ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

LITERATURA E TÉCNICA: REFLEXÕES

 

Aline Sobreira de Oliveira

 

A história da literatura, bem como da arte em geral, vem sendo traçada no Ocidente ao longo dos tempos a partir de perspectivas diversas. É possível, por exemplo, pensar o desenrolar da arte em sua relação com eventos históricos considerados marcantes, como guerras e revoluções e conquistas, tomando-se por pressuposto que tais eventos influenciaram de alguma forma a subjetividade dos sujeitos e exerceram papel temático, formal e ideológico na produção artística, bem como ajudaram a compor o horizonte de expectativas do público. Pode-se também pensar o seu desenvolvimento com foco nas suas tendências e tensões intrínsecas: ela seria um movimento que se auto-alimenta, auto-desenvolve, auto-desconstrói; neste sentido, entender-se-ia que o seu lugar é uma bolha de vidro.

Uma frutífera maneira de pensar os movimentos históricos da literatura tem sido explorada já há algum tempo, e seus “resultados” variam dos mais otimistas aos mais apocalípticos: analisar seu desenvolvimento ao longo da história em sua relação com a técnica, refletindo sobre os avanços técnicos como mais que simples suportes para a escrita.

Um dos pensadores da cultura européia que se debruçou sobre as relações entre arte e técnica e suas conseqüências foi certamente Walter Benjamin. Para Benjamin, no caso da fotografia, por exemplo, o desenvolvimento das técnicas de captação da imagem e a “profissionalização” dos fotógrafos desencadearam o que se chama de perda de aura. Somente as primeiras fotografias possuíam a aura – a propriedade que uma obra de arte tem de devolver o olhar, por assim dizer, àquele que a olha.

Benjamin também pensa nas técnicas de reprodução industrial das obras de arte, que acarretaram numa mudança de relação entre obra e homem – este deixa, pela primeira vez, de empregar a mão no trabalho de reprodução (que sempre existiu, nas figuras dos copistas, da xilogravura e da litografia e servia obviamente para a difusão da produção artística e intelectual) e as “responsabilidades artísticas mais importantes” ficam a cargo do olho. Velocidade e distanciamento. Mudanças substanciais.

Num plano mais restrito, Flora Süssekind, em O cinematógrafo de letras, tenta formar uma imagem coesa e autônoma de um período da literatura estigmatizado como pós-alguma-coisa ou pré-alguma-coisa – problema típico da análise mais tradicional da literatura, que concebe a história das manifestações literárias a partir de uma organização (crono)lógica – em sua relação com os avanços tecnológicos da época. Trata-se da produção literária desenvolvida entre fins do século XX e os vinte primeiros anos do século XX. Süssekind, ao analisar como se deu o envolvimento entre literatura e técnica deste período, tirou do limbo uma porção de escritores e obras “acanhados” entre dois gigantes da história da literatura brasileira: o Naturalismo e o Modernismo.

As observações feitas pela pesquisadora são de grande interesse para quem se aventura a estudar literatura brasileira; para ela,

Os avanços técnicos da época confrontaram-se primeiramente com a literatura no nível da representação (conteúdo);

Posteriormente, pode-se notar a presença da técnica nos processos de enformação da escrita (forma);

Os avanços técnicos não participam apenas de mudanças no que concerne aos temas e formas literários, mas alteram de certa forma a subjetividade dos sujeitos, o que acarreta numa mudança de percepção do mundo;

Os avanços técnicos não são apenas o resultado de demandas sociais, industriais, artísticas etc., mas também (e principalmente) engendram suas próprias demandas;

O que fascina nos artefatos técnicos é menos a sua funcionalidade que sua novidade;

As técnicas de reprodutibilidade de obras de arte (cinematógrafo, fonógrafo) “obrigaram” os artistas a criarem novas formas de performance como uma maneira de marcar a diferença entre a máquina e a presença.

Do livro de Süssekind aflora aquele sentimento perigoso de querer expandir um modo de pensar ao seu limite: em outras palavras, a possibilidade de traçar um desenho de toda a evolução da escrita fundida com a evolução técnica. Além de megalomaníaco e pretensioso, esse sentimento, que já deve ter acometido vários outros amantes da literatura, levaria a pesquisas que já foram desenvolvidas.

(Não seria exagero, entretanto, ensaiar muito rapidamente uma perspectiva, a título de diversão.

No princípio, arte e corpo eram de impossível dissociação. Na lírica, na epopéia de tempos remotos, a voz que soprava as palavras não era apenas uma metáfora do espírito: era o próprio espírito. A própria presença. Fruir um texto era convergir de fato subjetividades. Com o desenvolvimento das técnicas de escrita (ideogramas, hieróglifos, a escrita cuneiforme) – e, conseqüentemente, o desenvolvimento da consciência histórica[1] – novas maneiras de lidar com o texto foram surgindo, e a manifestação da presença se fazia diferentemente: presença do copista por meio da caligrafia (traço de singularidade), presença do artista que se materializa na voz daquele que lê em voz alta, presença de Deus que inspira as palavras que o artista escreve. (A leitura silenciosa e individual, surgida no século XII, transforma o estatuto do texto escrito, que antes era entendido como mero reservatório de informações.) O desenvolvimento, no Ocidente, das técnicas de impressão, além de trazer mudanças no que se refere ao acesso e à forma de leitura dos textos, modificou a maneira pela qual se manifestava a presença no texto – não havendo mais o traço caligráfico, não havendo mais a presença divina (com o fenecer do pensamento teocêntrico), havia um eu que marcava sua presença no pronome. A modernidade dissolveu a legitimidade do pronome eu¸ que se tornou então um signo vicário, e a presença se acotovela então no pequeno espaço da assinatura e das burocracias editoriais. No atual cenário, em que as formas digitais vêm ocupando um espaço cada vez mais considerável na produção e difusão da literatura, é difícil imaginar onde estaria alguma presença: nos “suportes” digitais, nenhuma assinatura é totalmente legítima, e não há nenhuma materialidade que se coloque como “prova” de uma autoria. Além disso, as mídias digitais permitiram que se diluísse a distância entre artista e público ao possibilitar a arte efetivamente interativa, na qual um movimento do mouse ou um clique na tela alteram a configuração da obra. Resumindo: poder-se-ia imaginar a história da literatura, em sua relação com o desenvolvimento técnico, como a história da dissolução da presença, um processo ainda em andamento e que estaria intimamente ligado ao futuro da escrita.)

