ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

O QUE TANTO DESEJA O DESEJO
NA POESIA DE LINALDO GUEDES?

 

Amador Ribeiro Neto

 

Abstract: This article tries to analyze the latest book of poems by Linaldo Guedes calling attention to its language and its subject-matter and the existing correlation between them. This correlation results from a semiotic universe that involves his poetry, from the family relationships to the exposition of an uncontrollable libido, passing from the religiosity of the people who live in the North-Eastern Backlands ("sertanejos") to their daily life. Better saying: the daily life of those who really experience the world since the great metaphor of this book is the geographical appropriation of a region and its transformation in facts – individual and social – in general and in each and every one of us.

Key words: The language of poetry; contemporary poetry in Paraíba; Linaldo Guedes; Semiotics of culture.

 

Resumo: Este artigo busca analisar o mais recente livro de poemas de Linaldo Guedes destacando sua linguagem e seus temas – e a correlação existente entre ambos. Esta correlação resulta de um universo semiótico que envolve sua poesia, indo das relações familiares à exposição de uma libido incontrolável, passando pela religiosidade sertaneja e o cotidiano de quem vive o sertão. Melhor dizendo: de quem vive o mundo, já que a grande metáfora deste livro está na apropriação geográfica de uma região e no seu metamorfismo em fatos – pessoais e sociais – de todos, e de cada um de nós.

Palavras-chave: A linguagem da poesia; poesia paraibana contemporânea; Linaldo Guedes; Semiótica da Cultura.

 

  1. Flanando: o poeta, um fazedor de linguagens

Barthes diante de uma fotografia de Jerônimo, último irmão de Napoleão, disse: “Vejo os olhos que viram o Imperador”. Este espanto ele dividiu com os amigos. Mas ninguém parecia compartilhá-lo. Então Barthes constata: “A vida é, assim, feita a golpes de pequenas solidões”.

A frase mais parece um verso de T. S. Eliot. Um verso, uma linha, uma frase que agarra na gente. Quem é que está ausente destas golfadas de solidão? Ninguém. Mas somente os poetas sabem transpor para a ciranda de signos um sentimento raro e trivial ao mesmo tempo. A ambiguidade é marca registrada da poesia. O poeta, senhor oceânico dos signos, sabe dizer o inaudito, o inaudível, o desdito, o prescrito, o proscrito. O poeta é aquele que se vale da palavra, da cerâmica, da tela, da areia, da luz, do ferro, da madeira, da pedra, da água, do fogo, do silêncio e dos sons para fazer poesia.

O poeta é um fazedor de linguagens. O que ele faz é ouro. Midas das mídias, é sempre um meio entre as extremidades do gozo e do martírio.

Homem do povo, o poeta sabe que nada pode fazer se ignora a língua dos bares, das feiras, dos camelódromos, dos campos, das fábricas, das cozinhas, das vias públicas, das portarias, das fazendas, dos sítios, dos cariris, dos sertões, do agreste, das praias. A língua viva do povo é a melhor matéria e o melhor material do poeta.

Um povo sem literatura é um povo fadado à bancarrota. Uma nação sem poetas está à beira da derrocada. A um triz de ser engolfada por outras nações e culturas mais fortes. A língua do poeta não pode ser a norma culta. Esta norma asfixia a flexibilidade, o molejo, o dengo de “tudo aquilo que o malandro pronuncia”, como pontua Noel.

Por ser tão ímpar, tão inesperadamente singular, por mandar às favas as leis do mercado, o poeta então se atreve cada vez mais na busca de uma linguagem nova. A busca pelo novo, pelo ainda não dito nem escrito, move o poeta.

Na simplicidade do fazer (ou do dizer, já que ambos são a mesma coisa para o poeta) o poeta inaugura outros modos de ser e estar. Outro jeito de corpo. Outra moda, contra a moda.

Por ser inapreensível em todos e em nenhum modelo, o poeta cria sua própria gramática, seu próprio dicionário, sua exclusiva linguagem. Assim, seu produto não obedece às leis do mercado. O poeta vive a golpes de pequenas solidões. Com o poeta paraibano contemporâneo Linaldo Guedes não seria diferente. Vejamos.

