, Antunes inicia outro jogo morfológico recorrente
quanto à flexão de gênero das palavras,
ao indicar que a palavra "psia" é o feminino
de "psiu", interjeição sem flexão:
"Alguma coisa entre a piscina e a pia./ Um hiato a menos".
Outros poemas neste livro (e em outros livros de Antunes)
exploram esta mesma qualidade de modificação
da flexão de gênero de palavras como verbos e
advérbios, através da modificação
em sua estrutura vocálica. Considerando sua escolha
na mudança de gênero, o poeta joga com o significado
das palavras, possibilitando assim a simultaniedade de significação.
Por exemplo no poema "o/ olho/ (fêmea)/ olha"
há um colapso no processo de flexão, no sentido
que "o olho" masculino, e sua mudança de
gênero (impossível), torna-se "possível"
na leitura onde a conjugação do verbo "olhar",
vira fêmea de "olho": a "olha".
Dentro desta característica, o poeta explora a morfologia
dos vocábulos, desafiando suas limitações
estruturais, modificando normas, criando assim novas possibilidades
lúdicas de leitura. Outro exemplo seria o poema "Algo
no mar", onde o vocábulo "mar" torna-se
"a mar", criando um duplo sentido e uma dupla leitura:
a feminização de mar proporciona a transformação
do "mar" para verbo "amar".
Ainda na orelha do livro,
o poeta estipula o tom desta coleção de poemas,
dizendo que desenha as palavras com cuidado na página,
para "transformá-las em coisas,/ em vez de substituírem/
as coisas". Aqui podemos perceber seu intuito de concretização
das palavras, negando uma representação ou,
neste caso, uma substituição, mas tentando uma
transformação da materialidade da palavra na
poesia. Esta noção é mais evidente no
livro As coisas (1992).
No primeiro poema de Psia,
há outra forma recorrente na poesia de Antunes: a transformação
de provérbios e o processo de inversões (de
expectativas da ordem das palavras, quer seja semântica
ou sintática). Ou seja, dentro de um projeto de estranhamento,
o poeta usa provérbios comuns e conhecidos, transformando-os.
Neste caso, o poema/aforismo, "Quem com ouro fere?"
é uma substituição (ouro por ferro) e
uma ruptura com a expectativa do leitor, cujo conhecimento
prévio do provérbio original "Quem com
ferro fere, com ferro será ferido" desestabiliza
a leitura, complicando a relação do leitor com
a conotação do provérbio. Mais uma vez
Antunes lembra uma noção brechtiana de deslocamento:
ao desconstruir um provérbio, o poeta destrói
ideologias transmitidas por gerações através
da autoridade da tradição. Já no poema
"H2O MEM", além da exploração
gráfica, há uma coleção de reflexões
sobre a morte: "Primeiro veio o homem, depois sua morte",
ou "o tédio é ausência de morte.
Ou de sorte". Em seus aforismos há uma indagação
e um rompimento com as questões levantadas pelo próprio
poema.
Outro exemplo lúdico e de rompimento das expectativas
sintáticas do leitor é "Há milhares
de ________s", que é um poema com lacunas para
serem preenchidas. Este poema leva a interação
do leitor para um nível mais literal. O leitor não
é apenas forçado a reler o poema, mas também
a criar possíveis palavras para preencher as lacunas.
Além disso, Antunes inclui vocábulos homófonos
e homógrafos em vários de seus poemas, jogando
também com as semelhanças e as diferenças
das palavras.
No poema "porque
eu te olhava e você era o meu cinema...", encontram-se
referências à cultura popular e à literatura
nacional, onde personagens do cinema (Scarlet O'Hara e Bambi)
e personagens da literatura (Ceci, Capitu, Pagu) estão
lado a lado. Este poema de conteúdo sentimental, contextualiza
suas referências num tom paródico, mais uma vez
imitando uma linguagem e invertendo-a. Antunes utiliza um
discurso romântico, modificando noções
comuns do papel da poesia. O poema rompe expectativas ao combinar
a cultura popular com a cultura erudita (cinema e literatura),
personagens fictícios da literatura brasileira com
personagens da história, uma escritora comunista com
a cultura de massas. Além disso, esta confluência
de elementos evidencia a justaposição de elementos
temáticos ímpares na poesia de Antunes.
