VIOLÊNCIA NOS
SENTIDOS
DOS
(Uma leitura da
poesia de Roberto Piva & Arthur Rimbaud
nos livros
Paranóia e Illuminuras, Gravuras Coloridas.)
Anderson Fonseca
Eu era um pouco de tua voz
violenta, Maldoror
quando os cílios do anjo verde enrugavam as
chaminés da rua onde eu caminhava
- Roberto Piva.
Roberto Piva e Arthur Rimbaud
são dois poetas violentos, que criam uma poesia violenta que,
por sua vez, violenta a própria poesia, por transgredi-la
inteiramente no seu cerne ao expor de modo visionário a
violência do(s) seu(s) tempo(s) - violência nos/dos sentidos.
Seria ousadia comparar Piva à
Rimbaud? Não. E, no entanto, não se pretende aqui fazer
comparações, mas, procurar mostrar que Roberto Piva entendeu
Arthur Rimbaud, pela leitura dos livros Illuminuras, Gravuras
Coloridas (Rimbaud) e Paranóia (R. Piva).
Ambos "descontroem" a poesia
como forma manifesta do sufoco e do despedaçamento do
indivíduo na sociedade. Ambos rompem com a ordem lógico-frasal
reproduzindo o caos da cidade, caos que gera uma desestrutura
sensorial vista na afluência do delírio egóico na subjetivação
do mundo pela irrupção do inconsciente. À semelhança de James
Joyce, Jack Kerouac e Antonin Artaud, Piva elabora sua poesia
adotando o "fluxo de inconsciência" como método, a linguagem,
portanto, se parte em signos sinérgicos que traduzem o
amálgama de sensações e imagens da civilização ocidental - um
tempo de violência nos sentidos. E Arthur Rimbaud "cola"
diferentes imagens, - ou percepções -, dissociadas
reproduzindo a descontinuidade sensório-temporal da sociedade
moderna.
Mas, porque, tanto Rimbaud,
quanto Piva "apregoam" uma poesia de violência nos sentidos?
Por que ambos sofrem a angústia do processo de civilização
moderna/pós-moderna. Eles atravessam o estágio de mudanças, a
partir, do capitalismo e a crise das ideologias.
"A realidade sendo espinhosa
demais pro meu grande caráter" - Arthur Rimbaud.
"O sempre chegando, indo a todo
canto" - Rimbaud.
"eu preciso partir um dia pra
muito longe o mundo exterior tem pressa demais
para mim" - Roberto Piva.
A angústia diante da realidade
provoca nos autores uma reação niilista contra o mundo, um
anseio pela aniquilação do presente.
Eu estou farto de muita coisa
não me transformarei em
subúrbio
não serei uma válvula sonora
não serei paz
eu quero a destruição de tudo
que é frágil
- Poema Porrada /
Roberto Piva
Sonho com uma Guerra, de
direito ou de força, com uma lógica nada previsível.
Tão simples quanto uma frase
musical.
- Guerra / Arthur
Rimbaud.
A reação de impulso juvenil
assume a forma de uma poesia caracteristicamente violenta na
combinação de imagens sintaticamente distintas que pela
reunião se apossam de um sentido estranho, novo e intenso, por
romper com a razão e aceitar a sensação do corpo repleto de
"cicatrizes'; adotar um ritmo não-linear, reproduzindo a
descontinuidade do tempo-espaço, da memória, do inconsciente e
da sociedade industrial; uma voz irônica e melancólica -
expressão do desencanto com o mundo.
Sou um efêmero e não muito
descontente cidadão de uma metrópole que julgam moderna porque
todo estilo conhecido foi excluído das mobílias e do exterior
das casas bem como da planta da cidade. Aqui você não nota
rastros de nenhum monumento de superstição. A moral e a língua
estão reduzidas às expressões mais simples, enfim! Estes
milhões de pessoas que nem têm necessidade de se conhecer
levam a educação, o trabalho e a velhice de um modo tão igual
que sua expectativa de vida é muitas vezes mais curta do que
uma estatística louca encontrou para os povos do continente.
