ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

A MORTE E A BÚSSOLA: SUBVERSÃO E RACIOCÍNIO
NAS ARMADILHAS BORGIANAS

 

Aline Aimée

 

O texto borgeano costuma dar margem às análises mais ricas. Sua narrativa dificilmente escorre para a simplicidade ou o lugar-comum, e a cada releitura temos acesso a novas possibilidades, sejam elas formais ou temáticas.

 

É sabido que Borges tinha o hábito de consultar enciclopédias enquanto escrevia, o que explica o excesso de detalhes em suas tramas. No entanto, é interessante notar que o escritor buscava explorar o conhecimento enciclopédico através de certas artimanhas, raramente tratando-o com seriedade, e que apreciava se utilizar de outros tipos de discurso – filosófico, histórico, religioso etc. – em favor da ficção. Muitos leitores desavisados tendem a ver nessa vindicação o esboço de alguma filosofia de vida. Caem na armadilha borgeana, uma vez que o autor estaria, na verdade, aproveitando o efeito estético desses discursos: “estimar las ideas religiosas o filosóficas por su valor estético y aun por lo que encierram de singular y de maravilloso” (Borges. 1996:153. vol. II).

 

Parece-nos que, para Borges, a literatura, assim como o mundo, se sustenta sob um movimento ficcional contínuo, fato que ele buscava evidenciar em seus textos através de artifícios labirínticos e tramas inverossímeis, que culminavam inúmeras vezes em impasses indissolúveis.

 

No conto “A morte e a bússola”, o autor oferece um belo modelo de jogo narrativo. O texto pode ser considerado uma subversão da narrativa policial, uma vez que infringe muitas das regras clássicas do gênero. Apesar das transgressões que empreende, Borges consegue extrair o melhor desse tipo de narrativa: a oportunidade de desenvolver um jogo de raciocínio.

 

A trama se constrói em torno do personagem Eric Lonnröt, um detetive que se considera um raciocinador à altura do célebre personagem de Edgar Allan Poe, August Dupin. Lonröt, juntamente com o comissário Treviranus, investiga um crime ocorrido no Hotel du Nord. Há alguns elementos estranhos na cena do crime que logo são tomados como pistas. Outros crimes ocorrem, deixando rastros semelhantes, ao que Lonnröt conclui terem sido deixados por um assassino em série. As circunstâncias das mortes sugerem uma relação de causalidade (as mortes sempre no dia 3, as distâncias entre os locais do crime, as vítimas judias, uma frase que se repete), que seduzem o raciocinador Lonnröt. Ocorre que essa relação é falsa, já que as pistas são forjadas para atrair o detetive.

 

O conto joga com dois leitores: o leitor de narrativas policiais e o leitor de Borges. O primeiro, vê-se logo aliciado a perseguir as tais pistas, bem como a duvidar de certas obviedades presentes na trama. Ao leitor de Borges, cabe suspeitar que a trama talvez não seja tão facilmente dedutível e que pode haver algo oculto sob a simplicidade das evidências. Há, de fato. Tudo aquilo que aparenta ser detalhe é, na verdade, o conjunto das verdadeiras pistas: o assassino é apresentado sutilmente na primeira página: “participação[1] de Red Scharlach” (Borges. 2007:121), e não autoria; ainda na primeira página, é dito que Scharlach jurou a vítima de morte; a frase “A primeira letra do nome foi articulada”, que inspira as frases presentes nas cenas dos outros crimes, é, como indica o narrador, apenas uma “sentença inconclusa” (Idem:123) que a vítima digitava em seu trabalho, e não um recado do assassino; numa passagem aparentemente descartável, o narrador comenta que um dos livros da vítima, “A história da seita dos Hassidim”, era editado porque os livreiros descobriram que há leitores que lêem qualquer coisa – um desses leitores é Scharlach.

 

Essa sutileza com que as pistas verdadeiras são oferecidas coaduna com a afirmação de Ricardo Piglia, em “Borges: a arte de narrar”: “A arte de narrar se funda na leitura equivocada dos signos” e consiste “na arte da percepção errada e da distorção” (Piglia. 2001:23). É o erro que cometem Lonnröt e os leitores desatentos.

 

O assassino é citado inúmeras vezes no conto, está sempre em evidência, inclusive criticando o comissário Treviranus por sua incompetência em solucionar os crimes, e jurando que eles jamais ocorreriam em seu distrito. No ensaio “O conto policial”, Borges afirma que o melhor conto de Poe é a “Carta roubada” porque tanto as pistas quanto o assassino estão evidentes, e conclui: “Es la idea de esconder algo em forma visible, de hacer que algo sea tan visible que nadie lo encuentre” (Borges.1996:195. v.IV). É exatamente como ocorre em “A morte e a bússola”: os elementos para a solução do problema estão dados, mas Lonnröt não os vê, não os quer ver, porque prefere mergulhar em hipóteses mirabolantes, conforme informa a Treviranus:

