A
FALA DO MUNDO EM PRIMEIRA PESSOA
André
Luiz Pinto
Donizete
Galvão, poeta mineiro de Borda da Mata, chega a seu
sétimo livro, Mundo mudo, após uma trajetória
de quinze anos de edição, onde seu tema principal
consistia na experiência de imigrante que ele fora e
é, ao largar o interior de Minas para o anonimato da
cidade de São Paulo. Donizete parece ter encontrado,
nesse novo livro, uma síntese que não só
conflui suas indagações sobre o campo e a cidade,
como coaduna aspectos estilísticos difíceis
de serem reunidos: consistência e simplicidade. Este
livro, entretanto, pode vir a soar para os leitores de Donizete
uma perda nas suas metáforas e algum maneirismo, que
até aqui se mostrou fundamental para sua caminhada
de aprofundamento temático. Mundo mudo, e é
isso que procuraremos apresentar, mostra-se como um salto
em relação às obras anteriores, não
no que diz respeito à riqueza das metáforas,
tampouco unicamente pela concisão. Donizete Galvão
parece determinado, como já afirma no texto de orelha
de seu livro anterior, Ruminações, ao citar
Francis Ponge, "o mundo mudo é nossa única
pátria", em trazer à tona, do balneário
nadificante das coisas imersas no mundo, entes destacados
do mundo que se negam à totalidade, que se revelam
tão díspares, que seu modo de ser perde qualquer
esteio, só respondem pela singularidade.
Mundo mudo
é um recanto de coisas que não se querem no
mundo, que, no fundo, reclamam para si, pela voz do poeta,
uma palavra: como no caso do poema Deformação
(p. 74), onde a "pomba suja", "urubuzinha da
metrópole" é esmagada diversas vezes, até
seu corpo deformar-se numa "chapa", numa "pasta";
liquidificador no submundo da cidade. Eis os sinais de um
simulacro. Se tomarmos o mote da filosofia, podemos dizer
que o simulacro é um sinal de antinomia ao ser e ao
mundo totalizado; o simulacro, sombra de Platão, está
sempre ligado a nós, e díspar de nós
mesmos. Vezes à frente, vezes atrás, as sombras
dependem da posição do sol. As sombras não
podem ser engolidas pelas luzes, nem mesmo de uma lâmpada;
as luzes da cidade, representadas na Lâmpada (p.48),
procuram ocultar as sombras, entanto são as luzes artificiais,
com seu poder artificial, que produzem as sombras e as concedem
autonomia.
Esses simulacros
guardam um "artefato de perfeição"
(p. 46); seja a lâmpada, que por ser produzida industrialmente,
já se trata de uma cópia ("De tanto ser
vista,/ gasta-se a beleza/ das coisas que em si/ guardam a
perfeição"), ou a berinjela re-descrita
por Donizete a partir do poema de Claudia Roquette-Pinto ("A
berinjela irradia / um sol às avessas / explosão
do roxo"). A berinjela é descrita por Donizete
como filha de Vishnu. Vishnu, segundo a mitologia hindu, está
diretamente ligado ao evento da morte e da destruição;
tudo está a um passo de ser destruído ou recriado,
de tornar-se simulacro de si, de encarar-se diante do ridículo,
do imprevisível e do nonsense ("E você vai
ficar / com o diploma de corno / na mão", Lapidário
órfico, p.47). Donizete opta pelos entes mundanos,
objetos e animais, do que aos homens; é a vingança
das coisas diante da instrumentalidade, tornando o próprio
homem mais um objeto, destituído de sua essência.