Em seu livro Tudos
(1990), há um movimento e um dinamismo das palavras
característicos. Já no título, ele flexiona
o substantivo "tudo" em número-mais uma alternativa
não-prescritiva em sua gramática poética.
Neste livro, o foco está nas inversões, no uso
de ilusões óticas e de trocadilhos visuais.
É neste processo de modificação e de
exploração do potencial poético das palavras
que Antunes explora os deslocamentos gráficos em Tudos,
literalmente entortando as palavras, utilizando a caligrafia
e as distorções óticas, como no poema
"tudo ou tudo", o qual também é uma
expressão modificada (tudo ou nada). Aqui também
encontramos o uso extenso de imagens e de poemas gerados através
da computação gráfica. No poema "derme/verme",
a caligrafia mistura-se com a tipografia, assim como com imagens
da pele humana, imagem de contrastes que, de acordo com Antunes
"transfere a questão fisiológica da decomposição
do corpo humano após a morte para a questão
da linguagem em relação aos seus meios de produção
e reprodução" (Antunes, 2000, 67), demonstrando
a preocupação conceitual do poeta em relação
a execução gráfica do poema.
O último poema
do livro é uma fotografia do próprio Antunes
manipulada para que, em vez de olhos e nariz, o poeta tenha
quatro bocas em sua face. Ele até muda a grafia de
certas palavras no poema "hentre/ hos/ hanimais/ hestranhos/
heu/ hescolho/ hos/ humanos", redigido em uma caligrafia
que derrete. Assim, o trabalho deste livro demonstra a exploração
intersemiótica, utilizando imagens e sinais gráficos,
onde o efeito ótico dos poemas é levado aos
seus limites máximos. Em Tudos, os vocábulos
não são o que parecem, transformam-se e passam
por metamorfoses, mais uma vez iludindo as expectativas óticas
convencionais do leitor e modificando sua maneira de ver.
Aliás, é
neste livro que os poemas abertamente abordam a visão,
dentro dos trocadilhos visuais e das condições
espaciais e óticas nas quais os poemas são impressos.
Um dos poemas compõe-se de uma lista de catorze substantivos,
sendo que o último é "olho", acompanhados
por catorze verbos distintos, dos quais todos se referem a
uma forma de ver, associando o nome da esquerda com o verbo
da direita. Por exemplo alvo - mira, cor - enxerga, etc. Assim,
o poeta estabelece uma relação visual com os
nomes das coisas, juntamente com a sua propensão à
utilização de pares associativos em seus poemas.
Ainda em Tudos,
o poema "Os nomes dos bichos não são os
bichos" apresenta uma das presenças mais fortes
na obra de Arnaldo Antunes: a nomenclatura . Em sua poesia,
podemos perceber uma afinidade e um jogo com noções
lingüísticas ponderadas por Ferdinand de Saussure
(1857-1913), as quais revolucionaram o estudo da literatura.
Uma dessas noções é a idéia de
que é a perspectiva que cria o objeto, e a outra é
a observação que a linguagem é composta
de convenções estipuladas e institucionalizadas,
códigos que tornam-se sabedoria comum à guisa
da comunicação (desenvolvidas em seu estudo
Curso em Lingüística Geral, 1915). No caso
da poesia de Antunes, seguindo a tradição da
Antropofagia e da poesia concreta, percebemos um diálogo
constante com tais códigos, desafiando-os e transportando
o leitor para um mundo onde os códigos familiares já
não servem mais para uma leitura. É como se
sua poesia provocasse não só uma reavaliação
dos códigos e normas lingüísticas, mas
também uma releitura e reeducação em
como ler e ver o mundo. Um dos aspectos mais marcantes neste
diálogo, tem a ver com a premissa de Saussure que diz
que conceber a língua meramente como uma nomeação
é superficial, problematizando assim a ligação
entre um nome e a coisa que este nome representa; assim como
a noção de que um signo lingüístico
não é uma ligação entre uma coisa
e um nome, mas entre um conceito e um padrão de som.
