O
SILÊNCIO DA ESFINGE
Alexandre
Rodrigues da Costa
Uma palavra
à imagem do silêncio.
- Paul Celan
Que o silêncio transpasse
toda a obra de Orides Fontela e seja, de certa forma, um de
seus fundamentos, não causa espanto, já que isso, no decorrer
de toda a modernidade, desde Mallarmé e seu fascínio sobre
tal tema, é fato que se repete inúmeras vezes. Basta observar
as obras de artistas como Mondrian, Cage, Beckett ou Bergman,
para poder dizer que a arte moderna e contemporânea, ao se
deter em um território que antes era restrito à esfera filosófica
e mística (e aqui podemos pensar desde os pensadores pré-socráticos
até a doutrina zen-budista), abriu a possibilidade de cada
artista encarar o silêncio de forma pessoal. As obras desenvolvidas
a partir do silêncio podem articulá-lo em conceitos específicos,
ora encarando-o como negação ora como afirmação do fazer artístico,
ou, às vezes, superando essa dicotomia em favor de algo mais
amplo, uma reflexão voltada para o próprio pensamento, no
qual o silêncio é colocado como uma espécie de guia dentro
dos caminhos tortuosos da linguagem.
Orides Fontela, apesar
de sua insistência em negar a presença do nada em sua obra[1],
não pode fugir desse "impasse inevitável", porque aquilo que
ela coloca como problema central, o ser, a forma, a palavra,
está entrelaçado justamente ao conceito de nada, que desde
Mallarmé é visto como realidade inerente tanto à fala poética
quanto à esfera ontológica. Nesse sentido, se o nada não é
evocado diretamente em seus poemas, ele surge a partir de
suas preocupações com a palavra e o ser, sendo que a forma
(uma das palavras mais presentes em seus poemas) se torna
um sinônimo para o estético e o existencial. Antes de cairmos
no erro de identificar o silêncio, o nada, como um suposto
pessimismo da linguagem, para a poeta ele se torna um problema
do qual não consegue escapar, pois acaba levando para seus
poemas o fascínio pela filosofia. Ora, sem perceber a contradição
de seu discurso, ela acaba afirmando aquilo que nega, "o nada
pensado como o próprio ser"[2],
pois não há como não pensar na existência, através da filosofia,
sem que sejam traçadas reflexões sobre o nada. Assim, para
a poeta, a palavra cumpre sua existência a partir do silêncio
que lhe define os limites, no qual a insuficiência é sua própria
matéria e a morte torna-se desejo de impessoalidade, fuga
da consciência, ato de desumanização, conforme podemos ler
em um poema pertencente ao livro Transposição:
FALA
Tudo
será difícil de dizer:
a
palavra real
nunca é suave.
Tudo será duro:
luz impiedosa
excessiva vivência
consciência demais do ser.
Tudo será
capaz de ferir. Será
agressivamente real.
Tão
real que nos despedaça.
Não
há piedade nos signos
e
nem no amor: o ser
é
excessivamente lúcido
e
a palavra é densa e nos fere.
(Toda palavra é crueldade.)[3]
O
poema se estrutura em três movimentos, que correspondem às
três primeiras estrofes, respectivamente. A questão da fala
ganha dentro desses movimentos um desenvolvimento particular,
no qual a palavra é interpretada como aquilo que nos impede de
escapar ao real e à consciência. Aberta sob as exigências de
se cumprir como futuro, a palavra marca sua realidade pela
negação da realidade. O presente não existe, já que a palavra
é um contínuo fluir, através do qual a consciência ganha forma
e tenta dar forma àquilo que a vive, o mundo aberto em
feridas, a angústia de não podermos articular pela compreensão
tudo que nos chega, organizar o quebra-cabeça definitivo,
cujas peças se tornam a própria realidade. Mas nem mesmo a
palavra verdadeira, e aqui podemos entender como palavra
poética, consegue suplantar esse enigma, uma vez que ela se
torna também enigma, no momento em que se fecha em signo de
algo que não vive mais, em imagem de uma coisa que já foi
esquecida pelo excesso de lucidez. Eis a sentença que o poema
nos oferece: por sermos conscientes, vivemos sempre à sombra
daquilo que nos escapa, cunhamos nas palavras as diferenças
entre o que vemos e o que pensamos ver. Como sinal de
humanidade, resta apenas aceitar que toda palavra é crueldade
e que todo esquecimento será bem-vindo.
