ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

A FRAGMENTADA ORDEM NATURAL DAS COISAS

QUESTÕES REFERENTES À ESTÉTICA REALISTA

EM A ORDEM NATURAL DAS COISAS

 

 

Anderson Borges

 

 

 “O gênero humano

Não pode suportar tanta realidade”.

T.S. Eliot

 

O enquadramento estético de autores contemporâneos sugere muitas vezes problemas aparentemente insolúveis. Sem a pretensão de reduzir uma obra a uma única definição, nos dedicaremos a estudar a problemática do realismo presente na ficção de um autor português de nosso tempo, António Lobo Antunes. Sua prosa filia-se de certo modo ao romance realista, pelo menos em se tratanto da crítica presente neste modelo de literatura. No entanto, sua escrita pode exemplificar a proposição de Adorno, de que a tradição crítica desse modelo de romance se manteria a partir de sua negação. Ilustraremos essa negação analisando um recorte do romance A ordem natural das coisas. A fragmentação, nas mais diversas instâncias, encontrada nessa obra, muitas vezes associada ao emprego da chamada epopéia negativa será o nosso ponto de partida.

 

O rompimento com o modo clássico de narrativa foi estudado por Adorno e pelos demais integrantes da chamada escola de Frankfurt. Sob seu ponto de vista, a percepção de uma realidade conflitiva leva o artista a manifestá-la em sua obra de arte. Segundo as palavras do próprio filósofo: “Os antagonismos não resolvidos na realidade retornam às obras de arte como os problemas imanentes da sua forma” (ADORNO, 1982, P.16).

 

De fato, o século XX propiciou contundentes mudanças no romance contemporâneo. A fragmentação de estruturas da narrativa como a dificuldade em precisar o foco narrativo, o enredo obscuro, o tempo não-linear, a imprecisão espacial e a dissolução da sintaxe através de experiências com a linguagem são algumas das características que surgiram a certa altura na história do romance representando a noção de incerteza que chegou com o desencantamento do mundo. Essas transformações ganharam uma proporção ainda mais radical na contemporaneidade1.

 

os caracteres realistas que podem ser vistos na prosa de António Lobo Antunes, bem como em outros autores contemporâneos, não poderiam de modo algum se sujeitar a um anacronismo estético-histórico retomando estritamente traços de Flaubert ou Balzac. Ao se deparar com obras como A ordem natural das coisas, o leitor reconhece que a estética ali utilizada, pautada até uma certa altura no realismo, é redimensionada e problematizada. Primeiramente porque o narrador perde seu posto de organizador. Ao contrário, conforme veremos, ele próprio é uma personagem conflitante que divide com outros pontos de vista a construção do enredo. No caso da escrita lobo antunesiana, o experimentalismo com a narrativa torna mais difícil delimitarmos uma fronteira absoluta até mesmo entre alguns elementos estruturais de um texto literário, como fluxos de consciência e descrições. Partiremos da hipótese de que o caráter fragmentado de cada uma das narrativas que compõem o romance aqui estudado associado à epopéia negativa rasura ou pelo menos atenua esses limites.

 

Adorno em seu texto A posição do narrador no romance contemporâneo salienta a superação da chamada técnica de ilusão (característica fundamental da estética realista) – empregada no século XIX – e enumera alguns autores que realizaram este feito. Proust, com sua extrema subjetividade, Thomas Mann, cujos textos propõem uma intensa necessidade de reflexão, a objetividade virulenta escrita por Kafka e o épico criptograma de James Joyce são alguns dos exemplos mencionados. Também António Lobo Antunes poderia ser citado como um autor contemporâneo que faz uso do realismo a partir de sua negatividade.

 

Especialmente por se tratar de um autor pós-neorrealismo, poderíamos inicialmente pensar haver em Lobo Antunes características desse modelo de literatura, como o contundente caráter marxista, uma tendência voltada pra o psicologismo e, naturalmente, ressonâncias do modernismo como a liberdade na liguagem. Logo, a pergunta natural que pode surgir diante da leitura desse autor: poderíamos circunscrevê-lo ao neorrelismo? Preferímos dizer que não. Em primeiro lugar porque elementos essenciais do realismo como o papel do narrador, a mimese e, deste modo, a objetividade da narrativa sofrem constantemente alterações. Ademais, se quisermos argumentar ainda em relação à tendência neorrealista, embora haja ecos de psicanálise na constituição de personagens e um trabalho com a forma do texto, não há qualquer evidência de marxismo ou apontamentos explicitamente sócio-políticos em sua obra.