Assim como, de minha janela, vejo novos espectros rolando pela
espessa e eterna fumaça de carvão, - nossa sombra dos bosques,
nossa noite de verão! - as Erínias novas, na porta da cabana
que é minha pátria e meu coração, já que tudo aqui parece
isto, - Morte sem lágrimas, nossa filha ativa e serva, um Amor
desesperado, e um Crime bonito uivando na lama da rua.
- Cidade/ Arthur
Rimbaud.
Eu queria ver as caras dos
estranhos embaixadores da Bondade quando me
vissem passar entre as rosas de
lama firmentando nas ruelas onde
a Morte é tal qual uma porrada
tilintam campainhas nas asas
dos anjos que vão passar
tanto as cidades que percorrem
como as cidades que abandonam estão vazias
som morte tempo ossos verdes
vontade energia e as habituais velhas
loucas distribuindo bombons aos
meninos pobres
(...)
as crianças fazendo haraquiri
ao som de Lohengrin
sobre os pavimentos desolados o
firmamento está distante como nunca
nós provamos a esperança
desesperada que acompanha cada gosto ritual
enquanto nossas tripas agonizam
nos indefesos caules das hortênsias".
- L'ovalle delle apparizioni
/ Roberto Piva.
A cidade é o campo de atuação
do caos, onde visões e sons conflitam; onde o homem
sedimenta-se nos instintos de morte e desespero deslocando-se
da razão; onde cada cidadão é uma ferramenta do progresso e o
avanço industrial é o substrato da divisão social e da
subversão do caráter humano; onde o poeta questiona seu
estar-no-mundo; onde Deus é ausente.
A cidade na poesia de Roberto
Piva e Arthur Rimbaud é esmagadora, ela tem o sentido de
decomposição do ente, no seu surgimento ela inaugura a
crise da existência do indivíduo -o poeta- absorvido no caos
da massa, da velocidade, etc., que apenas justifica sua
existência pelo "longo, imenso e refletido desregramento de
todos os sentidos".
Rimbaud escreve na Carta Dita
do Vidente: "O poeta é mesmo ladrão de fogo. Ele é encarregado
da humanidade, dos animais até; ele deveria fazer sentir,
apalpar, escutar as suas invenções; se o que ele traz de lá
tem forma, ele dá forma; se é informe, ele dá informe".¹
O poeta tem a função de
simular o objeto real, ou fantástico, na sua poesia. O
poema torna-se, então, um simulacro-mimético do
objeto-modelo, no qual se fundamenta a essência poética.
Assim, o poema imita o objeto, ele é a transcrição verbal e
simbólica da natureza de seu tema. Se o tema for caótico, o
poeta reproduzirá o caos na composição do poema. Logo, é certo
afirmar, que Piva simula a cidade na sua poesia, cria
pelo processo de mímesis e simulação uma cidade noir,
espetáculo do delírio e do desconcerto orgânico. Enquanto,
Rimbaud, representa a paisagem urbana e seu conflito humano.
No poema Boletim do Mundo
Mágico, Roberto Piva, escreve a sensação sinistra de viver num
mundo desconexo e irracional:
Meus pés sonham suspensos no
Abismo
minhas cicatrizes se rasgam na
pança cristalina
eu não tenho senão dois olhos
vidrados e sou um órfão
havia um fluxo de flores
doentes nos subúrbios
eu queria plantar um taco de
snooker numa estrela fixa
na porta do bar eu estou
confuso como sempre mas as galerias do
meu crânio não odeiam mas as
batucadas dos ossos
colégios e carros fúnebres
estão desertos
pelas calçadas crescem longos
delírios
(...)
eu posso abrir os olhos para a
lua aproveitar o medo das nuvens
mas o céu roxo é uma visão
suprema
minha face empalidece com o
álcool
eu sou uma solidão nua amarrada
a um poste
fios telefônicos cruzam-se no
meu esôfago
nos pavimentos isolados meus
amigos constroem um manequim fugitivo
meus olhos cegam minha mente
racha-se de encontro a uma calota
minha alma desconjuntada passa
rodando".