 

O senhor replicará que a realidade não tem a menor obrigação de ser interessante. Eu lhe replicarei que a realidade pode prescindir dessa obrigação, mas não as hipóteses. Na que o senhor improvisou, o acaso intervém fartamente. Eis aqui um rabino morto; eu preferiria uma explicação puramente rabínica, não os imaginários percalços de um imaginário ladrão. (Borges: 2007:123)

 

O excerto acima evidencia mais algumas subversões que serão efetuadas em relação ao gênero policial. Treviranus vai sendo apresentado como um investigador de percepção limitada, incapaz de ver a trama por traz do crime. Contudo, as hipóteses que levanta, por mais simplórias que aparentem ser, são exatamente as que correspondem aos fatos. A morte da primeira vítima não passa de um acaso, um acidente. Não há motivação rabínica envolvida. O acaso, aliás, mormente sob a forma de caos, está presente em boa parte da obra borgeana. Vale lembrar a fala de um dos personagens do conto “Albencajan, o bokari, morto em seu labirinto”: “A solução do mistério é sempre inferior ao mistério” - premissa que Lonnröt ignora solenemente.

 

Dos quatro crimes, três apresentam losangos coloridos no ambiente. Contudo, apenas os do terceiro crime (a roupa dos arlequins) são intencionais. Outra obra do acaso, que Scharlach, mais observador que Lonnröt, percebia e aproveitava para tecer seu labirinto de pistas falsas. O detetive, nesse caso, é o personagem menos perspicaz da trama, o que constitui mais uma ironia em relação aos clichês da narrativa policial. Lonnröt percebe as ambigüidades das pistas (não todas, obviamente), compreendendo se tratar de um crime de natureza quádrupla, e não tríplice, e o entusiasmo resultante da descoberta parece embaçar sua percepção, impedindo-o de descobrir a arquitetura de uma armadilha da qual ele mesmo é alvo.

A subversão mais audaciosa nesse conto está no fato de a vítima ser o detetive. A surpresa típica do texto policial não se encontra na identidade do assassino, que está presente o tempo inteiro no conto e é um criminoso que ameaçou a vítima. Está, na verdade, na identidade da vítima, que o tempo todo sustenta a certeza de estar no caminho certo, enquanto estava, de fato, emaranhado em um labirinto constituído especialmente para si.

Um leitor mais atencioso ou habituado ao texto borgeano deveria perceber a armadilha escondida na simetria obsessiva das pistas. Havia, sim, uma mensagem escondida por trás delas, mas não se tratava da identidade do assassino e sim do destinatário dessas pistas-iscas.

 

Num prólogo sobre T.F. Powys, de 1938, Borges faz uma afirmação no mínimo instigante:

 

Uno de los proyectos que me acompañam, que de algún modo me justificarán ante Dios, y que no pienso ejecutar (porque el placer está en entreverlos, no en llevarlos a término), es el de una novela policial un poco heterodoxa. (Lo último es importante, porque entiendo que el género policial, como todos los géneros, vive de la continua y delicada infracción de sus leyes.) (Borges. 1996:359)

 

De fato, em 1942, ele (resolve concretizar o projeto?) escreve “A morte e a bússola”, que, inegavelmente, pode ser considerada um conto policial heterodoxo.

 

Num romance-homenagem intitulado Borges e os orangotangos eternos, Luís Fernando Veríssimo dialoga de forma perspicaz com as peculiaridades narrativas de Borges. Na trama, o personagem Vogelstein cria um labirinto para Borges (do mesmo modo que Scharlach criou para Lonnröt) e ambos tentam desvendar as pistas – forjadas – de um crime, formulando inúmeras hipóteses delirantes. A cada novo detalhe, as hipóteses mudam drasticamente, possibilitando que Borges e seu admirador se entreguem ao raciocínio puro, na biblioteca do escritor. Não importava descobrir quem era o assassino, diante do verdadeiro divertimento que era o jogo intelectual empreendido.

 

Lonnröt compartilha da mesma opinião e essa acaba sendo a falha derradeira que o leva em direção à morte. Seu labirinto era quadrangular, uma cela/armadilha. Mas no embate final com Scharlach, ao perceber a real trama em que fora enredado, ele cita o paradoxo do movimento de Zenon, no qual,

 

(...) para ir de um ponto a outro, primeiro você tem de percorrer metade do caminho. Para percorrer a outra metade do caminho, primeiro você deve percorrer metade da distância restante, ou seja, mais um quarto do caminho. Para percorrer o resto do caminho, você deve percorrer metade da distância restante, ou seja mais um oitavo do caminho. E assim por diante, ad infinitum. Em outras palavras, por mais que você esteja perto do segundo ponto, você ainda tem que vencer metade da distância que falta e você ficará nessa situação, sempre.[2]

 