 

O curioso é que imediatamente a partir da contextualização de alguns livros seus encontramos elementos condizentes com a relação natural pensada sobretudo no realismo, ou seja, o par representação-realidade. Desde seu romance de estréia, Os cus de Judas, vemos a imagem de um Portugal despedaçado pelos efeitos das guerras decorridas no processos de independências das colônias africanas entre os anos 1950 e 1970. O eco deixado pela África lusófona (Angola, Moçambique, Guiné Bissau, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe) assim como, vez ou outra, o período e a queda da ditadura salazarista portuguesa iniciada em 1933 percorrem praticamente toda sua obra de uma forma muito singular. Embora a abordagem desses temas se constitua obviamente de elementos da realidade, o aspecto subjetivo do narrador e o caráter fragmentado de suas obras, potencializado pela multiplicação de vozes narrativas anunciadas a partir de seu sexto livro, O auto dos danados, tornam cada vez mais evidentes os problemas em relação ao realismo strito censo.

 

As transformações ocorridas logo após os “orgulhosamente sós” – como Portugal veio a ser conhecido no período neocolonialista no continente africano – abandonarem o campo de batalha e os reflexos causados na sociedade portuguesa aparecem frequentemente como cenário da literatura lobo-antunesiana. No entanto, a história lusitana é ali utilizada como pano de fundo para elaboração de uma prosa em que o individual prevalece sobre o coletivo, ou seja, na trama o fio histórico se esgarça e o universo íntimo das personagens ganha o posto principal na narrativa. O narrador conta-nos o que acontece consigo – aniquilando-se com intensa subjetividade – a despeito de narrar sobre uma guerra, uma revolta, ou sequer sobre os outros. Nos deparamos, deste modo, com a chamada epopéia negativa.

 

Para melhor esclarecermos esse conceito formulado por Adorno, precisamos naturalmente retomar uma tipologia básica no campo dos gêneros literários: a epopéia. Inicialmente conhecemos sua definição na Poética de Aristóteles, segundo a qual constitui-se como a arte da narrativa. O confronto, menciona Simone Weil (1979), é um elemento fundamental da narrativa épica e na epopéia negativa, ele tem lugar no próprio sujeito. Recorrendo às palavras de Adorno:

 

“(...) os romances de hoje (...) – aqueles em que a subjetividade liberada passa da força de gravidade que lhe é própria para o seu contrário – se assemelham a epopéias negativas. São testemunhas de um estado de coisas em que o indivíduo liquida a si mesmo e se encontra como pré-individual, da maneira como este um dia pareceu endossar o mundo pleno de sentido.” (ADORNO, 1983, p.273).

 

Assim, a apresentação de uma realidade objetiva, ou ainda, a sugestão do real através da ficção, marca fundamental do romance, cujo auge foi exatamente o chamado realismo, é, na perspectiva adorniana, alterada, principalmente em relação ao narrador. Afinal, a subjetividade ganha um corpo mais consistente na literatura contemporânea e, como consequência, a liguagem ao ser desvinculada de um compromisso restrito ao realismo se torna “associativa e desmantelada” (ADORNO, Ibidem).

 

A dissolução da figura do narrador, então responsável pela organização da narrativa por um processo de individuação do mundo mimetizado, manifesta naturalmente consequências na narrativa. Nesse contexto, ao dizer que o romance não viria a contar mais, Adorno aparentemente aponta para a desconstituição de uma voz narrativa una, capaz de exprimir claramente a simulação de um universo objetivo. O romance contemporâneo – seguindo a nomenclatura adorniana – faz uso de novos elementos e por isso torna embaçada a visão de um mundo objetivo.

 

Em se tratando do livro A ordem natural das coisas, a narrativa é incompleta e interrompida. Não há um único narrador organizador e mesmo aproximadas as várias vozes narrativas que compõem essa obra, a totalidade não será facilmente construída. A fragmentação é ali demonstrada de diversas formas, seja através da polifonia, tão ressonante na obra lobo-antunesiana, seja na suspensão de algo anunciado por um narrador, mediante interrupções ou mesmo a sensação de um teor incompleto.

 

A tensão provocada pela multiplicação de vozes problematizou o romance tradicional, até meados do século XIX apegado ao realismo, conforme defende Adorno. Nesta obra de António Lobo Antunes encontramos ao todo dez narradores que possuem cada qual uma perspectiva diferente. Também as informações temporais e espaciais ao longo dos monólogos constituem lacunas que podem ou não ser esclarecidas.