O poeta padece as paixões
incitadas pela relação que estabelece com a cidade, paixões de
medo e solidão, as quais são aspectos do vazio existencial que
a cidade por sua natureza gera. Eis a sensação non-sens
do poeta: o Nada sólido e composto da cidade invadindo-lhe as
vísceras da alma. Conseqüência: o sufoco faz o poeta
desejar a fuga do real:
eu preciso dissipar o encanto
do meu velho
esqueleto
eu preciso esquecer que existo
mariposa perjuram o
céu de cimento
eu me entrincheiro
no Arco-Íris
(...)
eu preciso partir um dia muito
longe
o mundo tem pressa
demais para mim
São Paulo e a
Rússia não podem parar
(...)
minha alma louca aponta para a
Lua"
- Poema Porrada/ Roberto
Piva.
A realidade sendo espinhosa
demais pro meu grande caráter, - me vi na casa de Madame, um
imenso pássaro azul cinza se debatendo contra as molduras do
teto e arrastando as asas nas sombras da tarde."
-
Bottom/
Arthur Rimbaud.
-
Vi demais. A visão se revia
pelos ares.
Tive demais. Sons de cidade, à
tarde, e ao sol, e sempre.
Soube demais. As paradas da
vida. -Ó Sons e Visões!
Partida entre afeto e ruídos
novos!"
- Partida / Arthur
Rimbaud
O poeta, diante do Caos real
faz sua escolha, ele decide digerir a realidade em grãos de
alucinação e vidência que exibam tanto o absurdo do mundo
quanto o anseio por algo espiritual na inorgânica sociedade -
O poeta renuncia. Renuncia a razão cartesiana e abraça a
paixão de Nietzsche, negando Deus na cidade afirmando haver
apenas o homem só em seu destino; renuncia a lógica e aceita o
devaneio; renuncia o espiritual (metafísico, ausente e
simples) para buscar o espiritual (transitório, participante
do processo do mundo e complexo). - a análise do parágrafo
refere-se à Roberto Piva.
Eu aprendi com Rimbaud
& Nietszche os meus
toques de Inferno
(Anjos de Freud,
sustentai-me!)
& afirmando isto
através dos quartos sem tetos
& amores azuis
eu corro até a colher de espuma
fervente
driblando-me no cemitério
faminto da última FOME
com tumbas & amantes cheios de
pétalas
porque o céu foi nossa última
chance
esta noite".
- Piazza VIII / Roberto
Piva²
Acredito que esta resenha prova
que o poeta Roberto Piva re-interpreta a poesia rimbaudiana de
modo atual e autêntica, estabelecendo-se como um poeta que
merece o respeito e a atenção de estudiosos e da academia.
Por fim, espero que esta resenha contribua com um
aprofundamento da análise e compreensão de sua obra.
Referências
bibliográficas:
PIVA, Roberto, Um
estrangeiro na legião, ed. Globo, São Paulo, SP, 1ª ed.,
2005.
RIMBAUD, Arthur,
Illuminuras, Gravuras Coloridas, ed. Illuminuras, São
Paulo, SP, 2002
¹ Rimbaud, Arthur. Uma
Estadia no Inferno, Poemas Escolhidos, A Carta do
Vidente, Trad. Daniel Fresnot, Ed. Martin Claret, São
Paulo, SP, 2005. : (pág. 82).
² Piva, Roberto. Um
estrangeiro na Legião, Obras reunidas volume 1, ed. Globo,
São Paulo, SP, 1ª ed., 2005. : (pág. 103). |