Mas, como dissemos anteriormente, antes de pensarmos que toda
poética de Orides Fontela centraliza-se no pessimismo da
linguagem, algo que beire a auto-flagelação, ocorre o
contrário: o ser é consagrado através do silêncio, de forma
que este não é mais desejado como simples anulação da
linguagem, mas contemplado a partir das coisas, pois de acordo
com Susan Sontag:
Olhar para alguma coisa que está "vazia" ainda é olhar, ainda
é ver algo - quando nada, os fantasmas de suas próprias expectativas.
Para perceber o volume, a pessoa precisa reter um agudo sentido
do vazio que o destaca, inversamente, para perceber o vazio,
é necessário apreender outras zonas do mundo como preenchidas.[4]
Assim, o silêncio, na
obra de Orides Fontela, é o tecido da trama verbal, aquilo
que dá forma às palavras e ao universo que se abre a partir
delas. Aqui, talvez se justifique a preferência da poeta por
objetos pertencentes ao cotidiano, já que o espaço, colocado
entre eles e o artista, torna-se um lugar de comunhão, reunião,
que logo a palavra interromperá, pois é ela que impede o abandono
definitivo, a abertura para o mundo, para o estado de coisa.
Por isso, a palavra precisa ser vista como "orgulhosa construção
erguida sobre o vazio"[5]
, na qual a ausência
"não tem outro recurso, para se introduzir no mundo dos valores
significativos e abstratos, senão o de se realizar como uma
coisa"[6].
O vazio como possibilidade
do ser, silêncio que se torna conseqüência da lucidez. A palavra
poética subsiste, portanto, como nosso reflexo sobre esse
mundo, existência abandonada à mercê do impossível, pois,
ao tentarmos capturar toda e qualquer forma, acabamos por
instaurar em imagens um mundo compreendido entre o que somos
e o que desejamos ser. Daí que, na obra de Orides Fontela,
toda vivência é estranha, por ser sempre um limite de si mesma,
por nunca se deixar aprisionar no vazio de seus iguais. Nem
mesmo o nome, ao designar a coisa, pode superar a realidade
dessa coisa e apresentá-la em composição plena. Tem-se a imagem
à frente, mas como dizê-la, torná-la compreensível a não ser
pela palavra? Isso que nos liga à coisa, mas também a afasta?
Não seria nossa ausência refletida nos objetos parte de algum
tipo de obscuridade, um enigma que sempre nasce, quando outro
é solucionado? Nesse limite que torna estranho tudo o que
vemos, assemelha-se a nós somente aquilo que morre e deixa
algum vestígio, algum tipo de esperança.
Resta, assim, a forma que nos revela, mas que
não podemos revelar, uma vez que o nome define o destino e
o vazio por onde essa escolha se move é lugar de total silêncio.
Talvez, aí, se justifique o fascínio de Orides Fontela pelos
objetos, que tão bem Antonio Candido apontou:
Página branca, espelho,
superfície da água são imagens e símbolos reversíveis, que
marcam no seu livro a obsessão que anotei no começo deste
prefácio e convergem para uma palavra-chave: silêncio[7]
E nesse caso, parece que
o espelho surge de maneira particular para a poeta, já que
nele reside a exata noção do silêncio como palavra e do vazio
como forma. A preferência de Orides Fontela pelos espelhos
está entrelaçada ao seu culto pelo silêncio, a isso que se
forma como fragmento da realidade, apesar de negá-la através
do engano que nossos olhos exercitam como coisas verdadeiras
e palpáveis. Os espelhos surgem como uma daquelas formas ideais
capazes de prenderem as coisas no inalcançável, de serem ordem
inversa e assim mesmo coerente. Tudo com o grande detalhe
de que isso se realiza em completo silêncio, de maneira que
a presença se prende à ausência, o vazio subsiste pela indefinição,
cujos arranjos se confundem com a vida, no instante em que
tende a anulá-la perante os olhos de quem observa a si mesmo
com a face invertida. Essa temática dos espelhos vai se inserindo
nos poemas à medida que Orides Fontela aprofunda o contato
entre forma, palavra e silêncio. É possível perceber que enquanto
a referência aos espelhos em seu primeiro livro, Transposição,
é praticamente inexistente, nos livros seguintes, ela vai
ganhando contornos cada vez mais consistentes até adquirir
o sentido de distorção, de ponto cego, sobre o qual a realidade
se fecha e sobrevive apenas como começo, lembrança. Pois ao
esconder, ao ocupar um determinado lugar no espaço, o espelho
torna-se imagem, seqüência do objeto pela sua ausência, ao
mesmo tempo em que quebra a representação pela inversão, de
forma que a imagem ali refletida nega a origem e se afirma
sobre as coisas em seu desaparecimento. Em seu último livro,
Teia, temos três poemas que se referem ao espelho explorando
esses sentidos:
Narciso (jogos)
Tudo
acontece no
espelho.[8]
--------------------
Vemos
por espelho
e
enigma
(mas haverá outra forma
de ver?)[9]
--------------------
O
espelho dissolve
o
tempo
o
espelho aprofunda
o
enigma
o espelho devora
a face.[10]
No
primeiro poema, o espelho se abre como se fosse uma realidade
autônoma, que se desenvolve dentro de um campo firmado pela
possibilidade de tudo acontecer. O supérfluo é anulado em
detrimento desta superfície que se abre para o mundo, como
se fosse continuidade e negação dele, imagem que só é imagem
por ser uma inversão do que escapa dos seus limites. Pois,
o que talvez nos fascine no espelho é o fato de ele ser, de
acordo com as palavras de Clarice Lispector, "o único material
inventado que é natural"[11],
e se apresentar para nós como "só imagem e não o corpo."[12]
Mas, voltando ao poema, devemos nos atentar para o título,
"Narcisos(jogos)", e perceber que esse "tudo acontece" se
move a partir de uma autonomia restrita ao nosso olhar, pois
a poeta, criando uma referência ao mito de Narciso, estabelece
diálogos, jogos, em que a palavra, num primeiro instante,
se presta como salvação, ao colocar o sujeito frente a um
outro, e, como condenação, ao mergulhá-lo nisso que é "só
imagem e não corpo", o que se revela sem fundo quando tocado.