Mas essa reviravolta é a ponta de um iceberg de um
mundo humano mudo que já está aí: "Agora,
/ homens são coisas, / badulaques pendurados / como
galinhas na peia / pelas feiras, / de cabeça para baixo
/ à espera de compradores"; é uma mudez
que assumimos ao mundo. É um homem vestido de espantalho
assustando "os pássaros / da plantação
de arroz" (Arrozal, p. 18). Donizete Galvão, sem
desfazer da temática do imigrante, desdobra seu olhar
cindido para outras dualidades: a do corpo e da alma em Cisão
(p. 28), dos homens e dos objetos (vale à pena citar
os versos, "sem os objetos / o corpo não tem gravidade
/ diapasão / rumo // o corpo precisa de contrapesos:
/ a mesa / a porta / a cama" , p.37). O enredo da ruralidade
permanece, é um mineiro e sua Minas que se debate nas
grades, e uma cidade que agora parece vencer a resistência
do meio, projetando seus tentáculos para todos os cantos.
Um poeta,
dizem, pode tomar duas iniciativas após um caminho
percorrido: ou se aprofunda nas veredas que já trilhou,
ou se atira no abismo de uma nova verdade - estilo, tema e
preocupações novas. Uma leitura predisposta
a juízos que apreciações, pode reforçar
a idéia de que o recente livro de Donizete não
oferece expectativas que o destaquem em relação
aos livros anteriores; discordamos, e até entrevemos
nisso uma leitura limitada, a um livro que exigiu de seu autor
abdicação de algumas de suas conquistas mais
significativas. Mundo mudo reporta a uma radicalização
que eclode num território anterior à própria
escrita. Contradizendo Wittgenstein, é preciso ouvir
o que prefere calar. Estudos para Paulo Pasta (p. 50-53) reporta
à zona de risco da morte, porque "não há
remédio"; e para com a vida só nos resta
"os véus / do invisível / em seu vôo
breve". Mundo mudo é a fala em primeira pessoa
que se emudece para que o outro venha. A frase de Rimbaud,
je suis un autre, repercute nesse livro sob nova roupagem,
um desejo de comunicação que simula novas representações.
Tal como em Vishnu, Baco ou Jesus, o poeta se oferece em sacrifício;
pois só se sacrificando, "Virá/ virá
a aurora/ Não mais para mim" (Outra aurora, p.32).
Se o poeta não inova seu recorte léxico ou semântico,
reforça os motivos que o levaram a escrever, de que
o mundo não está para ser apreendido; que por
detrás da linguagem, não figura a lógica
da política e do interesse. É "a sua dor
/ e a dor alheia" que respondem por esse mundo, caminhar
autóctone do caramujo que rasteja suas vísceras
(Caracóis, p. 38).
Cada poema
desse livro parece ressoar o pedido drummondiano por "mãos
dadas". O escritor não evoca para si a fala do
mundo, entanto por ele fala o mundo, ao pôr o mundo
em destaque. Para que o mundo possa ser ouvido, é preciso
fazê-lo ouvir. O escritor põe em relevo uma tela
em que ele, e por que não dizer, nós pintamos.
A citação de Emílio Moura no poema Estudos
para Paulo Pasta, não nos parece arbitrária,
"É a tela a vida? / Nós a pintamos?";
é o jogo reflexivo de uma consciência que anuncia
o mundo, pois, sem este jogo, a consciência, e por que
não dizer, toda escritura, perder-se-ia "no limiar
da dissolução" (p.50). Uma descoberta que
não ocorreria por modismos ou por vanguarda. O cosmopolitismo
de São Paulo, Donizete já não consegue
resistir, avança por todos os lugares, os santos estão
sendo roubados, é preciso prendê-los (Santos
nas grades, p. 58-59). Borda da Mata já não
precisa ser dita, nem comentada; ela é a resistência
de cada homem em seu subúrbio. É o feitiço
contra o feiticeiro, porque ao instrumentalizarmos tudo, instrumentalizamos
a nós mesmos. Despimo-nos de tantas falácias,
que não nos tocamos que o rigor também é
uma falácia, e que a casa do ser não é
a linguagem, mas a vida.
O poeta
abdica de escrever sobre sua cidade natal, a prosódia
de sua terra, no intuito de apontar o fato de que nós
somos únicos e de que essa singularidade reporta a
uma solidão comum; como no poema Exílio (p.