 

O teor fragmentado com que se caracteriza esta obra pode ser visto tanto em sua divisão, quanto em seu sentido micro-estrutural, em se tratando de cada narrador. A ordem natural das coisas é dividida em cinco livros que poderiam até mesmo ser lidos separadamente sem perda de sentido, embora personagens, situações, espaços e tempos se entrecruzem no decorrer das narrativas e concorram para o esclarecimento de todo o romance. Cada livro possui dois narradores que se alternam ao longo dos capítulos. Não há informações extra-textuais que possam indicar o narrador em questão. Além disso, as relações entre as personagens – que ora são narradores, ora figuram como coadjuvantes – devem ser garimpadas ao longo das páginas. Os pontos de vistas se assemelham a peças de um quebra-cabeças que somente nos últimos capítulos poderão constituir, entre aspas bem definidas, uma “figura completa”.

 

Para pensarmos o narrador presente nos textos aqui estudados, vale a pena nos remetermos à perspectiva de Auerbach, anunciada em Mímesis: A representação da realidade na literatura ocidental. Ali encontramos a idéia de que uma construção textual de representação possui uma estreita relação com seu contexto histórico-cultural, anunciando, assim, as transformações ocorridas na realidade. O teórico justifica esse ponto de vista – de que uma obra pode refletir as mudanças de uma época – a partir de Virgínia Woolf, em que a visão parcial do narrador, os longos monólogos interiores, as constantes digressões são alguns dos artifícios que, segundo a associação representação-realidade, apontam para a queda do sujeito cartesiano no século XX e o surgimento na narrativa da noção de um sujeito fragmentado, cuja incompletude é reconhecida e confirmada das mais diversas maneiras, seja no nivel de um único narrador justificado pelo emprego da epopéia negativa, seja na estruturação do romance.

 

António Lobo Antunes figura como herdeiro legítimo do romance de longos monólogos caracterizado por uma subjetividade punjente, tal qual Woolf ou Joyce, e desse modo, ao realizar uma literatura que abrange de certa maneira a recente história lusitana – como o pós-colonialismo e o estado novo salazarista – e suas consequências na esfera do individual, corrobora a tendência do romance contemporâneo, à luz de Adorno. Afinal, o lugar dos interesses coletivos no romance foi diminuído e se concentrou, então, na experiência individual2.

 

Como dissemos, a polifonia e a divisão dessa obra de António Lobo Antunes ilustram a fragmentação em termos macro-textuais. Argumentamos a seguir o caráter fragmentado enfocando o nível micro-textual, ou seja, exemplos relacionados a um único narrador, a fim de demonstrar como a epopéia negativa acentua a desorganicidade das narrativas e convoca o leitor a participar do processo da organização do texto.

 

As personagens dessa obra possuem, cada qual à sua maneira, um confronto em relação às suas vidas, principalmente em se tratando do passado e evidenciam, dessa forma, a assertiva adorniana acerca da auto-aniquilação assinalada no romance contemporâneo. Logo a partir de suas características e do contexto em que estão inseridas, entendemos sem muitas dificuldades como esse confronto se dá. Para tornar mais claro o que dizemos, esboçamos de uma forma breve o enredo de A ordem natural das coisas. A trama se fundamenta basicamente na história multigeracional de duas famílias, onde cada um dos envolvidos revela através de monólogos – um recurso muito caro à literatura lobo-antunesiana – seus fantasmas do passado.

 

Um funcionário público de meia idade vive com uma mulher bem mais jovem que tem diabetes. Iolanda e o pai se mudaram de Moçambique no período das guerras pela independência política. Em Portugal, Domingos, como o pai dela é chamado, se dedica à atividade de mineiro e tem alucinações constantes de que é um pássaro voando sob a terra, por isso cava buracos no quintal da casa de sua irmã, Dona Orquídea. Trata-se de uma senhora que sofre de uma doença nos rins e vive atormentada pela lembrança de uma desilusão amorosa vivida já há muito tempo. Domingos e D. Orquídea vivem às custas do funcionário público casado com Iolanda. Nesse contexto encontramos também Ernesto Conceição Portas, um professor de hipnotismo por correspondência que era da polícia política (a Pide) e que no presente da enunciação investiga a vida do funcionário a mando de um escritor.

 

Mais à frente nos deparamos com uma outra parte da família do funcionário. Exatamente os parentes com os quais ele não teve contato na sua infância. Seu tio, Jorge Valadas, era um tenente-coronel que acusado de trair o estado novo salazarista a certa altura foi preso e torturado até morrer na prisão. Seu irmão, Fernando, embora considerado pelo pai como um estúpido, era o único que sabia dos adultérios cometidos pela mãe. Desse relacionamento extraconjugal nasceu Julieta. Por rancor e vergonha de ter uma filha bastarda, o pai dos outros a manteve durante muitos anos trancada no porão, onde ela tinha relações escondidas com o filho de uma costureira que aparentemente era vizinha da família. O encadeamento das narrativas, de uma forma muito sofisticada, torna possível tomarmos conhecimento de que o funcionário público é o filho de Julieta apenas no final do livro. Essas são as principais personagens que enredam A ordem natural das coisas.