Nesta linha, Antunes explora em sua poesia as distâncias
entre o nome e as coisas que os substantivos nomeiam. Sua
poesia joga com classificações e sistemas de
classificações, taxonomia e substantivação
de outras classes de palavras, assim como com a personificação
de objetos e a sinestesia (uma constante em sua obra). A nomeação
também era importante para Brecht, no sentido que seu
efeito de alienação buscava romper com as categorias
artificiais criadas por nomes. Ao distanciar os nomes, o leitor
tem uma experiência sem precedentes da diferenciação
entre o nome e o objeto, ou, parafraseando o crítico
Fredric Jameson, uma espécie de "terapia filosófica"
de distanciamento, ou o equivalente filosófico da estética
formalista do estranhamento (Jameson, 42).
O quarto livro de poemas
de Arnaldo Antunes, As coisas (1992), é particularmente
diferente dos anteriores em termos de apresentação,
porém permanecem preocupações formais
e elementos temáticos semelhantes. As coisas parecem
textos ingênuos, à primeira vista lembrando histórias
para crianças. Os poemas são acompanhados por
ilustrações feitas por uma das filhas do poeta
que curiosamente sempre são apropriadas ao poema que
acompanha. Seus poemas também lembram textos científicos,
explicações ou definições enciclopédicas.
Novamente, nota-se um estranhamento dos nomes das coisas e
das definições do mundo material. Antunes trabalha
aqui com noções já mencionadas em relação
à nomeação das coisas e a representação
onomástica, distanciando a relação do
leitor com as palavras. Este livro lembra uma cartilha ou
um manual, onde os poemas contam histórias dos objetos
e dos seres, buscando a materialidade e a concretização
dos termos através de suas explorações
poéticas.
Percebe-se ainda uma intertextualidade
interna com a repetição de poemas de outros
livros, assim como com apropriações de frases.
Há também uma presença constante de elementos
da natureza no sentido enciclopédico. A conscientização
da linguagem, do processo lingüístico e dos significados
também continuam a ser elementos presentes no próprio
processo poético. Percebemos o estranhamento e a adaptação
do discurso científico. Por exemplo, o poema "Um
campo tem terra" (19), descreve o campo (onde se planta)
com uma sutileza marcante, a qual se modifica na medida que
esse campo torna-se um "campo de visão".
Porém, podemos perceber uma ênfase nas percepções
sensoriais as quais se sobressaem às definições.
Ou seja, ao descrever um objeto, conceito ou palavra, Antunes
insere uma inversão das expectativas, distanciando
assim o leitor do significado original em questão,
levando-o a uma consciência do processo visual que ocorre
ao ler o poema. Além disso, há um movimento
constante das definições, como por exemplo,
"portas" são comparadas aos "partos"
(note a metátese onde os fonemas são transpostos)
que existem para "sair de um lugar entrando em outro".
Aqui, as portas também transformam-se em "meios
de transporte que ficam no mesmo lugar" (21). Há
um movimento do estranhamento onde o poeta descreve os objetos
como se estivessem sendo vistos pela primeira vez. Na verdade,
o poema resume-se com a frase "Os olhos pousam nelas"-mais
uma vez chamando a atenção ao olhar no objeto
(as portas).
Antunes também
utiliza os truismos, como por exemplo, "O corpo existe
porque foi feito" (23). Os poemas em prosa deste livro
estão repletos de aforismos que empregam noções
banais de um alto nível de familiaridade, mas que são
observados pelo poeta e pelo leitor com uma mirada transformadora,
proporcionando mudanças de percepção.
Assim, temos "Todas as coisas do mundo não cabem
numa idéia. Mas tudo cabe numa palavra, nesta palavra
tudo" (25); "A luz lambe a parte externa das coisas"
(27); "Mulheres têm dois peitos. Os homens têm
um peito só" (31); "A ponte é aonde
chove o rio embaixo dela" (37), "Perfil é
um fio" ou "O horizonte está deitado"
(39), "O tempo todo o tempo passa" (55) ou "Dentro
da boca é escuro" (59), entre outros. Antunes
trabalha com aforismos e com a linguagem coloquial de um modo
que é difícil não associá-lo com
poetas como Oswald de Andrade, Mário de Andrade, Manuel
Bandeira e Manuel de Barros. Suas explorações
do banal e da natureza, revelam elementos que passam despercebidos
nas nossas leituras diárias do mundo ao nosso redor.