73), onde a imigrante vê-se obrigada a declarar sua
morada: "Não sou daqui, não / Sou de Aracaju,
Sergipe". O lar não se trata de um instrumento,
mas um projeto, o coração de uma vida. Simplicidade
e consistência objetivam um anonimato, uma escritura
anônima; que aqui não é marcada por vocabulário
e arcaísmo regionais, mas pelo que há de universal,
sem ser impessoal, por uma objetidade, sem ser prosaica. Os
homens reclamam para si uma transcendência. "Não
sou daqui, não", dito pela sergipana, encontra
ressonância com a máxima cristã de 'meu
reino não é deste mundo'. Jesus reclama para
si um mundo onde reconheceriam sua realeza; Buda, sendo príncipe,
não reconhece o palacete como lar. Eis o terreno de
uma cisão, de uma falta que nos habita. Os títulos
das seções do livro apontam para isso: a noite
das palavras, os homens e as coisas, e por fim, os homens
sem moradas. As palavras não dão conta dos tropéis
da humanidade (vale à pena os versos de Os nomes, p.
15, "Quisera, agora / repartir com você / todos
os trabalhos / e os dias. / Sei - e como dói / só
o saber nesta hora - / os nomes que me confundiam / quando
a cabeça / estava mergulhada em livros."), elas
se perdem em sensações e sentimentos. As palavras,
neste livro, tomam o lugar da mera figuração.
O que importa aqui não é o jogo das metáforas,
mas enunciar, em meio à contradição que
isso representa, os fatos sem proposição, os
objetos sem nomes, como se o acontecimento pudesse ser apontado
(Diz o poeta em Lady Macbeth, "Que vê / quando
me vê? / Um cão, / um ladrão, / um osso,
/ um fosso, / um traste, / um rapaz / de olhos tristes?").
Mundo
mudo reduz seus recursos no intuito de afirmar o mundo, não
como ele é; mas o que, de fato, ele é. Diz o
poeta em Vôo cego, p. 67, "Somos susto, / fiasco,/
chiaspa, / fisgada de espinho. / À anos-luz / de distância,
/ nem nos pisca / o Infundado, / esse criador / distraído
/ e equivocado." É a ausência que reverbera
seu anonimato no palco da existência. Teogonia da orfandade
que não escuta a voz de Deus. "Quisera ser de
novo / o filho que engraxaria / os seus sapatos / e os deixaria
/ na escada do alpendre / sob o sol da manhã. / Escovados,
/ lustrosos / para a missa de domingo" afirma o poeta
em Os nomes, p. 16. Não há maior humildade que
um homem debruçado em seu trabalho. Ainda mais para
seu pai. É a humildade de um mundo que se cala para
ouvir. Não havendo como ouvir os mortos, ou os que
não podem nascer, resta prestar atenção
a outros órfãos no intuito de ouvir a si mesmo.
Toda uma sinceridade e despojamento que habitam o poeta. Revolução
silenciosa, na informalidade, despretenciosa da vanguarda.
É o anonimato de si, valor único e imponderável,
que reverbera naquele que parece o mais belo poema do livro,
Solitude, p. 23, "Juntos, em solitude. / Cada qual com
sua chaga. / Cada qual com sua cruz. / Dois corpos antes tão
próximos, / separados pela geografia / que a mágoa
desenha". O poeta ainda pergunta, "O amor morreu?
/ Não. Condensou-se"; pois o amor não se
conserva, preserva-se, "nessas mãos tão
íntimas, / que, mesmo durante o sono, / permanecem
bem fechadas". Os poemas desse mundo mudo não
devem ser ignorados e despercebidos; ao contrário,
eles nos pedem releituras sobre um mundo que, no fundo, é
nosso convívio constante.
Rio de Janeiro, outubro de 2003
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André
Luiz Pinto é poeta, autor dos livros Flor à
margem (1999) e Primeiro de abril (2004).
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