Lonnröt, numa fala consideravelmente absurda, sugere a Scharlach que, numa próxima vida, crie um labirinto de uma só reta, como o do paradoxo acima, em vez da armadilha quadrangular. O labirinto, nesse conto, é repleto de significados. Ao se revelar, Scharlach descreve sua estadia delirante na chácara de Triste-le-Roy, local excedente de simetrias:

 

(...) eu sentia que o mundo é um labirinto, do qual era impossível fugir, pois todos os caminhos, embora fingissem ir para o norte ou para o sul, na verdade iam para Roma, que era também o cárcere quadrangular onde meu irmão agonizava e a chácara de Triste-le-Roy. (Borges. 2007:132)

 

Para se vingar de Lonnröt, Scharlach decide montar um labirinto igualmente quadrangular (ou quádruplo), que constituirá a cela/armadilha do detetive. Metaforicamente, esse labirinto é, também, vertical, na medida em que conduz Lonnröt direto à morte. É tão reto quanto o caminho das pistas reais, negado pelo detetive, que levaram Treviranus a desvendar o crime rapidamente.

O labirinto linear reivindicado por Lonnröt é absurdo, porque infinito, mas a infinitude é um tema caro a Borges e surge sempre associada à imortalidade proporcionada pela escrita. Não é à toa que o narrador irrompe do texto, no momento em que Lonnröt se encaminha para a morte:

 

Ao sul da cidade de meu conto[3] flui um cego riacho de águas barrentas, infestado de curtumes e de imundícies. Do outro lado há um subúrbio fabril onde, protegido por um caudilho barcelonês, grassam os bandidos. Lonnröt sorriu ao pensar que o mais famoso – Red Scharlach – teria dado qualquer coisa para conhecer essa visita clandestina (Borges. 2007:129)

 

O narrador se revela exatamente quando descortina o enigma, e, em se tratando de Borges, nunca é algo leviano. É como se dissesse: “vejam, aí está meu enigma típico”, apontando um dos traços que o distinguiria na cena literária.

 

O labirinto infinito é, ainda, a passagem para o “outro avatar”, onde vítima e assassino se encontrarão para sempre através dos tempos. Quanto mais longo, tanto maiores as chances de Lonnröt se entregar ao deleite intelectual.

 

Em “A morte e a bússola”, as pistas são caminhos falsos para o detetive; as frases de sutileza enganosa são caminhos dissimulados para o leitor. A narrativa que toma a palavra enquanto arma é também um labirinto que nos desafia.

 

Vera Lucia Follain assinala em “O assassino é o leitor”, que “O crime, é, assim, o próprio texto que se realiza pela violência da palavra. Perguntar quem é o autor do crime é indagar o autor do texto/crime” (Figueredo. 1988:5). E o leitor sempre correrá o risco de se descobrir vítima das armadilhas de Borges se, como Lonnröt, deixar-se levar pela astúcia do narrador/infrator, mestre nas artimanhas do intelecto.

 

BIBLIOGRAFIA:

 

BORGES, Jorge Luis. “A morte e a bússola”, in: Ficções. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

________________. “Otras Inquisiciones”, in: Obras Completas II. Barcelona: Emecê Editores, 1996.

________________. “Borges Oral” (El cuento policial) & “Textos Cautivos” (T.F. Powys) Obras Completas IV. Barcelona: Emecê Editores, 1996.

________________. “Los laberintos policiales y Chesterton”. In: Borges en Sur 1931-1980. Buenos Aires: Emecê, 1999.

FIGUEREDO, Vera Lucia Follain. “O assassino é o leitor”, in: Matraga – Revista do Instituto de Letras da Uerj. Vol. II, n.4-5. Rio de Janeiro: jan-ago 1988.

PIGLIA, Ricardo. “Sobre o gênero policial”, in: O laboratório do escritor. Trad. Josely Vianna Baptista. São Paulo: Iluminuras, 1994.

_____________. “Borges: a arte de narrar”, trad. Josely Vianna Baptista, in SCHWARTZ, J. (org.) Borges no Brasil, São Paulo, Editora da Unesp, Imprensa Oficial do Estado, 2001.

TODOROV, Tzvetan. “Tipologia do romance policial”, in: As estruturas narrativas.Trad. Leyla Perrone Moisés. São Paulo: Perspectiva, 1979.

 

Documento eletrônico:

http://www.geocities.com/Athens/4539/zenon.html

 

NOTAS
 

[1] Grifo nosso.

[2] http://www.geocities.com/Athens/4539/zenon.html

[3] grifo nosso

 

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Aline Aimée é graduada em Letras, com especialização e mestrado em Literatura Brasileira pela UERJ. Tem textos publicados em revistas virtuais, como a Diversos AfinsConexão MaringáVerbo 21Garganta da SerpenteArmadilha PoéticaAlmanaque Virtual e Para ler e pensar. É autora de 12 pétalas, nenhuma flor, inédito. Publicou, ainda, na revista impressa Em Branco e participou da coletânea Entrelinhas II da editora Andross.

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