Neste sentido, Antunes quebra a rotina e o habitual, aproximando-nos
de um novo contexto onde tudo passa a existir além
de nomes e definições.
Nesta mesma linha, no
poema "Há muitas e muito poucas palavras. Por
exemplo: pegamos um corpo" (57), temos uma descrição
poética do corpo, a qual inclui um estudo de algumas
palavras. Assim, a palavra "planeta" infiltra-se
entre os pés do corpo em questão, a palavra
"móveis" passa a ser exemplo de "coisas
que se movem", e há uma série de desmembramentos
de significados e de jogos de palavras como "planta"
e a "planta do pé", "solo" e "sola
do pé". Arnaldo Antunes trata as palavras com
uma delicada distância poética e seu vocabulário
eleva os sentidos possíveis para além de meros
significados. Seu lirismo neste livro brinca com inversões,
como no poema "Tromba o elefante é o único
animal que tem" (63). Descrições inocentes
passam a ser análises de significação,
e "tromba" transforma-se em "trompa".
Um forte exemplo de estranhamento ocorre com o poema "Dinheiro
é um pedaço de papel" (77), onde o valor
intrínseco do objeto simbólico é explorado
ao máximo, com aforismos como "Dinheiro tem valor
quando se gasta. Um pedaço de papel é um pedaço
de papel". A poesia aqui transmite uma síntese
da forma com o conteúdo, no sentido que a forma (poema
em prosa, descritivo, discurso científico e/ou infantil)
permite um distanciamento crítico dos temas e palavras
em questão.
Quanto ao elemento visual,
no último poema de As coisas, nota-se um dos elementos
poéticos mais explorados por Antunes: a simultaneidade.
O poema "O que (se) foi é (s)ido" (93), retrata
mais uma vez a associação das palavras com o
que elas definem e o movimento das significações.
Percebem-se aqui diversas possibilidades de leitura. Retornando
a Saussure, a poesia de Antunes investiga a noção
de que sinais visuais são capazes de explorar mais
de uma dimensão ao mesmo tempo. Este poema não
tem uma imagem propriamente dita, mas podemos lê-lo
de diversas maneiras: "o que foi é ido;"
"o que se foi é sido;" "o que foi é
sido;" "o que se foi é ido". Temos aqui
um jogo visual com o vocábulo e a letra parentética
e com as conjugações dos verbos "ir"
e "ser". Neste caso, a simultaneidade dá-se
nas próprias palavras. Apesar de que, na poesia de
Antunes, as palavras também se tornam sinais visuais
e, em muitos casos, há uma simultaneidade visual. Às
vezes Antunes também desafia a noção
de que sinais auditivos somente podem ser lineares, no sentido
que sua poesia também explora a simultaneidade auditiva
das palavras nas gravações de seus poemas.
Arnaldo Antunes declarou
gostar da "potência de no espaço artístico
se viabilizar uma coisa impossível", no sentido
de que dois corpos no mesmo espaço ao mesmo tempo é
uma impossibilidade (em relação ao seu livro
2 ou + corpos no mesmo espaço, 1997). Especificamente
no seu trabalho poético, este conceito "veio de
um procedimento formal, que foi se tornando recorrente em
[sua] poesia: o fato de mais de um vocábulo ocupar
o mesmo espaço sintático. Por exemplo, o poema
'solto' [13] permite mais de uma leitura, pode-se ler 'solto
do solo' ou 'sol todo solo'; o mesmo acontece em 'meu nome'
[14], com 'não me coa' e 'não me ecoa'. Isso
aparece em muitos poemas. No terreno gráfico isso acontece
mais explicitamente, como nos poemas 'agouro' [116-133] e
'espelho' [79]" (Ferraz, 8). Ao discutir o procedimento
de tal simultaneidade, Antunes explica o processo de criação
poética que envolve o corte de palavras e a idéia
de que um "corte numa palavra faz aparecer uma outra
parte dela que já é uma outra palavra".
