ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

EXPRESSIONISMO E REVOLUÇÃO: O VELHO DEBATE 

 

Ana Rusche

  

Raivoso, explosivo, contaminado de forma indissociável pelo experimentalismo e pelo novo, o Expressionismo alemão é invariavelmente caracterizado como uma vanguarda revolucionária. O movimento (de duração curta se computarmos seus frutos numerosos) ocorrido aproximadamente entre 1910 até o final da 1ª Guerra Mundial concentra-se no traço urbano da paisagem, em um estilo visionário e às vezes mistificado, chocante, com grande afinidade com as artes plásticas (as quais buscam tanto o primitivo da xilogravura, quanto a distorção por meio de cores), em constante processo de procura por outras dicções e por novas apreensões sensoriais. Uma das boas ilustrações sobre as propostas ousadas dos escritores da época é frase de Hasenclever, "Esta peça... tem por objetivo mudar o mundo" em manifesto a respeito da estréia de sua Der Sohn, O Filho, em 1913. A peça, realmente consagrada pela posterioridade, tem a marca inconfundível do que se convencionou chamar de "expressionista", com suas cenas de descrição de um realismo entremeado de distorções, visionárias, nas quais se dramatiza o choque entre gerações por meio da metáfora do filho, o novo, e o pai, o velho, com suas antigas concepções, quase em um resumo do que o movimento representou e das ansiedades dos escritores da época.  

Pensar o Expressionismo como vanguarda revolucionária ou contestar essa idéia não é de forma alguma nova. O debate travado aqui de forma incipiente já foi realizado de maneira própria em um movimento crítico denominado Debate do Expressionismo (Die Expressionismusdebatte): em 1937 e 1938, quase uma década após o desabrochar e ocaso do movimento em si, a Das Wort (editada em Moscou de 1936 a 1939, revista de intelectuais alemães exilados) debateu duramente a questão do expressionismo e seu caráter revolucionário, classificação até então, incontestável. A polêmica, como não podia deixar de ser, ocorreu entre alguns titãs desse século, Bertolt Brecht e George Luckács, acompanhados por Lion Feuchtwanger, um escritor burguês. O estopim surgiu com um artigo do escritor Alfred Kurella, ativista político, em ataque violento contra o poeta Gottfried Benn, o qual havia aderido ao nazismo em um primeiro momento sua trajetória. Benn é, sem dúvida, um dos escritores dos mais famosos do movimento. Não se pretende aqui discutir longamente a questão e colocar os argumentos de cada parte, já foi dito que o fizeram de maneira apropriada nos idos 1937, mas tentemos executar alguns raciocínios interessantes ao debatermos o Expressionismo e seu caráter revolucionário. 

Primeiramente faremos um breve retorno aos ancestrais do movimento. Os precursores dessa explosão de formas e tentativas são, em uma primeira análise, os próprios românticos alemães, os quais já buscavam uma forma de expressão inovadora - a  Zauberwort, palavra mágica, que pudesse conter todas as tensões e disparidades humanas de uma só vez e que fosse formalmente perfeita. Essa busca idealista centrada no tema da linguagem e de suas fronteiras caracteriza uma tentativa de alcançar na metafísica uma fuga, um outro estado de coisas, o qual muito se alinha ao período expressionista, pois a Bürgergesellschaft, sociedade burguesa, em construção na Alemanha em meio a um ambiente imperial não refletia exatamente as aspirações dos jovens poetas, os quais buscam na lírica agressiva um refugia a esse mundo desconcertado: "Peguei uma faca de cozinha e cortei algumas veias./ Um gato lambeu graciosamente o sangue do chão" (Von Hoddis, trad. Cavalcanti). Assim, na descrição poética, a visão da cidade não é mais um lugar inóspito, mas sim um local insano, instável, o qual contém as mais diversas potencialidades, a catástrofe congelada em postes de iluminação e ruas escuras, os quais rapidamente eram transformados em protagonistas de uma transcendência por meio de alguma flor largada no asfalto. Em um famoso exemplo, Gottfried Benn no poema Kleine Áster coloca uma flor ingênua, a "sécia", em contraste à dissecação de um cadáver, um corpo de entregador de cerveja afogado: "Um entregador de cerveja, afogado, foi posto sobre a mesa./ Alguém lhe entalara entre os dentes/ uma sécia lilá escuro-claro" (trad. Azenha Jr). O anti-sentimentalismo do jargão médico não é suficiente para afastar a transcendência ao final que a delicada flor encravada no corpo provoca ("Sacia no teu vaso tua sede! Descansa em paz,/ pequena sécia!"). 