 

Aparentemente não é difícil relacioná-las umas às outras. No entanto, para mapear o enredo, o leitor deve recolher com atenção informações desconexas e desordenadas ao longo das páginas. Muitas vezes, temos acesso a esclarecimentos a respeito de alguma personagem a partir de outro narrador, como é o caso dos irmãos Dona Orquídea e Domingos. Através da perspectiva deste último, encontramos fragmentos relacionados ao passado de sua irmã, sobretudo referentes ao envolvimento amoroso dela com o homem do cinema, o que pode, desse modo, complementar algumas lacunas deixadas anteriormente.

 

A lembrança de que em Esposende, há trinta e seis anos (segundo o presente de enunciação), o “moço do cinema” se deitou com ela é frequentementemente retomada em sua narrativa. Até mesmo durante o julgamento de seu irmão, acusado de ter estourado o esgoto enquanto cavava buracos no quintal e, por isso, causado prejuízo à vizinhança, D. Orquídea se recorda daquele tempo. O excerto escolhido demonstra como passado e presente instauram um confronto nos pensamentos dessa personagem. O texto fragmentado provoca uma sensação de simultaneidade entre o que acontece à sua volta (a descrição do que se passa no tribunal), as reminiscências de um passado recente (sua última consulta médica) e um passado remoto (o relacionamento com o homem do cinema).

 

“Uma pedra de moinho, Dona Orquídea, os meus parabéns, a única coisa que não entendo é por que motivo a senhora continua viva,

e o juiz, sem alma para molhar o polegar de saliva,

(...)

e o médico, a oferecer-me bonbons, a oferecer-me cigarros,

(...)

e o meu irmão, a baixar a intensidade da lanterna de capacete,

Cento e quarenta mil contos é o dinheiro, nunca supus que a merda fosse tão cara,

e eu, a sentir um seixozito na bexiga e a pensar em Esposente e no mar e na areia e nas ervas que beberam o licor do meu corpo encostado à lona do cinema, beberem o sangue daquilo que se sabe que se tem apenas no instante em que se perde, a pensar em Esposente e nos pinheiros e no vento e no homem a erguer-se, a sacudir a caruma, a acender o cigarro, a ir-se embora (...)”3 (ANTUNES, 1992, P.110)

 

As lembranças constituem, portanto, um confronto no interior da personagem. A epopéia negativa nesse caso resulta de uma espécie de dialética de memória e presente, em que a insatisfação com o passado ainda não superada interfere na enunciação colaborando ainda mais para a fragmentação do texto, pois a retomada de eventos pretéritos, como vimos, interrompe o fluxo narrativo.

 

Um outro exemplo desse embate entre presente e passado no interior da personagem acontece com Fernando que, aparentemente em 1992, já com oitenta e um anos, recorda seu tempo de criança e também quando seu irmão, Jorge Valadas foi preso em 1950 por conjurar contra o regime salazarista. A voz de seu pai através da repetição de uma frase percorre toda sua narração, como um pensamento involuntário que se estancou em sua memória. Desde pequeno ele ouve: “Que mal fiz eu a Deus para ter um filho tão estúpido, senhores?”, esse eco revela como a presença paterna ainda é uma constante em seus dias e adquiriu, embora o pai já estivesse há muito tempo ausente, uma feição atemporal. O curso de sua narrativa é frequentemente interrompido pelo estribilho do pai, talvez por isso ele tenha confessado em determinado momento sentir-se oprimido pelo peso da infância.

 

A difícil delimitação do foco narrativo tem uma justificativa no próprio texto. Fernando, em determinado momento, diz que “a idade mistura as vozes do passado” (ANTUNES, 1992, P.159), o que torna possível argumentarmos que o deslocamento e a condensação podem constituir não somente o sonho, evocando o estudo de Freud em sua Interpretação dos sonhos (FREUD, 1999), mas também a memória.