Destro deste conceito, surgiu o título do livro, o
qual, de acordo com Antunes, "contém a idéia
do ideograma, em que as partes formam uma terceira coisa,
só que elas se preservam enquanto informação
autônoma". Antunes continua, dizendo que neste
caso as partes não se somam formando uma síntese,
mas que no "raciocínio icônico e poético,
você tem uma preservação das partes e
ao mesmo tempo a combinação delas. E assim cria-se
essa multiplicidade que se abre para várias interpretações"
(Ferraz, 8). Esta declaração descreve muito
bem as várias possibilidades simultâneas de leitura
de seu trabalho.
Nesta coleção
de poemas, a complexidade gráfica é mais uma
vez retomada, apresentando não só as múltiplas
possibilidades de leitura visuais, auditivas (pois o livro
inclui um disco com gravação de treze de seus
poemas) e semânticas, como também inclui uma
variedade de ilustrações fotográficas.
Além disso, a intertextualidade continua, onde poemas
dialogam com livros anteriores do poeta (como em "exclamação"
[53], por exemplo). Antunes também continua a explorar
os sentidos através da sinestesia.
Seguindo esta linha evidente
em seu trabalho anterior, 2 ou + corpos no mesmo espaço
é uma investigação do corpo-ou dos corpos
dos seres em geral e do corpo do poema, onde as transformações
das palavras ou imagens (partes do corpo do poema) modificam
os sentidos. Assim, o poeta distorce, borra, apaga, transforma
as palavras em manifestações literais de seus
significados. Por exemplo, o vocábulo "quase"
gradualmente desaparece no poema "agá" (10-11);
a letra "o" torna-se um ponto preto sólido
em "solto" (15) imitando o efeito que a luz do sol
tem na visão; a letra "a" é triplicada
no poema "azul" (20), usada para múltiplas
palavras; os versos de "átomo divisível"
(24-25) tornam-se pares maleáveis de combinação
material/ adjetivo; em "transborda" (72-3), há
uma confluência de uma série de verbos de função
corporal em um longo verso só, justaposto e transbordando
as palavras por duas páginas. Também vemos inúmeras
explorações intersemióticas utilizando
mapas, fotos, sinais gráficos e simultaneidade espacial
e semântica.
Antunes também
explora o anglicismo lúdico de "the and"
(47), onde ele novamente joga tanto com a tipografia ao imprimir
o "e" e o "a" sobrepostos, como com seu
significado. Em "gertrudiana" (63), numa homenagem
à poeta norte-americana Gertrude Stein, a palavra "rose"
torna-se "zero" ao ser espelhada. Além disso,
é nos poemas "gera" (55) deste livro e "exagera,
zera" de Psia que Arnaldo estabelece uma possível
conexão com o poema "nascemorre" de Haroldo
de Campos onde, de acordo com Perrone, os vocábulos
"nasce" e "morre" estabelecem papéis
poli-semânticos, com a combinação dos
sintagmas nascer, morrer, renascer, remorrer, desnascer, desmorrer,
resultando num estranhamento conceitual de noções
de continuidade e circularidade (Perrone, 41-42). Nesta mesma
linha, Antunes cria em Psia uma repetição de
"exagera, zera" combinando-os com "re"
e "des" em uma progressão crescente, ecoando
"nascer" e "morrer" com "gerar"
e "zerar". Retomando este projeto em 2 ou + corpos
no mesmo espaço no poema "gera" (55),
há um movimento gráfico circular e uma repetição
de "regenera" e "degenera" e de "zera".
Neste sentido, a poesia de Antunes mantém um diálogo
sincrônico com a poesia brasileira assim como com sua
própria obra.
No poema "volve"
(98-115), há uma progressão visual que inicia
com a palavra "volve" envolta por um "círculo"
amórfico. Na medida em que o poema continua nas próximas
páginas, há um movimento de aproximação
com a palavra, até o closeup com o segundo "v",
cujo centro impresso é uma reprodução
da "célula" que envolve o vocábulo.