 

  1. O desejo na poesia de Linaldo Guedes

 

No presente artigo falo de um livro (e de um poeta) que, desde a primeira publicação já se apresentava como uma “promessa”, mas que, no geral, ainda se mantinha preso aos maneirismos poeticistas dos que se aventuram na the waste land  da poesia. Refiro-me a Linaldo Guedes, poeta e jornalista paraibano.

Como eu apreciara quase nada Os zumbis também escutam blues (1998), seu livro de estreia, e muito pouco o Intervalo lírico (2005), seu segundo livro, foi mais por dever de insistir na “promessa” deste jovem, que li Metáforas para um duelo no sertão (2012) – convenhamos, pouco sugestivo desde o título.

Um parênteses: não costumo investir em leituras de autores que não despertam meu interesse como leitor e crítico. Mas no caso de Linaldo Guedes, repito, havia algo (a Coisa lacaniana?) que me cutucava por dentro: embora sua poesia não me agradasse, havia um fazer poético – em raros momentos, diga-se – que me instigava, me inquietava, me fazia crer que valeria a pena continuar investindo em lê-lo.

Guardadas as devidas proporções, havia uma semelhança entre o fazer poético de Linaldo e o de Mário de Andrade – este último morreu sem saber qual era de fato a da poesia. Na poesia marioandradina há poemas bons e ruins, o tempo todo, em todos os livros. Isto é comum. É mesmo inevitável, posso ser objetado. No entanto, esclareço: no caso de M. de A. a poesia sempre foi manca de uma perna, nunca alcançou a grandeza sólida e marcante de sua prosa.

Todavia, não há como ignorar a poesia de Mário. Não há como desconhecê-lo, enquanto poeta, na rica cena da poesia brasileira de todos os tempos – e  não apenas modernista.

Linaldo Guedes produziu em Metáforas para um duelo no sertão uma obra que nos surpreende, ao mesmo tempo em que confirma nossa “intuição”: eis um livro de muitos poemas bons, alguns excelentes, e meia dúzia que não precisariam constar dele. Estes são aqueles que jogam com os trocadilhos mais previsíveis, muito fáceis, quase sem elaboração poética. É o caso de “Parabolicaleitura” (feliz no título gilbertiano) (p. 112):

 

as casas sustentam antenas

eu vi

fossem antenas poundianas

eu não via

 

EU  LIA:

 

(as antenas globalizam novas raças).

 

Em “Lombra...” ele encerra o poema com este baita clichê: “(perdidos em nossos achados).” (p. 81).  Com o mesmo recurso ele encerra “Primeira confissão”: “(como é bom ser livre para pecar!).” (p. 53).

No entanto, o trocadilho é uma das chaves mestra deste poeta. Em vários casos ela é tão inovadora que o poema nos aparece como algo inusitado. Como, aliás, deve ser todo bom poema: um poema dever ser lido como se o tivéssemos vendo pela primeira vez, embora trate do costumeiro, observou certo semioticista russo.  É isto que Dante faz com o Amor, por exemplo. Ou Shakespeare, com o Poder. Ambos os temas, velhos conhecidos. No entanto, na poética destes dois grandes nomes, é como se cada um destes temas nos fosse revelado pela primeira vez. Isto é fazer poético. E Linaldo o faz com propriedade em alguns poemas.

Só isto vale o livro. Nos últimos anos não lia algo tão arrebatadoramente sensível e simples. Ocorrem-me os nomes de Frederico Barbosa, André Dick, Paulo de Toledo, Saulo Mendonça, Lau Siqueira, Delmo Montenegro, Claudio Daniel, Ricardo Aleixo, Carlito Azevedo, Arnaldo Antunes, Josely Vianna Baptista, Rodrigo Garcia Lopes, Ricardo Corona, Carlos Ávila, Ronald Polito e Ademir Assunção – também a quatro mãos com Vicente Pietroforte. (Glauco Mattoso é hour concours).