 

Vale a pena relembrar que devido às proporções deste ensaio, ilustraremos tanto a epopéia negativa, quanto o caráter fragmentado da escrita apenas em alguns dos narradores. Sobre a fragmentação em termos da disposição gráfica do texto, nos servimos do caso do primeiro narrador do livro “Doces odores, doces mortos”. Trata-se do funcionário público de meia idade, não nomeado, que vive com uma jovem diabética. Estendido na cama esperando o efeito do remédio calmante inicia uma narrativa caracterizada por “sobressaltos da memória” de sua infância. Ali ele conta a Iolanda, sua companheira, que quando menino passava as tardes perambulando por um cemitério e que até os seis anos não conheceu a família de sua mãe. Mais a frente tomamos conhecimento de que seu avô enviara Julieta (a mãe do funcionário) para longe da família. Essa falta é constantemente retomada ao longo de sua narrativa. Logo percebemos através de suas confissões um caráter fragmentado e interrompido, conforme o exemplo:

 

“às vezes, quando me calo no colchão, amaldiçoando a história que conto, segundos antes da campainha do relógio me chamar aos gritos para o emprego do Estado,

acontece-me odiar-te

perdoa

como os vizinhos debaixo se odeiam, um casal de reformados a insultar-se entre dentes...” (ANTUNES, 1992, P. 37-38)

 

 

As construções “acontece-me odiar-te” e “como os vizinhos debaixo se odeiam” naturalmente se completam. Entretanto, a conclusão da frase é interrompida pelo pedido “perdoa”. Como notamos, a fragmentação tem seu lugar até mesmo no plano da sintaxe empregada na narrativa e também nesse caso ela está intimamente ligada à epopéia negativa, uma vez que representa um reflexo imediato dos conflitos da personagem. Trata-se de uma linguagem desprendida da organicidade característica de uma estética realista e que ao assumir um caráter fragmentado expresso paradigmaticamente na disposição estrutural do texto simboliza o confronto que tem lugar no próprio narrador-personagem.

 

O jogo em torno da fragmentação e da incompletude é mencionado pelo funcionário público até como matéria constitutiva de suas memórias, pois como já anunciamos, ele nada sabe sobre seus pais e pouco se recorda de seu passado. Nem mesmo tem certeza da reconstituição de situações lembradas e, talvez por isso, confessa à sua jovem companheira, sentir-se um “(...) homem sem passado, nascido quarentão num banco de autocarro, a inventar para si mesmo a família que nunca tivera numa zona da cidade que jamais existiu. E assim ontem à noite, por exemplo, ao falar-te das minhas tias, veio-me à idéia a sensação ingrata de te mentir, ao criar enredos sem nexo a partir do vazio de parentes e de vozes da minha vida pretérita” (ANTUNES, 1992, P.40). O leitor por sua vez não tem escolha senão acompanhar as incertezas de um narrador que possui escassas lembranças de seu passado.

 

Como vemos, o tempo pretérito pode vir a estabelecer uma lacuna ou aparentemente suscitar ora alguma insegurança, como no funcionário público, ora certo ceticismo na constituição da personagem, como acontece com o segundo narrador, o ex-Pide Ernesto da Conceição Portas que investiga a vida do funcionário. A certa altura ele afirma não entender porque uma vida tão medíocre como aquela por ele investigada pode ser motivo de interesse. Assim, dialogando com o escritor que lhe paga para investigar o funcionário lhe sucede um pensamento a esse respeito:

 

“de repente, esta manhã, antes de vir ter contigo [se dirigindo ao escritor], estava eu a barbear-me, compreendi e fiquei parado em frente ao espelho, (...) com metade da cara cheia de sabão, compreendi, de navalha no ar, que o teu fulano não existe como não existe a nogueira, nem o pai, nem a tia, nem a Quinta do Jacinto, nem sequer Alcântara, nem sequer o Tejo, que me puseste a trabalhar, por duas ou três notas, numa mistificação esquisita, que me inventaste este enredo para os teus capítulos, ora confessa lá, que me obrigaste a perder o meu tempo e os meus alunos com histórias da carochinha...” (ANTUNES, 1992, P. 57-58).

 

O Senhor Portas prossegue com seu devaneio cético expandindo-o até chegar à sua própria vida – tal qual o fez o funcionário público – “compreendi (...) que não há a Pide, que não houve os comunistas, que não houve o meu passado, (...) que não houve eu” (Idem, P.58), finalmente levantando a suspeita de terem se encontrado, ele e seu interlocutor, um escritor, numa “Lisboa imaginária”.