Em um movimento cíclico, quando não é
possível ver mais nada além da "célula"
inicial, a última página do poema é a
mesma célula contendo o fragmento "desen".
Assim, neste ciclo, o poema torna-se o verbo "desenvolve",
demostrando novamente o elemento interativo da poesia de Antunes,
onde o leitor é ativo em seu julgamento e interpretação
visual e, neste caso, é responsável por decifrar
o quebra-cabeça poema. Em mais um exemplo do elemento
mutável dos poemas deste livro, é importante
mencionar o poema "agouro" (116-133), onde a primeira
página contém inúmeras impressões
da palavra "agouro" em preto. Na segunda página,
a palavra "agora" em branco infiltra-se sobre os
"agouros". Na medida que o poema progride, o número
de "agoras" em branco aumenta tanto que acaba apagando
os "agouros" completamente. Assim, completa-se mais
um jogo visual, o qual estimula as percepções
sensoriais e conceituais do leitor-o agora liquida o agouro.
Em Palavra desordem
(2002), o poeta explora o minimalismo, a síntese e
o despojamento com um livro impresso em letras vazadas brancas,
contornadas por uma fina linha preta em páginas brancas.
Este texto tem como característica seu aspecto não-linear,
sua versatilidade de leitura e o lúdico. Em termos
conceituais, Palavra desordem sintetiza o trabalho
de Arnaldo, no sentido que ele transforma os provérbios,
aforismos e truismos, os slogans e lugares-comum, distorcendo
as expectativas sociais e pré-formuladas. Mais uma
vez sem paginação ou títulos, este livro
continua desenvolvendo muitos dos elementos de sua obra anterior.
Os poemas aqui tornam-se quebra-cabeças, onde várias
possibilidades de leitura oferecem jogos e trocadilhos ao
leitor. Antunes elaborou a concepção do livro,
apresentando os poemas em combinações curiosas.
Há muitos pares, como "muita luz cega" impresso
lado a lado com "o olho não se enxerga".
Novamente, notamos uma atenção dedicada à
visão e aos sentidos. Este livro é enxuto e
simples, sem imagens ou modificações tipográficas
(além de variações em tamanho e direção),
porém, as muitas possibilidades de leitura oferecem
a simultaneidade já mencionada, a qual anteriormente
era relacionada com suas criações intersemióticas.
Alguns dos aforismos tratam
das relações de aspectos formais e conceituais,
questionando definições de forma e conteúdo,
como em "o ar que contorna define a forma", em "o
gesto é o principal"; ou explorando as conexões
entre forma e conteúdo, explicitamente em "conteúdo
é forma" e "forma é conteúdo".
Também há colapsos da forma como em "matarotraumatarotraumtarotrauma",
ou "superficialma", talvez em homenagem à
obra de Paulo Leminski e sua "perhappiness". Nesta
mesma linha, os provérbios são mais uma vez
modificados e portanto desfamiliarizados, como em "ponha
a mão na consistência", ou "a fé
é inimiga da perfeição". O anglicismo
também retorna com "black out no flash back"
e "céu hell", entre outros. Conceitualmente,
o projeto parece manter um tom existencial com "viver
não tem volta" e "vivo de morrer", por
exemplo.
Em muitos destes poemas/
frases, este livro também explora figuras de linguagem
e exercícios em rima e repetição. É
o elemento experimental deste projeto que o situa dentro das
mesmas tendências já discutidas aqui-o aspecto
visual e auditivo da poesia de Antunes e seu fator conceitual
e formal. Em Palavra desordem, o poeta combina experimentos
poéticos em sua linguagem pessoal, porém desafiando
as expectativas com o minimalismo deste trabalho. O poema/
aforismo "de normal bastam os outros" situa tematicamente
o elemento diletante da poesia de Arnaldo Antunes. O projeto
gráfico de Palavra desordem marca sua renovação
da visualidade da poesia. O visual e a visão, inseparáveis
da leitura, tornam-se parte integrante do seu projeto de conscientização
do processo. A desordem das palavras deste livro serve mais
como convite às suas várias interpretações,
leituras e decifrações do que como confusão.