A simplicidade da poesia de LG despe-a, por exemplo, do ritmo forjado ao qual os “poetas” contemporâneos subjugam a “poesia”, comendo mal a rédea curta da dicção drummondiana. Em Linaldo a coloquialidade vem atrelada a uma musicalidade da fala do homem simples – se sertanejo ou não, veremos adiante. Sua poesia deriva desta naturalidade. Mas não se pense que a naturalidade é a dominante da poesia linaldina. Nem que esta naturalidade seja o mesmo que relaxo ou desarrazoado. Pelo contrário: seu simples é cavado por um rigor admirável, já que não mostra os pilares que erguem a casa da linguagem.

Um rigor que serpenteia pelos modos mais diversos da linguagem “carregada de sentido” a mais não poder, como pondera o célebre poeta-crítico norte-americano. Lê-se a poesia de LG com a voracidade que os versos pedem – e o livro é devorado em pouco tempo.

Ou lê-se com o compasso zen do silêncio do sertão, e então o livro não acaba quase nunca. Porque não o deixamos acabar. Queremos beber de sua rara água. E os aborrecimentos com um ou outro poema, como já dissemos, dada a dimensão estética do livro, o leitor tira de letra.

As metáforas utilizadas são bem menos abundantes do que sugere o título. O duelo no sertão é mais ontológico que qualquer outra coisa. O que se diz do sertanejo é inerente a cada ser, e a todos, quem sabe. Antonio Mariano inicia o prefácio falando de Tolstoi e a célebre citação da aldeia e do mundo. Busco ir além: o sertão é o Dasein heideggeriano: investiga-se o ser, seus modos de ser e sentir, independente da geografia que o cerca.

Por isto mesmo o poeta eleva o silêncio do sertão como uma das figuras recorrentes de sua escrita: toma-o como mote que tanto mata quanto dá vida a um eu-lírico em desespero ou em paz. A vastidão do silêncio ecoa num movimento zen de sua poesia assim como coabita o chocalho melancólico de um gado “perdido” no espaço da seca, como no poema “Curral” (p. 52), citado adiante.

Correlato do silêncio é o sorriso “para o nada” das meninas do sertão (p. 57), por exemplo – imagem repetida em “Primeira infância” (p. 37) que se abre assim: “os meninos do sertão / já nascem sorrindo para a rua”. O sorriso/silêncio conforma o binômino recorrente ao longo do livro – e que, convenhamos, descreve o / disserta sobre o sertão às avessas. Principalmente se tomarmos como referente a literatura regional dos anos 30, ou a posterior, presa a estereótipos de um olhar viciado.

A seca oscila da acidez cabralina ao esperançado natalino. Mas não é da festa dezembrina que o poeta fala, e sim do natalino relativo à geografia do nascimento. Nada de místico ou religioso: apenas o cotidiano, que eu nomearia reles, não fosse ele impregnado pela poeticidade da linguagem das palavras mais comuns, aqui referidas com a beleza do imprevisto. “Natal é meu pai”, “natal é minha mãe”, “natal são meus irmãos”, “natal é você” diz ele dez páginas depois de iniciado o livro e retomando o tema “do natal”.

            Agora a família, e a (possível) amada formam a guirlanda diária das relações interpessoais. A família é um núcleo duro (no sentido semiótico da expressão: predominância e concentração de sentido) deste livro.  À p. 110 ele diz: “não estou sempre presente ao meu filho / e nunca, mas nunca mesmo, / consigo agradar a sombra de meu pai”. Antes, à p. 62 ele fala uma vez mais do pai, dos dois irmãos, da paternidade distribuída entre os irmãos e, por fim, da paternidade tardiamente compreendida pelo eu-lírico.

A presença ausente do pai, a falta de uma orientação, o apartamento de um poder e de um amor paternos cravam marcas de perplexidade num menino-homem (ou, na feliz tradução de Augusto de Campos para certa expressão de Lewis Carroll: homenino), e vazam o livro sob dissimulações variadas. Como no poema “Quimera” em que a felicidade é sem história (diria: é a-histórica), não fosse a condolência de “o menino que chora no último banco de lorca”. Lorca e tantas outras referências literárias povoam o universo deste filho sem pai, deste pai sem paternidade, como se a literatura pudesse suprir a falta que a vida nos traz.