 

O exercício da dúvida, decorrente do fato de que o narrador não compreende sua própria vida – como é o caso do funcionário público – ou porque não faz sendido a vida do outro – como o faz o ex-Pide em relação ao funcinário – incide numa reflexão que recai sobre todas as coisas, inclusive sobre si mesmo, e por esse motivo atrás da consequente postura cética, surgem questões relacionadas à metafísica do romance. No caso do narrador Ernesto Portas, esse exercício resulta numa espécie de reconhecimento da ficção. Além do mais, porque seu interlecutor é o escritor que o contratou, o jogo de metalinguagem fica ainda mais convincente gerando a impressão de que ele, o narrador do capítulo em questão, se dirige ao escritor de verdade, isto é, ao Lobo Antunes.

 

Ora, esta é uma diferença fundamental entre o romance realista e aquele que afirma o contrário. Enquanto a reflexão do realismo aponta para uma tomada de partido em relação a alguma personagem, isto é, um apelo de ordem moral, a perspectiva anti-realista reflete sobre a mentira da representação. Assim sendo, ao reconhecer-se como criação, o narrador problematiza a estética realista e atualiza a discussão iniciada pela escola de Frankfurt, de que o realismo se manteria por sua negação. Eis o excerto mencionado por Adorno:

 

“Se o romance quer permanecer fiel à sua herança realista e dizer como realmente são as coisas, então ele tem que renunciar a um realismo que, na medida em que reproduz a fachada, só serve para ajudá-la na sua tarefa de enganar.(...) O momento anti-realista do novo romance, sua dimensão metafísica, é ele próprio produzido por seu objeto real – por uma sociedade em que os homens estão separados uns dos outros e de si mesmos. Na transcendência estética reflete-se o desencantamento do mundo.” (Adorno, 1983, p.270)

 

A idéia de que os homens estão separados uns dos outros é constantemente reiterada na prosa de nosso tempo. A epopéia negativa que caracteriza A ordem natural das coisas deriva, como já foi mencionado, dos tormentos decorridos da permanência de situações passadas mal-resolvidas na memória. António Lobo Antunes, com mostras de um teor de psicanálise, constrói narrativas, constituídas de repetições de frases, como é o caso de Fernando ou retomadas de um mesmo pensamento, como acontece com D. Orquídea.

 

Além disso, a precariedade dos relacionamentos pode ser vista em vários outros momentos como é o caso de Domingos, o pai de Iolanda que conta quando deixou sua mulher em Moçambique no período de guerra: “(...) e eu, para a sua mãe, Vou-me embora para Portugal, Noémia, e ela, de olho na parede, a observar as traineiras com o interesse que nunca me observou a mim (...)” (ANTUNES, 1992, p.96). Como vemos a partir de alguns exemplos, o teor fragmentado da narrativa como fruto da digladiação no interior dos narradores-personagens pode representar, seguindo a perspectiva de Adorno e Auerbach (lembrando a associação representação-realidade), como os homens estão separados de si mesmos.

 

Conforme sabemos, a intensificação da subjetividade do narrador e as mudanças na narrativa decorrentes desse processo remodelaram o romance contemporâneo. Em alguns casos, como vemos em António Lobo Antunes, até o silêncio passou a compor de modo estrutural a narração, integrando não apenas o enunciado, mas até mesmo a própria estrutura da enunciação. Nos servindo de uma comparação para argumentar sobre esse recurso, seria como o silêncio de Ajax, descrito na evocação dos mortos no livro XI da Odisséia de Homero. A reação dele ao ter perdido para Ulisses as armas de Aquiles, o maior guerreiro morto, foi o silêncio; capaz de exprimir o que as palavras não alcançariam. Um silêncio semelhante aparece constituindo a enunciação de A ordem natural das coisas, constituindo, se assim podemos dizer, o corpo da narrativa.

 

O espaço em branco simbolizando o silêncio na estruturação de uma frase pode ser visto, por exemplo, na narrativa de Alfredo, o quase-namorado de Iolanda. Ao contar a reação de sua mãe diante do dignóstico do médico, que chama a atenção para gravidade da loucura de seu tio, Artur, cuja crença no fim dos tempos – nesse caso ilustrada pela idéia do dilúvio do rio – o tornou agressivo.

 

 

(e o médico para os meus pais

– Vamos ter de o isolar durante um mês ou dois que o ar do rio piorou-o

e a minha mãe, a afagar o broche de coral com uma cercadura cormada, representando um perfil de vaso grego,

– Pôs-se a apregoar o Dilúvio no restaurante, senhor doutor, nem calcula o susto que

apa

-nhámos) (ANTUNES, 1992, 269)

 

 

Nesse sentido, nos lembramos mais uma vez de Adorno, que se referindo à prosa contemporânea, argumenta que a impossibilidade de dizer é mimetizada pelos silêncios (ADORNO, 1982, P.354).