Em um contínuo na reflexão sobre os ancestrais do movimento, em segundo lugar, o grande patrono do conteúdo expressionista foi Georg Büchner, o qual escreveu algumas peças de teatro de alcance brutal e faleceu muito jovem, aos 23 anos. O autor da frase incendiária "Paz aos Casebres! Guerra aos Palácios!" escreveu apenas três peças incandescentes, a primeira "A Morte de Danton" a respeito da visão trágica de revolução e de seu herói. Em Leone und Lena, Büchner ilustra uma sociedade burguesa entediada, vazia, sem rumo e motivações ("A maioria reza por tédio, os outros enamoram-se por tédio e ao fim, acabam morrendo de tédio..."). Já em Woyzeck  evolui: coloca as tensões entre burguesia e proletariado cruas em uma crítica mordaz. Delineia em palavras fortes e ordens a subserviência do criado chamado Woyzeck, o único que não é tomado pelo tédio e atividades sem sentido. Woyzeck ouve obediente a todas as classes superiores e, na crítica severa de Büchner, ninguém é poupado: médicos (profissionais liberais), militares ricos (também entediados e com medo do passar do tempo), os militares de patente mais baixa e até mesmo Marie, sua companheira que o trai por um anelzinho. O personagem Woyzeck traz já em sua linguagem pouco articulada, em contraposição a diálogos bem construídos das outras personagens, toda a tensão que os expressionistas irão explorar até às últimas conseqüências. 

Deste caldo mordaz e ácido, saem os primeiros expressionistas. Representados por Gottfried Benn, Georg Heym, Jakob van Hoddis e pelas compulsões de Alfred Lichenstein criam em um primeiro momento um corpus antagônico à arte posta. Não havia uma proposta determinada - bastava a oposição ferrenha ao considerado aceito na época. Metáforas medonhas, gestos fortes, um toque de primitivismo e tintas acentuavas eram as principais armas empunhadas. Neste belo trecho de Friede, de Ehrensteine (trad. Cavalcanti), pode-se ver as cores, formas retorcidas e figuras chocantes: "Sol vermelho rola noite abaixo,/ Nuvens-penugens morrem seu fogo-sonho./ Escuro sobre maré e seara.// Sapo andarilhosalta com grande olho,/ A relva cinza também pula discreta./ Na profunda fonte soam minhas estrelas./ o vento-saudade ventila boa-noite". 

Formaram-se depois, em um segundo momento, diversos grupelhos de escritores, conjuntos estes extremamente curiosos, cada qual com sua publicação e polêmicas bombásticas, sobretudo no que concerne ao formalismo. São tão números os grupos e suas propostas curiosas que poderíamos dedicar uma monografia ao tema, o que não se faz útil aqui. Havia pouca unidade a princípio entre os grupos, já na linha editorial do Der Kondor (O Condor, revista publicada em 1912) vinha determinado que "O Condor não pretende seguir nenhuma direção específica". Mas as diversas vozes clamavam por uma vitalidade na criação artística impressionante. Uma das excelentes frases a respeito do tema é a descrição de Alfred Richard Meyer a respeito dos encontros da Sturm com a Aktion "Não pensávamos tanto no sentimento inebriante de sermos publicados, e sim em ficar atentos à possibilidade de sermos atacados em palavras capazes de queimar como cal virgem ou ácido sulfúrico. Uma incrível animosidade que tínhamos de enfrentar estava no ar e cegava-nos todos". 