Falando em vida, a religião – o traço determinante do sertanejo (e quem sabe de todo sertão) – aparece com sua liturgia invertida: ora por um olhar descritivo, embora não esconda laivos de fina e distante ironia, (“não era a serra da rola / moça / era a serra de santa luzia / abençoando o seridó”, p. 56), ora pela erotização, à la Adélia Prado, quando a quaresma se torna o tempo da “negação do jejum de prazer”. Quer seja: a linguagem na forma negativa firma-se como a expressão mais contundente da asserção gozosa.

Com “Matraga” (p. 21) o “carrego” do personagem roseano une-se ao do eu-lírico numa oração de entrega, despedida e aceitação. E aqui o que era inversão converte-se em afirmação: ressonâncias polifônicas de um homem que é mais que um, mais que cem, mais que 350: são as polifonias bakhtinianas que cada um carrega dentro de si:

matraca silenciosa

liturgia de augusto

remoendo

moendo

doendo

moenda

- bagaço de homem no altar dos sertões

 

de repente, a hora chega

pai, filho e espírito santo

agora só quero rezar

e carregar os meus carregos.

 

Todavia, a religião é questionada com uma ponta de ateísmo no soneto “Mater” (p. 41), cuja figura materna nada tem de divina: “aquela nossa senhora minha” é uma síntese admirável do que poderia ser mítico mas de fato é fonte concreta de “minha tosca alegria”. À fé que maravilha, a constatação crua que faz doer “nos olhos de minha querida mãe”.

O prazer leva o poeta sertanejo a ser satânico, além de erótico, marcado às flores do mal: por isto mesmo sua erva daninha, seu capim caprino (ou bovino) é baudelaireano. Sua alma se alimenta da antepoesia. Mesmo sertão adentro, o campo que se abre é o urbano: bordéis, cinemas, a capital, etc. E neste universo plurissignificante, algumas vezes a chuva de intertextualidades é tão avassaladora, como em “Belle de jour” (p. 31), que o poema resvala para o nonsense.

 

não, não é catherine

de novo em busca de bordéis

para saciar a sede secreta de buñuel

 

é juliana, sim,

bela na tarde cajazeiras;

bela na tarde capital

 

remake do que ainda está por vir:

surrealismo cinematográfico

- quadro de dalí em rascunho eterno

 

juliana, que caminha nas tardes

, inconscientes

de sua beleza,

 

em primeiro plano, seu sorriso

no the end, o silêncio e o sertão dialogam

 

Para que o litoral reverencie suas maçãs secretas

: ela, protagonista de um filme de Almodóvar.

 

Por outro lado, isto também seja dito, há poemas que detém uma concisão admirável, reunindo em poucas imagens uma somatória rara e rica de significados. É o caso de “Os ferreiros”, um poema oswaldiano no largo simples da caatinga (p. 35). Ou “Salieri” (p. 113):

 

 

no brilho da lâmina

 

só o corte do olhar

 

 

Ou “Livro aberto” (p. 43):

 

ser tão

 

abstrato

quanto

as

águas

do

meu

 

sertão.

 

Ou “Curral” (p. 52):

 

- nunca consegui entender

a melancolia que ecoava

nos chocalhos das vacas!

 

Sem escapar dos laços de família, o sertão é outro núcleo duro do livro – este, desde o título do volume. Tal como no sertão graciliano ou roseano, a dimensão geográfica, histórica e social transcendem a etimologia do vocábulo e imergem o leitor na esfera daquilo que o eu-lírico chama de “metáfora”, mas que é, na verdade, mais que uma relação de semelhança e figurativização entre dois signos. O sertão aqui é fenomenologia. É essência. E ao se revelar assim, desprovido de dissonâncias e dissimulações, traça um arco órfico que vai, por exemplo, da dor melódica da zabumba, do triângulo e da sanfona à dor da guitarra elétrica e das melodias estrangeiras.