 

O modelo narrativo empregado por António Lobo Antunes instaurado na fragmen-tação permite até mesmo o uso de recursos utilizados no gênero lírico. Além da disposição gráfica do texto, desde o estilo escolhido na paragrafação – aplicado inicialmente no romance anterior, Tratado das paixões da alma – até a alforria de pontuações, que radicaliza a imprecisão do foco narrativo, encontramos também a enumeração caótica, conforme pode ser visto num monólogo de Jorge Valadas, em que são aproximadas lembranças remotas àquelas mais recentes.

 

Relembrando o enredo, ele foi preso e, na circunstância que mencionamos, está sendo interrogado por um inspetor e descreve o que se passa durante o interrogatório. Ao mesmo tempo pensa em Amália, aparentemente uma amante sua, em sua infância vivida em Monsanto e no padre Correia. Novamente as repetições se sucedem marcando o confronto no interior da personagem.

 

“Monsanto tão verde, a gaiola dos periquitos, o meu irmão Fernando a brincar no pátio da cozinha, o careca, a Alice, o indiano do bócio, o médico, o gordo, o outro, a torneira de Caxias, gaivotas não, os pingalins são uma miséria agora, Amalia, não decepam orelhas, o casarão de Santo Tirso ah chuva, quinhentas vezes no quadro [o leitor deve associar ao padre], estenda a mão, Valadas, os republicanos escalando a encosta, o corvo sobre as azinheiras, cigarros clandestinos, palhacinhos de loica, se eu casasse contigo, Amalia, era feliz?

Feliz, Amália, era feliz em França e tu rodeada de filhos, nunca fui socialista, palitando, nunca fui socialista, as gengivas, nunca fui socialista, nunca fui socialista (...)” (ANTUNES, 1992, P.174)

 

Em A ordem natural das coisas, como em outros livros desse mesmo autor, a passividade do leitor acostumado a uma literatura fundamentada unicamente na mimese, digamos, objetiva – isto é, que diz as coisas como elas aparentam ser – é desfeita. O leitor, por sua vez, é convocado à atitude narrativa de participar de forma ativa no processo de construção de significados, em que a ele, ao leitor, cabe completar as lacunas deixadas propositalmente na narrativa. Tal qual observamos no livro terceiro, cujo título é “A viagem à China”.

 

Ao contrapormos o útimo parágrafo desse livro, de um capítulo narrado por Jorge Valadas, à perspectiva de seu irmão, Fernando, anteriormente comentada, observamos tratar-se de sua morte. Ao dizer que vai atravessar a fronteira para o outro lado e desembarcar enfim num “país desconhecido”, Jorge anuncia o fim de seus dias e conclui de forma irônica e inusitada: “suponho que concordas, Margarida, que meus pais não haveriam de gostar” (ANTUNES, 1992, P. 221). Relacionar os capítulos, desvendar os símbolos, decodificar o foco narrativo são apenas alguns dos exemplos em que o trabalho da leitura assume a organização dos eventos do romance, papel mormente atribuído ao narrador no realismo tradicional.

 

Conforme percebemos, encontramos nas entrelinhas da escrita lobo-antunesiana um teor vivo de narrativa, caracterizado por uma subjetividade punjente. Walter Benjamin, na conclusão da sexta parte de O narrador – considerações sobre a obra de Nikolai Leskov, comenta haver uma particularidade nas narrativas que falta aos textos relacionados à categoria de informação: a pulsação do texto narrativo e a consequente liberdade conferida ao leitor de ajustar as coisas (c.f. BENJAMIN, 1996, P.203).

 

Essa particularidade é radicalizada nessa espécie de literatura, em que a subjetividade e o experimentalismo com a forma da narrativa em sua realização provocam, como vimos, uma sensação de simultaneidade. A fronteira entre descrição e narração é muitas vezes rasurada, quer dizer, na leitura concorrem acontecimentos do presente da enunciação e pensamentos referentes ao passado. O efeito desse entrelaçamento de ação e comentário expressa o ponto de vista de Adorno acerca da distância estética, como lemos a seguir:

 

"o comentário está de tal modo entrelaçado na ação que a distinção entre ambos desaparece, então isso quer dizer que o narrador ataca um elemento fundamental na sua relação com o leitor: a distância estética. Esta era inamovível no romance tradicional. Agora ela varia como as posições da câmera no cinema: ora o leitor é deixado fora, ora guiado, através do comentário, até o palco, para trás dos bastidores, para a casa das máquinas" (ADORNO, 1983, 272).