A respeito da temática, era variadíssima. Uma das que chama atenção é o tratamento dado aos tempos de paz e na seqüência, à guerra. A paz na cidade não era vista como bons olhos - havia um certo desejo de catástrofe no ar inconfundível ("O chapéu voa da cabeça do burguês,/ Em todos os ares retumba a gritaria", Von Hoddis, em Fim do Mundo). Procuravam um mundo que desabasse, que se auto-destruísse como uma fênix cansada de suas penas velhas em uma grande combustão instantânea. Heym em seu diário de 1910 escreve que "(...) se pelo menos alguém iniciasse uma guerra, nem precisaria ser justa. Essa paz é tão estagnante, oleosa e untuosa, como uma pátina em móveis velhos". O ódio às instituições e ao mundo institucionalizado e posto é extremamente visível e a sanha de destruição muitas vezes se referia ao aniquilamento da ordem. Ludwig Rubiner, em seu "Der Dichter greift in die Politik" (O poeta lida com a política), afirma exatamente tal ponto de vista: o poeta deve criar a "vontade de catástrofe" e destruir todas as instituições e ilusões para se libertar desse mundo institucionalizado. O novo em um conceito extremamente amplo e ideal é a meta de diversos escritores e tema recorrente nos debates. Muitas revistas, manifestos e poemas tratam do novo diretamente, como em Zur Jüngsten Dichtung ("Sobre a mais nova poesia", 1915, Pintus) e Von der Jüngsten Literatur ("Sobre a mais nova literatura", 1915, Flacke). 

De tão clamada, a grande catástrofe chega. A Primeira Guerra é narrada, construída e reconstruída pelo final da geração expressionista - como maior expoente, August Stramm. É interessante perceber que a lírica de guerra alemã foi desenvolvida de forma quase insuperável nesse período embrionário de baionetas, apenas alcançada pelos ingleses em trincheiras só uma década depois. Certamente a experiência primeira expressionista com seu gênio forte e agressivo no que concerne ao trabalho formal auxiliou esse progresso. "Vocês!... A rua mantém aberta/ A dobra de seus casacos no crepúsculo passado./ Casernas e o armazém. E leva ao fim da guerra" (Aos de 20 Anos,  Becher, trad. Cavalcanti). A lírica de guerra normalmente é construída por meio de um terror desordenado e tem por um dos temas recorrentes o não-reconhecimento: a guerra seria uma experiência tão extrema e tão definitiva que teria o condão de modificar uma pessoa de forma para sempre. 

Depois de explicitados alguns dos antecessores do Expressionismo e traçado esse panorama geral do movimento, tratemos de suas revoluções.  

A revolução incontestável do Expressionismo é a formal. Como qualquer vanguarda do século XX que se preze, a inovação do campo formal é quase irrestrita, há experimentações por toda a parte, dicções bizarras e não antes sequer imaginadas, contorce-se a concepção de belo, para todas as maneiras e gostos. A revolução formal inicia-se em uma construção antagônica ao que é posto, um ódio violento ao status quo, para evoluir na construção de um conceito novo, como uma hidra mitológica com suas várias cabeças a balançarem em todas as direções. Como dito antes, os diversos grupos não tinham uma proposta muito definida, apenas linhas gerais que colocam certos parâmetros interessantes a serem violados e violentados, "Tão alto gritam meu sangue louco/ Os patriarcas/ Os heróis/ Os filhos!/ Escuta, Israel, Adônis foi teu Deus, Adônis foi único" (Goll, em Noemi, trad. Cavalcanti). 

A grande questão reside na revolução em seu conteúdo. A respeito das idéias contrapostas no Debate do Expressionismo, Expressionismusdebatte, Brecht valoriza o caráter revolucionário do movimento de certa maneira, colocando que suas tensões dialéticas entre o tradicional e o inovador são extremamente válidas e propositivas, já que as transformações da realidade exigiam novas técnicas de representação. Luckács, de sua parte, condena a insistência na releitura de lugares clássicos e românticos, em um formalismo raso, que se reduzia a um pacifismo abstrato ou a oposição puramente romântica e "espiritual" ao capitalismo e ao imperialismo, em uma concepção ideal de revolução (- a fofoca dessa polêmica entre Brecht e Luckács é que os textos de Brecht só foram descobertos após sua morte, já que o dramaturgo temia que a discussão com o companheiro pudesse enfraquecer a Frente Popular anti-facista). 