O sertão é o mar ressignificado pelo homem e no homem. No longo “Mário de Andrade visita o Sertão” (p. 47), o eu-lírico revisita Mário numa teia de intertextualidades cosendo o universo poético e a biografia marioandradinas, tendo sempre como horizonte a linha imaginária do sertão. Ou o imaginário do sertão, melhor dizendo. Seguido do refrão: “ninguém lê mário de andrade”. Esta constatação-protesto, marcadamente musical, sustenta e complementa-se em outra: “(carro subindo descendo / deixando mário na poeira / buscando oswald no horizonte / (avante!!!))” (p. 56).

Ilude-se enormemente quem crê que o poeta oponha ou prefira um modernista a outro. Linaldo Guedes sabe que, antes de tudo, antes de mais nada, a morada da poesia não tem proprietário exclusivo. Não é de Mário. Nem de Oswald. Nem de ninguém.

A poesia de LG é cheia de vida, de biografias, de autobiografia. Mas é plena também de metalinguagem, a grande questão que a Pós-modernidade soube resgatar da Antiguidade Clássica. A poesia (sempre) como questão em aberto, gera desassossego na alma do poeta. Ele quer ousar mais. Quer que a palavra seja mais concreta – melhor dizendo: ele busca a solidez da palavra ante a liquidez do amor. Esta materialidade da palavra não esconde, em LG, o medo que habitou a criança e que hoje habita o adulto de Metáforas... E assim, o medo converte-se na moeda de troca que, de sopetão, abre espaço para o erotismo.

Um erotismo cru. Um erotismo dissimulado.

Quando cru, estabiliza-se na descrição do objeto sexual ou do objeto investido de sexualidade. É o caso do palato tomado como extensão do pênis. O que não deixa de ser curioso, já que o palato tem mais proximidade física com o útero e com a vulva do que com o pênis. Algo do universo masculino “se perdeu, está se perdendo”, para parodiar a canção popular. Ou quem sabe, algo do universo masculino esteja se transformando e indo para além do estabelecido.

O erotismo cru continua na conversa do eu-lírico com um duende que está pousado sobre seu pênis. Uma situação, no mínimo, inusitada, num primeiro momento. Mas que resgata a criança e o adulto vivenciando a fantasia da “maçã do paraíso”. Maçã podre, segundo o poema. Quer seja: agora não é o místico, mas o mítico que é devorado às golfadas pela ironia.

O erotismo cru se alista em versos como “ :sementes plantadas nas tuas pernas turvas / :sêmens a escorrer por entre pelos e curvas” onde a rima fechada na vogal tônica /u/ intermete a libido no lado mais recôndito do corpo feminino (“Uvas”, p. 76). E converte-se em indagação sarcástica em “Singular” (p. 79) quando a luva toma o lugar da vulva. Aqui mete-se a mão através do anagrama, o que materializa ainda mais a acidez do poema em forma interrogativa – provocando o leitor pelo vocativo direto: por que ficar com a genitália feminina se se tem o objeto industrializado com a mesma cavidade e à disposição dos mesmos dedos? Vejamos a íntegra do poema:

 

Apenas uma:

Se tu, luva,

Se encaixa em minhas mãos

 

Por que procurar outra vulva?

 

O erotismo delicado, lascivo e sensual está, por exemplo, no terceto “Posse” (p. 78) em que a vassalagem feudal dos dedos se apossa da pelve, zona erógena onde dançam desejos masculinos e femininos em volteios de sexo sem fim. Os dedos, vale frisar, são o depositário do erotismo deste eu-lírico: ora para fazê-los percorrer vulvas e luvas, ora para serem chupados com o sabor da amada de cujas entranhas sai o “prazer da glicose”. Os açúcares da moenda do amor adoçam a carne do homem e o imaginário do menino. O “homenino” também se projeta na arquitetura do sexo: “Menino do engenho”, p. 86:

 

passar a tarde chupando meus dedos com teu sabor,

 

feito rolete de cana,

 

com uma diferença:

 

o bagaço, aqui, tem cheiro de orgasmo

 

moenda que mói e mói nossos ardis

 

- engenhos de desejos para senhores dos tempos de antanho

 

(como se tudo fosse estranho,

alheio ao próprio prazer da glicose que sai de tuas entranhas).