Neste sentido, a poesia
de Arnaldo Antunes explora o nosso potencial lingüístico
e da linguagem ao máximo, quer seja como elemento comunicativo
ou como matéria-prima de seus poemas. A linguagem em
sua obra é um material, o qual não perde sua
abstração conceitual. O poeta questiona os valores
lingüísticos no momento em que ele posiciona os
signos frente-a-frente à conscientização
das percepções sensoriais. A obra poética
de Antunes desfamiliariza a relação do leitor
com as palavras, com as imagens e com a própria poesia,
assim como as artes plásticas distanciam a relação
do público com a produção artística.
O fato de que Arnaldo
Antunes é um músico popular que incorpora sua
poesia em sua música, e sua música em sua poesia,
é um exemplo de que os limites entre alta e baixa arte
já não são mais relevantes. Além
disso, o alto teor conceitual da poesia de Antunes não
a torna menos acessível, pois sua linguagem, apesar
do elemento experimental, não é hermética
por ser explícita. Sua obra é um projeto de
concretização das palavras e da linguagem em
geral. Ou seja, sua poesia aproxima-nos do âmago conceitual
que problematiza a ligação das palavras com
o que elas tentam representar (ou deixam de representar).
A poesia de Antunes concentra a presença física
dos objetos e elementos que a linguagem quer significar, quer
seja em sua manifestação sonora ou escrita.
E é neste aspecto
que a poesia de Antunes vai além de produções
poéticas anteriores. Não só ele valoriza
as conquistas estéticas na literatura e nas artes brasileiras,
mas ele também explora uma adaptação
de tais conquistas à nova linguagem que mistura cada
vez mais os gêneros artísticos. Na época
em que Antunes publica seus poemas, a criação
intersemiótica já não é tão
estranha para aqueles que cresceram com novas tecnologias:
novos códigos culturais requerem novas linguagens artísticas.
No entanto, diante destes novos códigos, a obra de
Antunes reivindica o retorno dos sentidos, lembrando ao leitor
sua presença física numa época de intensa
tecnologia e consumo. Além disso, ao utilizar o estranhamento,
a poesia de Arnaldo contribui para uma distância crítica
de base social dos significados das palavras, injetando assim
um aspecto político no seu formalismo renovado.
Portanto, Arnaldo Antunes
tem a habilidade de mediar entre campos artísticos
e percepções sensoriais, mantendo sempre uma
consciência crítica dos processos envolvidos
em tais mediações, adicionando a elas o elemento
poético. A poesia encontra-se explicitamente exposta
no trabalho de Antunes: sua presença física,
seus mecanismos, suas funções, suas imagens,
seus jogos, sua manipulação dos significados.
Isto tudo encontra-se em aberto em seus poemas, onde a poesia
é viva, onde as palavras pulsam como artérias
expostas e onde o fluxo poético corre em direção
ao coração da linguagem, dando vida aos sentidos
através da poesia.
Bibliografia:
Antunes, Arnaldo. 40 escritos.
São Paulo: Iluminuras, 2000.
------. As coisas. São Paulo: Iluminuras, 1992.
------. Dois ou + corpos no mesmo espaço. São
Paulo: Perspectiva, 1997.
------. Palavra desordem. São Paulo: Iluminuras, 2002.
------. Psia. São Paulo: Iluminuras, 1991.
------. Tudos. São Paulo: Iluminuras, 1992.
Campos, Haroldo de. "Uma poética da radicalidade".
Pau-Brasil de Oswald de Andrade. Rio de Janeiro: Globo, 1990.
7-53.
Chklovski, Victor. "Art as Tecnique". Modern Criticism
and Theory. A Reader. Ed. David Lodge. Londres: Longman, 1994.
15-30.
Dick, André. A poesia de Arnaldo Antunes: entre o barulho
e o silêncio. São Leopoldo: Editora Unisinos,
2000.
Feix, Daniel. "Tudo ao mesmo tempo agora: entrevista
com Arnaldo Antunes". Aplauso. Ano 7, número 58,
2004. 8-11.
Ferraz, Heitor. "Entrevista com Arnaldo Antunes".
Cult. Novembro, 1997. 6-13.
Jameson, Fredric. Brecht and Method. Londres: Verso, 1998.