O espelho seria, assim, esse espaço onde é sempre possível
dirigir-se para frente, uma vez que "sua profundidade consiste
em ele ser vazio"[13]
, em ele não se assegurar de uma única realidade, mas
se abrir numa sucessão de realidades, de forma que isso se
configure no próprio vazio, pois, no espelho, a imagem, ao
não se prender, deixa a ausência como identidade, o contínuo
metamorfosear de uma coisa em outra como sua verdadeira presença.
Nesse sentido, o ver "por espelho e enigma", do segundo poema,
significa encarar o próprio reflexo nisso que se abre à nossa
frente, de maneira que temos sempre um vazio a preencher.
Ao sermos incapazes de, a exemplo dos espelhos, retermos as
imagens, barrar seu fluxo e quebrar a hierarquia da memória
como condição do olhar, o silêncio surge como sinal de reconhecimento
daquilo que não pode ser apreensível nem usado como parâmetro
de nossa lucidez, uma vez que esta vive no limite entre a
determinação e a abstração pura. Por isso, para a pergunta:
"mas haverá outra forma/de ver?" A resposta é um círculo que
se resume na impossibilidade de fechar os olhos para tudo
isso que nos descortina e nos prende à volta, pois a própria
ação de ver implica que alguma coisa deva ser iluminada para
que possamos compreendê-la, para que possamos possuí-la enquanto
imagem, memória. Talvez, por isso, a sutileza como Orides
Fontela explora esse quase anagrama entre as palavras imagem
e enigma. Toda imagem pode ser vista como enigma, mas no momento
em que temos a solução deste, isso resulta no fim da imagem,
o que significa dizer que matamos aquilo que vemos ao transformá-lo
em algo reconhecível. E, nesse caso, ao sermos atingidos pela
imagem à nossa frente, ao termos, na consciência, o limite
que nos diferencia do mero estado de coisas, tudo se organiza
conforme esse olhar-espelho que nos garante o reconhecimento
do que não somos e do que não podemos fugir. Ter o espelho
à frente ou ver por espelho é assegurar a existência do silêncio
como algo indeterminado, através do qual a imagem
é passar da região do real, onde nos mantemos à distância
das coisas a fim de melhor dispor delas, para essa outra região
onde a distância nos detêm, essa distância que é então profundidade
não viva, indisponível, lonjura inapreciável que se torna
como que a potência soberana e derradeira das coisas.[14]
O
que essa potência soberana e derradeira das coisas mais pode
ser do que a imagem oferecida pelo silêncio? É nosso destino
olhar à distância, quando temos nosso próprio rosto à frente,
preso por um espaço que nos revela ao mesmo tempo em que nos
apaga. Assim, no terceiro poema, pode-se perceber a retomada
do mito de Narciso e como isso se dá, pois os elementos que
Orides Fontela manipula em seu texto trazem uma referência
explícita a esse sujeito que ao se olhar nas águas do lago
"toma por corpo o que não passa de uma sombra"[15],
com o detalhe de que isso não vem expresso no título, mas
no interior do poema, "o espelho devora/a face".