 

Ou no drummondianamente resolvido “Amém” (p. 91):

 

amor quando chega

não faz toc, toc, toc

 

simplesmente derruba a porta

invade nossa aorta

 

transforma o amador

na coisa sagrada

 

depois, ora pelo santo espírito insano

para que todo dia, todo ano

 

a oração se repita

com suor, sexo e libido.

 

“Cunilíngua” (p. 95) desenvolve-se como um caso de erotismo cru, mas, no último verso, é encharcado por uma sensualidade arrebatadora. O que vinha se configurando como descrição “cerebral” de um coito, desdobra-se em “flores e rosas para minha língua”.

O universo feudal volta com força em “Usucapião” (p. 101) cujos versos de ritmo marcadamente acentuados, trançam a trama da língua no corpo da amada. Uma curiosidade: este poema, encerra-se com o adjetivo “gris” – que não sabemos se se refere à maturidade do amante, da amada ou de ambos. Na verdade isto pouco importa, já que conduz o leitor para uma reflexão densa, quem sabe a mais cerrada do livro: a que fala da morte.

Embora presente em apenas dois poemas (não por acaso os que encerram o volume), a reflexão sobre o autoenvelhecimento e a morte anunciada (“Partida”, p. 135) e a hora final, é louvada pelos anjos – um de seus anjos, sabemos por outros poemas, é Augusto. O eu-lírico se despede sob o consentimento da poesia (“Dostoievskiana”, p. 136):

 

Os ganchos

Já estão

Me levando

 

Os anjos louvam: é hora de dormir.

 

Este eu que discorre sobre a inevitabilidade da própria morte, e que a assume com desprendimento e leveza de ser, também vive a vida muito à vontade. Em “Auto-ajuda” (p. 129) reúne, no mesmo poema, Cortázar e Paulo Coelho – como a dizer que a arte e a vida de auto-ajuda não se distinguem. Esta confortável mobilidade de ser o que quer reaparece na reabilitação do surrado lema guevariano em “Sem perder a ternura” (p. 131).

Metalinguístico, não perde oportunidade para pôr em cheque tanto o ato de criação poética como a eficácia de sua linguagem no rol da práxis cotidiana. “Poética” (p. 92) é uma sonora e visual declaração de amor a dois cantadores tão distantes no tempo e como próximos na irreverência lírica: Rita Lee e Rimbaud:

 

 

poeta é bicho esquisito

 

todo mês sangra

 

(versos)

 

e aduba loucuras

 

vermelhas

 

com frases azuis.         

 

A metalinguagem se introduz também em “E-book” (p. 67), poema feito nos moldes borgeanos: fusão da realidade com o imaginário. Se retomarmos o título do poema, aí sim, caímos de vez na cibercultura virtual – e a dimensão do poema ganha maior verticalidade. O que se contrapõe à busca das “sólidas palavras” de “Das vontades de um homem” (p. 65). Aliás, este movimento de afirmação e seu oposto (negação ou agnosticismo) percorrem a poética de Linaldo Guedes em Metáforas..., do início ao fim.

Ele é um poeta que não introduz um sertão (pré)configurado, nem um amor monogâmico, nem uma poética estruturada na cartilha de procedimentos didáticos ou em manuais da moda. A diversidade é que dá o tom de unidade ao livro.

Talvez agora entendamos melhor o sentido da palavra “duelo” contida no título do volume. O eu-lírico se debate entre a vida e a (meta)linguagem, em cada página, em cada verso, em cada palavra. Há um esmero em construir-se um livro leve e denso, generoso no número de páginas, e ao mesmo tempo sintetizado na elaboração das imagens, dos ritmos, das ideias.

Um livro em que a metáfora está presente mais no título do volume que na feitura dos poemas. Felizmente o poeta soube evitar esta e outras facilidades tão comuns nestes tempos de “poesia” à mancheia. “Poesia” de “poetas” que encontraram na facilidade do teclado do computador, na divulgação da Internet, ou em editoras pré-pagas um modo de expor suas sandices, suas ignorâncias acerca da produção poética – tanto canônica como contemporânea.