Perrone, Charles A.. Seven Faces: Brazilian Poetry Since Modernism.
Durham: Duke University Press, 1996.
Preminger, Alex e Brogan, eds. The New Princeton Encyclopedia
of Poetry and Poetics. Princeton: Princeton University Press,
1993.
Saussure, Ferdinand de. "Extracts from Course in General
Linguistic". Modern Criticism and Theory. A Reader. Ed.
David Lodge. Londres: Longman, 1994. 1-14.
Notas:
1 - Analisarei aqui somente
a obra poética de Arnaldo Antunes, deixando sua produção
musical, de vídeo e de artes plásticas para
outra ocasião. Tampouco discutirei as gravações
de seus poemas (dos quais muitos já foram musicados),
nem mesmo a gravação de poemas de 2 ou +
corpos no mesmo espaço (1997), já que este
livro veio acompanhado de um disco. Escrevi este ensaio antes
do lançamento do último livro de poemas de Arnaldo
Antunes ET Eu Tu (São Paulo: Cosac & Naify,
2003) com fotografias de Marcia Xavier, portanto aqueles poemas
não foram incluídos aqui, e não analisei
poemas de OU E, álbum de poemas visuais e primeiro
livro de poesia de Antunes, edição do autor,
1983.
2 - Nome (BMG, 1993), é um projeto multi-mídia
(vídeo, livro e disco) merecedor de um ensaio aparte.
3 - Quarenta de seus ensaios foram publicados sob o título
de 40 escritos, org. João Bandeira, São
Paulo: Iluminuras, 2000.
4 - Os poemas de Antunes são musicados e suas letras
de música são publicadas como poemas. No entanto,
não há espaço suficiente aqui para discutir
as ramificações do lírico como poesia
e vice-versa. Por isto nossa discussão se limitará
à sua produção poética.
5 - "Assim eu gostaria de ser classificado - como inclassificável.
E é assim que eu vejo a época atual, um estado
de diversidade muito grande". Entrevista de Arnaldo Antunes
à revista Cult, Novembro 1997, 6-13.
6 - Entre os poetas mencionados por Perrone estão Duda
Machado, Carlos Ávila, Alice Ruiz, Paulo Leminski.
Ver Seven Faces, capítulo 5, "Margins and Marginals:
New Brazilian Poetry of the 1970s."
7 - Em "Nome entra pelos olhos, boca e orelhas"
por Augusto Massi, Folha de São Paulo, Caderno mais!,
17 de outubro de 1993. 6-7. Outros críticos já
observaram o aspecto do estranhamento em relação
à poesia de Arnaldo Antunes, entre eles Charles A.
Perrone em sua resenha de 2 ou + corpos no mesmo espaço
(em Poesia Sempre, número 11, 1999, 248-251) e Élson
Froés em "A máquina portátil de
semioses. Sobre um poema de Arnaldo Antunes", 14 de setembro
de 2001 (?) em http://www.popbox.hpg.ig.com.br/aantunes.htm.
8 - Efeito de alienação (Verfremdungseffekt),
elemento da teoria dramática de Bertold Brecth (1898-1956)
o qual declara que o público e os atores devem preservar
uma distância crítica da peça e de sua
encenação, questionando assim a representação
para que eles não se identifiquem com a atuação.
9 - Este livro não tem paginação nem
índice indicando os títulos dos poemas (o livro
Tudos tampouco). Portanto, na análise de poemas destes
dois livros usarei o primeiro verso ou as primeiras palavras
dos poemas em questão.
10 - Para uma ótima análise da poesia de Antunes
e uma excelente discussão do aspecto da nomeação
em sua obra, ver A poesia de Arnaldo Antunes: entre o barulho
e o silêncio de André Dick (São Leopoldo:
Editora Unisinos, 2000), especialmente o capítulo 5
"Poesia adâmica".
*
Alessandra
Squina Santos é é ensaísta e tradutora
e doutoranda em Letras pela Universidade da Califórnia
com a tese "Palavras em cinco sentidos: Arnaldo Antunes
e reinterpretações da Antropofagia".
*
Veja também poemas
visuais de Arnaldo Antunes.
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