Para dar um pouco de concretude ao discutido, imaginemos a cena expressionista: Berlim, 1914. Um termo interessante para ilustrar a época é um que foi usado também pelos próprios expressionistas: Menschheitsdämmerung, em alemão "crepúsculo da humanidade" e ao mesmo tempo "alvorecer da humanidade", aquelas horas quando há uma luminosidade em que não se sabe se é o início de um dia ou se é o começo de uma noite. O sentimento de transição e a insatisfação da burguesia em formação eram latentes. Berlim em 1905 tinha 2 milhões de habitantes, uma das maiores metrópoles da Europa. A cidade era sede do Parlamento Imperial e da Dieta prussiana, arrombada por seus funcionários públicos, funcionários do exército e infestada de profissionais liberais que acompanham tal população. Houve um surto de industrialização, porém não foi suficiente para colocar a oposição de classes tão vívida nesses períodos pós-revolução industrial. As grandes áreas de conflitos sociais na Alemanha situavam-se no Vale do Reno. Em Berlim, as idéias de revolução chegaram mais tarde e eram bem acolhidas pela academia, porém não havia exatamente uma prática revolucionária. A noção idealizada de revolução que era clamada pelos poetas era, em grande parte, derivada dessa distância geográfica e estabelecimento social. O próprio culto ao novo demonstra a fraqueza dessas proposições, já que afirmar o novo seria negar o velho, porém sem propor algo em seu lugar - a novidade, antes de tudo, é um dos grandes adjetivos mercadológicos burgueses. 

A influência do movimento Espartaquista Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht é notória no agravamento desse cenário no final dos anos do movimento. A dupla, ao organizar uma grande manifestação em 1916 e serem presos, fez com que 55 mil trabalhadores das fábricas de munição entrassem em greve. A publicação dos últimos escritos de Rosa em Die Rote Fahne (A Bandeira Vermelha) em 1918 e seu assassinato brutal em 15 de janeiro de 1919 também chacoalharam a cena urbana. O idealismo revolucionário na poesia torna-se latente, principalmente na obra de Johannes Becher, o qual em seu Hymne auf Rosa Luxemburg (Hino à Rosa Luxemburgo) a transforma em Santa e em Cristo, uma sublimação de vocação romântica muito distante do ideário materialista da pensadora.  É importante notar que neste final de desfazimento da vanguarda, muitos escritores já começam a se filiar aos partidos e procurar uma maneira panfletária de escrita. Inicia-se um declínio do movimento, esfacela-se em meio à guerra, em meio ao caos instaurado e a desunião em torno de cabarés. "Que deslumbramentos!/ Porquê esses fanais ardentes?/ A quem faz sinais o trovão?/ Está morto o diabo?/ Por cima das trincheiras/ o céu estende os gritos de auxílio" (Albert Ehrenstein, 1914, "A Europa morre", no livro O tempo branco, trad. Torres). Se a poesia expressionista, por fim, não foi capaz de expressar todas as tensões e totalidades em que sua sociedade estava imersa, ao menos desentranhou dessas fortes contradições, um arcabouço violento e poderoso de expressão.

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Referências Bibliográficas: 

BÜCHENER, Georg, Woyzeck e Leonce e Lena, Tradução de João Marschner, Ed. Ediouro, 2000. 

BÜCHNER, Georg, Woyzeck. Tradução: Tercio Redondo, Editora Hedra, São Paulo, 2003 

CAVALCANTI, Claudia, Poesia Expressionista Alemã, Uma Antologia, Estação Liberdade, 2000.  

HEISE, Eloá, A Lírica Expressionista de G. Benn, AnPLL, Boletim informativo n° 22, GT Literaturas Estrangeiras, Goiânia, 1994.

BRADBURY, Malcom & McFARLANE, James. Modernismo. Guia geral. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Cia. das Letras 

MERCKEL, Ulrich, Teatro e Política, Poesias e Peças do Expressionismo Alemão, Editora Paz e Terra, 1983. 

ROSENFELD, Anatol, A Comédia do Niilismo, in BÜCHENER, Georg, Woyzeck e Leonce e Lena, Tradução de João Marschner, Ed. Ediouro, 2000.  

TORRE, Guillermo, História das Literatura de Vanguarda,  Editora Presença, Lisboa, v.2, 1999

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Ana Rusche, poeta, tradutora e ensaísta, é pesquisadora integrante do Grupo SADI (Semiótica e Análise do Discurso). Publicou em revistas literárias como Phoenix e Metamorfose. Sua página na Internet é www.anar.com.br/site/index.php?option=content&task=view&id=150

Leia também Um Retorno ao Violeta - Três Poetas Expressionistas.

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