Linaldo Guedes, com Metáforas para um duelo no sertão revela-se, na grande maioria dos poemas, um poeta maduro, desbravador da linguagem da poesia, íntimo da produção de grandes poetas e prosadores. Considere-se, para encerrarmos, “Entre o rio e o mar” (p. 17):

 

tem semanas que acordo janeiro

versos feitos cabral

seco ácido sertão

lâmina e pedra na poesia

galo escondendo a manhã

dias em que custam suores

recordar outros valores

lembrar dos asfaltos de jambeiros

andar pelas ruas, jaguaribe

: há que sempre mirar adiante

nadar nada no capibaribe

colhendo feijão e poemas

há na cozinha da casa grande tão pequena

 

tem semanas que me fixo em junhos

versos vêm de vinícius

solto louco sezão

sonetos infiéis em minha castidade

elegias e sempre um grande amor

dias que valem suores

vale o hoje, o agora, vale o já

cajazeiras ´s só uma página e saudades

outras ruas outros olhos outras cores

madalenas e seus códigos secretos

mergulha poesia tambaú

- plantar sonhos e fantasias

no quarto, onde deve ficar minha pequena

 

tem semanas e dias dezembro

onde espero, só nos livros

: é natal, temos de recomeçar.

 

  1. À guisa de conclusão: A obra Metáforas para um duelo no sertão instiga o leitor a esperar pelo próximo livro de Linaldo Guedes. Um livro que certamente não se desapropriará dos golpes de solidões, os mais diversos. Que aqui ficaram marcados pelas mais variadas faces do desejo: a família, a religiosidade, o erotismo, o sol, o sorriso, a dor de viver...

(Dedico este artigo às queridas amigas Ana Adelaide Tavares, Vilani de Sousa e Vitória Lima).

 

 

Referências bibliográficas

BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento; o contexto de François Rabelais. 7ª ed. Trad. Paulo Bezerra. S. Paulo: Hucitec Editora, 2011.

BARTHES, Roland. A câmara clara: nota sobre a fotografia. Trad. J. C. Guimarães. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011.

ELIOT, T. S. De poesia e poetas. Trad. e prólogo Ivan Junqueira. S. Paulo: Brasiliense.

GUEDES, Linaldo. Os zumbis também escutam blues e outros poemas. João Pessoa: A União, 1995.

GUEDES, Linaldo. Intervalo lírico. João Pessoa: Forma Editorial, (Coleção Tamarindo), 2005.

GUEDES, Linaldo. Metáforas para um duelo no sertão. São Paulo: Patuá, 2012.

HEDEGGER, Martin. Conferências e escritos filosóficos. Trad. Ernildo Stein. São Paulo: Abril Cultural, 1983 (Col. Os Pensadores).

LÓTMAN, I. A estrutura do texto artístico. Tradução de Maria do Carmo Vieira Raposo e Alberto Raposo. Lisboa: Editorial Estampa, 1978.

LÓTMAN, I. et alii. Ensaios de semiótica soviética. Trad. Victória Navas e Salvato Teles de Menezes. Lisboa: Livros Horizonte, 1981.

 

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Amador Ribeiro Neto é doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP e mestre em Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP. Professor dos cursos de graduação e pós-graduação em Letras da UFPB, campus de João Pessoa. Autor de Barrocidade (poesia – Landy, 2003) e Imagens & Poemas (poesia e fotografia – Ed. Universitária UFPB; fotografia de Roberto Coura, 2008). Organizador e co-autor de Epifania da poesia; ensaios sobre os haicais de Saulo Mendonça (Ideia, 2012); A linguagem da poesia (teoria – Editora Universitária UFPB, 2011); Muitos: outras leituras de Caetano Veloso (ensaios – Orobó Edições, 2010) e Literatura na Universidade: ensaios (Editora Universitária UFPB, 2001). Integra a antologia Na virada do século; poesia de invenção no Brasil (poesia – Landy; organizada por Claudio Daniel e Frederico Barbosa, 2002). Colunista do site Cronopios e da revista Correio das Artes, de João Pessoa. Tem artigos e ensaios publicados em vários jornais e revistas acadêmicas. O presente texto, aqui alterado e ampliado, foi originalmente publicado no Correio das Artes de julho de 2012.

E-mail: amador.ribeiro@uol.com.br.

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