Além desses desejos megalomaníacos, que têm a ver com temporalidades quase inconcebíveis e informações quase inarticuláveis, o livro de Süssekind nos remete a uma reflexão bem mais possível: como se dá, hoje, a relação entre literatura e técnica?

Vivemos um momento particularmente interessante na trajetória dessa relação entre literatura e técnica. É certo que suportes diferentes sempre conviveram: um novo não suprime um antigo. Süssekind exemplifica isso com o caso típico da máquina de escrever: enquanto os mais entusiastas se adaptavam à nova forma de escrita possibilitada por aquele aparato, outros mais tradicionalistas não abriam mão de entregar seus originais manuscritos para seus editores (e eles que se virassem para decifrar aquela escrita muitas vezes obscura, quase criptografada).

Hoje, no entanto, coexistem os mais diversos modos de escrita: há os preciosistas que insistem em escrever à mão, como que a manter uma relação mágica e já quase evanescente com a escrita. Há os que preservam o hábito, atualmente antigo, de escrever à máquina de escrever, como que a sustentar um fetiche. Há os que se renderam às facilidades e particularidades da escrita no computador, seguramente não se importando com o futuro da crítica genética.

Do mesmo modo, a leitura também ocupa hoje espaços diversos: ao passo que sites, blogs e comunidades literárias proliferam, transformando a forma e o lugar do texto, o mercado de livros continua efervescente, engendrando ainda novos segmentos: as biografias de gente-nem-tão-famosa; os relatos de viagens ou de experiências pessoais com prostituição, drogas, doença, perdas, relações de alteridade ou o que quer que possa ser considerado experiência pessoal; publicações impressas de textos anteriormente disponibilizados em blogs ou sites.

Além de tudo isso, há ainda o convívio, atualmente, de linguagens que até então se mantiveram de certa forma distanciadas: as letras, os números e as imagens.[2] Tal convívio certamente implica numa forma diferenciada de ler: como Flusser observou, em “Por que as máquinas de escrever estalam?” e “O futuro da escrita”, calcular, imaginar e conceber são operações mentais muito diferentes.

Essa configuração particularmente rica do cenário literário e técnico levanta perguntas. Como essa confluência de linguagens, como esses novos aparatos técnicos transformam os sujeitos, e, conseqüentemente, a escrita e a leitura? Quais as diferenças entre ler um texto na tela, ornamentado por links e imagens, sem materialidade e que supostamente firmam um outro pacto com o leitor, e um livro, símbolo da cultura ocidental, cuja materialidade impõe ainda uma leitura linear, progressiva?

Mais perguntas: que imagem de escritor pode emergir desses novos ambientes de escrita e leitura? Onde, para além da Academia, se erige a atual República das Letras? A multiplicidade de espaços, suportes e linguagens levaria logicamente a uma multiplicidade de perfis literários?

Essas são questões que este texto simplesmente não se propõe a responder. Isto, no entanto, não o torna menos importante. Afinal, só é possível responder a perguntas que já foram algum dia formuladas. Essas breves reflexões parecem ter a ver com aquilo que Luiz Costa Lima chamou, no início da Trilogia do controle, de “estar obsedado” por uma questão. Talvez algum dia seja possível entrever com mais clareza a imagem complexa da relação entre literatura e técnica.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

 

BENJAMIN, Walter. Pequena história da fotografia. In: _______. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994. p. 91-107. (Obras escolhidas I)

BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: _______. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994. p. 165-196. (Obras escolhidas I)

CHARTIER, Roger. Do códex à tela: As trajetórias do escrito. In: _______. A ordem dos livros: leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e XVIII. Brasília: Editora UnB, 1994. p. 95-111.

FLUSSER, Vilém. Por que as máquinas de escrever estalam? In: _______. O mundo codificado: por uma filosofia do design e da comunicação. São Paulo: Cosac Naify, 2007. p. 80-85.

FLUSSER, Vilém. O mundo codificado. In: _______. O mundo codificado: por uma filosofia do design e da comunicação. São Paulo: Cosac Naify, 2007. p. 126-137.

FLUSSER, Vilém. O futuro da escrita. In: _______. O mundo codificado: por uma filosofia do design e da comunicação. São Paulo: Cosac Naify, 2007. p.138-150.

GUATTARI, Félix. Caosmose: um novo paradigma estético. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.

MACHADO, Arlindo. Fim do livro? In: Estudos Avançados, São Paulo, n. 21, p. 201-214, 1994.

SÜSSEKIND, Flora. O cinematógrafo de letras: literatura, técnica e modernização no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

 

NOTAS:

[1] FLUSSER. O futuro da escrita.

[2] Ver FLUSSER. Por que as máquinas de escrever estalam? e O futuro da escrita.

 

 

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Aline Sobreira de Oliveira é bacharel em Letras - UFMG.

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