Mas
junto ao mito de Narciso está outra referência, a que diz
respeito à esfinge de Édipo, cuja sentença, "decifra-me ou
devoro-te", coloca o herói frente ao seu destino. Situação
esta que Flávio Rangel descreve, na introdução a Édipo
Rei, usando a imagem do espelho, "Mas ele mergulhará mais
longe: talvez tenha decidido olhar-se a fundo no espelho,
pesquisar até o fim a essência de sua natureza. Em seguida,
descerá um pouquinho mais na ladeira que o levará ao abismo."[16]
Ora, o espelho de Orides Fontela se aproxima muito desse
sentido: ao colocar o sujeito frente a si mesmo, surge como
abismo, destino que não pode ser entendido, mudado, mas aceito
com total serenidade. O que Alcides Villaça, identificará,
tão bem no seu ensaio sobre a poesia de Orides Fontela, como
algo vinculado ao estoicismo, no momento em que se tem em
seus poemas a impassibilidade em face da dor e da adversidade,
a aceitação da morte, uma vez que as perguntas perdem sentido
e a existência se afirma pelo fim:
ESFINGE
Não
há perguntas. Selvagem
o silêncio cresce, difícil.[17]
Ao
contrário do que ocorre com Édipo, a esfinge nos barra não
com perguntas, mas com o silêncio, o derradeiro enigma que
não pede solução, pois semelhante a quem se olha no espelho,
faz com que pergunta e resposta se tornem a mesma coisa, um
círculo no qual não se sabe onde estão o início e o fim. Assim,
se o silêncio cresce selvagem, impõe-se difícil, é porque,
aí, o destino consiste em não acertar o enigma, mas, ao contrário,
ser devorado pela esfinge, tornar-se algo de que não se pode
fugir, já que estamos presos por uma realidade forjada a partir
da nossa própria existência, na qual o inacessível se revela,
seja através do espelho a dissolver o tempo e a instaurar-nos
como mistério, seja através da aparência capturada como algo
verdadeiro, de forma que os sentidos se desintegram em imagens
que nosso olhar funda na condição de coisa, de morte possível.
Consciência de que o futuro já está traçado e de que a perda
acontecerá inevitável. Portanto, aceitar o silêncio da esfinge
é morrer a morte, a difícil morte[18]
com que a vida o tempo todo nos brinda. O que não elimina
o temor pelo desconhecido, o que a palavra "difícil" expressa,
ao estar separada do restante do verso pela vírgula, uma vez
que, aí, onde a pausa surge como resignação, aceitação, percebemos
que o que vem depois é tarefa mais árdua do que pensávamos.
É o que podemos ver em outro poema de Orides Fontela:
O
ESPELHO
O
espelho: atra
vés
de
seu líquido nada
me
des
dobro.
Ser
quem me
olha
e
olhar seus
olhos
nada de
nada
duplo
mistério.
Não
amo
o espelho: temo-o.[19]
Como a página, o espelho, para a poeta, é o lugar onde o nada
se realiza, onde a realidade perde-se em imagem, em mistério.
O espelho despe aquele que olha. O olhar devolvido é sombra,
resto de representação de um enigma inesperado: a vida duplicada
na morte. "E somente a morte silenciosa sabe o que somos"[20],
pois aquele que se olha no espelho é o espelho e ninguém.
E se procura algo, terá a esfinge como resposta. Esfinge cujo
enigma é a nossa existência, o nada como o destino, o silêncio
como salvação. Por isso, é impossível amar o espelho. Lucidez
do absurdo, o que ele nos dá? A visão instantânea das coisas
como elas são e não são. O mundo invertido, mas ainda reconhecível.
E o mais terrível, saber-se parte disso, ter à frente a realidade
da consciência.
No
entanto, o espelho é o nada, lugar onde os signos não se prendem.
O que não impede que a realidade de um instante seja criada,
colocada sob o olhar de um outro que é ele mesmo, "Ser quem
me/olha/e olhar seus/olhos", que afinal é só imagem. Mas imagem
que não pode ser capturada como ocorre na palavra, uma vez
que o que vem antes e depois dela é a ociosidade de quem se
olha, junto com a pergunta que nos oferece Blanchot: "o reflexo
não parece sempre mais espiritual do que o objeto refletido?
Não é, desse objeto, a expressão ideal, a presença liberta
da existência, a forma sem matéria?"[21]
Ora, a presença liberta da existência significa morte,
no momento em que a coisa que desaparece por trás de uma imagem,
deixa apenas a sombra do que um dia foi. Eis, portanto, o
temor de Orides Fontela pelo espelho: ele transforma essa
presença em coisa, em objeto de poema, em realidade outra.
Pois o olhar, nele refletido, torna-se abismo, vertigem. Lugar
onde se busca, com todas as palavras, a razão do ser: silêncio.
*
Notas
[17]
FONTELA, Orides. Trevo (1969-1989). São Paulo:
Duas Cidades, 1988. p. 233.
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