 

Em António Lobo Antunes, tal qual no modelo de romance confeccionado por Proust – exemplo utilizado por Adorno – alicerçado em longos monólogos interiores, a distância entre narrador e leitor é também alterada. Isso decorre primeiramente da mistura entre o que se passa no interior de uma personagem e as descrições de acontecimentos externos, o que provoca uma impressão de simultaneidade e, somado às repetições de frases, instaura um novo ritmo na leitura. Ademais, continuando a metáfora cunhada por Adorno, além da possibilidade de aproximar e distanciar, a câmera varia também sua posição, pois ela não está fixada num único ponto, visto a variedade de narradores existentes em A ordem natural das coisas.

 

À guisa de conclusão, revisitamos o velho pensamento de que um bom texto nos convida sempre a uma releitura e, por esse motivo, qualquer teoria a seu respeito pode e deve ser constantemente discutida. Neste como em outros romances de António Lobo Antunes encontramos elementos que atualizam uma discussão em torno da estética realista na contemporaneidade, aqui estudada principalmente sob o prisma de um teórico da escola de Frankfurt. A “ingenuidade épica”, empregando uma outra expressão utilizada por Adorno, cujo pilar principal está na objetividade, foi transformada pela visão subjetiva confirmando a tese de que o realismo se manteria em sua negação. Além disso, a dissolução da narrativa em fragmentos, nos remetendo um único narrador, e a pluralidade de pontos de vista, em relação ao romance como um todo, problematizam ainda mais o realismo em nosso tempo.

 

Sobretudo no século XX, experenciamos na leitura de alguns autores a intensificação de uma literatura que abandonou o fundamento último e principal de referencialidade. Apesar de encontrarmos referências ao eco deixado pela recente história das guerras, decorrentes do processo de independência das colônias africanas, na obra de António Lobo Antunes a subjetividade do narrador ocupa o posto principal e desfaz, desse modo, a organicidade da narrativa tradicional. A representação crítica frequentemente associada ao chamado realismo ainda está presente, no entanto sua forma sofre uma alteração de tal modo que não raro confere ao leitor uma grande parcela de legitimidade na construção de sentido.

 

Conceitos como a epopéia negativa ou a diminuição da distância estética, formulados por Adorno, assim como a liberdade do leitor de ajustar as coisas, de que nos fala Benjamin, constituem características nítidas do livro aqui estudado. António Lobo Antunes ilustra uma recepção muito peculiar da estética realista e nos convida a entrar por uma porta que, embora saibamos para onde vamos ao atravessá-la, ainda podemos nos surpreender durante a travessia.

 

 

Referências bibliográficas:

 

ADORNO, Theodor. Posição do narrador no romance contemporâneo In: Os pensadores (Walter Benjamin, Jürgen Habermas, Max Horkheimer, Theodor W. Adorno - Textos escolhidos), 2ª ed., São Paulo: Abril, 1983; P. 269-273.

 

ADORNO, Theodor. Teoria estética, Lisboa: Edições 70, 1982.

 

ANTUNES, Antonio Lobo. A ordem natural das coisas. Lisboa: Dom Quixote, 1992.

 

AUERBACH, Erick. Mimesis: A representação da realidade na literatura ocidental. Trad. Suzi F. Sperber. 2.ed. São Paulo: Perspectiva, 1987.

 

BENJAMIN, Walter. O Narrador. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e  história da cultura. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet; prefácio de Jeanne Marie Gagnebin. 7ª edição. São Paulo: Brasiliense, 1996. (Obras escolhidas; vol 1).

 

FREUD, Sigmund. A interpretação dos sonhos. Rio de Janeiro: Imago, 1999.

 

WEIL, Simone. (org. Ecléa Bosi) A Ilíada ou o poema da força. In: WEIL, Simone. A condição operária e outros estudos sobre a opressão. (trad. T. G. G. Langlada). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, 319-344.

 

 

NOTAS

 

1 É preciso ressaltar que o uso desse termo neste artigo, bem como palavras a ele relacionadas, não deve ser relacionado meramente ao seu sentido temporal. Empregaremos “romance contemporâneo” para designar certa categoria teorizada Adorno.

2 Adorno debate essa idéia ao longo do texto Posição do narrador no romance contemporâneo (ADORNO, 1983).

3 Chamamos a atenção para o fato de que Lobo Antunes utiliza em sua prosa recursos que a aproximam muitas vezes da poesia. Assim, procuramos conservar (até certo ponto, devido à paragrafação deste artigo) a disposição gráfica que o autor utiliza em sua obra.

 

 

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Anderson Borges é estudante de graduação de Português e Alemão pela Universidade Federal de Minas Gerais. Também escreve poesia e prosa.

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[ ZUNÁI- 2003 - 2009 ]