TORQUATO
ENTRE NÓS
André Monteiro
A imagem viva de um escritor não vive da posse de seu
rosto. Torna-se música: imagem que nos faz dançar.
Enunciação vivida como vozes que permanecem
gritando entre nós. Não são fantasmas
de uma imaginação saudosa (clichê romântico
de uma infância perdida ou de uma morte anunciada em
compaixão prévia). São brinquedos cheios
de eletricidade zombando de nosso tempo previsto, nossa cronologia
de figurinhas emboloradas, idolatradas no álbum de
retratos familiares da história literária. Um
fragmento de nota pessoal (a suposta intimidade) saltando
para fora do poder de sua moldura. Será isso o invisível
da imagem? Torquato Neto por Torquato Neto: você
olha nos meus olhos e não vê nada: pois é
assim mesmo que eu quero ser olhado. É assim mesmo
que eu quero que você não entenda... (1)
Quem é esse você
enunciado no texto? Seguindo a trilha verossímil (o
eixo sintagmático lógico-discursivo) do desfecho,
seria Ana Duarte, a então mulher de Torquato: ...e
eu me viro ao teu lado, te acordo, te amo, ana (2). Seguindo
uma outra trilha, a de um ato de leitura idealizado e não
menos verossímil, o você poderia vir a
ser uma integridade nossa. Mas você, nesse caso, já
não possui, entre nós, lugar seguro. Sua verossimilhança
(os olhos nos olhos) é fugidia, não se pode
alcançá-la com um mero mergulho narcisista.
Não se trata de desafeto: nosso rosto se descontinua
diante de uma enunciação desviante, tal como
na proposição de Godard ao se recusar, em 1995,
a comemorar o automatismo cronológico dos cem anos
de cinema: O espelho deveria refletir a imagem antes de
reenviá-la (3). Um desencontro reflexivo diante
do espelho "eu" nos multiplica (trata-se de um movimento)
e nos convida a criar vidas entre vidas.
Mas não nos enganemos.
Certamente existe em nós a tentação da
transparência biográfica. Automatismo de nossa
civilização. Queremos contar tudo: um rosto
outro agarrado em um rosto mesmo. Um rosto sempre nosso a
nos esperar lá trás. Um rosto de propriedade
privada: efeito e causa. Não será toda verossimilhança
uma poderosa moldura? A imagem de um escritor, quando nos
interroga, produz buracos e nós imediatamente passamos
a preenchê-los com estratégias confortáveis
de uma boa novela, passível de uma comunhão
didática e varrida de estranhezas. Em nosso tempo,
como nos ensina Jim Morison na série de The Lords,
deu-se uma metamorfose: do corpo, enlouquecido pela dança,
passamos à masturbação do voyeur
cujo emblema é o espelho e cuja prece é
a janela. Eis a nossa impotência: Não atravessas
nunca o espelho/nem mergulhas pela janela(4) . A
impotência é a força dominante de nossas
instituições sociais/individuais. Ela constitui,
nos dizeres de Deleuze/Parnet, nossos afetos tristes: ...Vivemos
em um mundo desagradável, onde não apenas as
pessoas, mas os poderes estabelecidos têm interesses
em nos comunicar afetos tristes. Afetos tristes são
todos aqueles que diminuem nossa potência de agir...(5)
Propomos aqui um prazer:
o de encontrar as vozes de Torquato Neto em sua potência
e na alegria (composição de ações)
de seus cantos entre nós. Mas é possível
o prazer de atravessarmos um corpo - e não querermos
prendê-lo - sem ao mesmo tempo cuidarmos de nossas dores?
Nietzsche já nos ensinou que a dor pergunta sempre
pela causa enquanto o prazer tende a ficar consigo mesmo e
não olhar para trás (6). Se a nossa vontade
aqui é a de seguir em frente (dar vida à vida)
- ação de saltarmos para além das garras
do espelho re-acionário -, essa vontade também
já aprendeu com Nietzsche que, por vezes, é
necessário recuar para se dar um grande salto
(7).
Recuo histórico
(leia-se verossimilhança) para tomar impulso:
Ao ingressarmos no mestrado
em Literatura Brasileira da PUC-Rio, em 1997, trazíamos
em nosso corpo o peso de uma paixão antiga e enorme
pelo rosto de Torquato Neto. O livro Os últimos
dias de paupéria era nossa bíblia sagrada,
a representação mais radical de um espelho contra-cultural.
Olhávamos para Torquato de um modo fixo e obsessivo:
paradoxalmente, nós o queríamos em um centro
puro que, inversamente, poderia configurar um ideal de
margem: o poeta desafinado da Geléia Geral brasileira,
o anjo torto suicida do tropicalismo. Líamos
Torquato pelo seu suposto fim e não pelos seus meios
possíveis. Não procurávamos, evidentemente,
um autógrafo, mas uma autópsia.
O anjo torto era
nossa loucura chorosa e impotente. Diante das espinhas e dos
espinhos de uma profunda sensação de desajuste
escolar, familiar e institucional, esse Anjo se tornava
nosso herói: aquele que teve a coragem de voar para
onde nossa recusa supostamente ainda não podia pagar
pra ver: o abandono da própria vida. Uma identidade
contempladora com seu adeus, vou pra não voltar
justificava o nosso ressentimento social diante dos fantasmas
tidos como os inimigos opressores: os cultos infernais da
maioria. Para nós, Torquato não era outra coisa
senão, como declarou certa vez Décio Pignatari,
o representante de ... de tudo aquilo que, de uma forma
ou de outra, era marginal a partir dos anos 60.(8)
Durante o período
em que elaboramos nossa dissertação de mestrado,
defendida no início de 1999, congelávamos mais
uma vez a imagem de Torquato Neto. Mas dessa vez, éramos
movidos por uma força oposta: um desejo de realizar
uma espécie de revisão autocrítica de
nossa paixão adolescente pela mitologia marginal.
Analisamos a trajetória
estético-existencial de Torquato em busca de uma reflexão
capaz de compreender de que modo tal trajetória foi
legitimada e se legitimou enquanto um mito de marginalidade.
A marginalidade era agora encarada como uma política
e não como uma crença. Desse modo, o suicídio
precoce de Torquato - precedido por sua suposta e bem contada
biografia, marcada pela loucura e pelo desvio estético-existencial
- passou a ser encarado como o motor de sua visibilidade,
de sua canonização em determinada tradição.
Sua autofagia, que em uma visão estática e absoluta
do mito de marginalidade seria exclusivamente o seu silêncio
de morte (seu dar as costas ao sol, como escreveu Augusto
de Campos), tornou-se, ao mesmo tempo, sua fala de
integração à própria vida ordinária
do sistema de compra e venda da cultura dominante.
Realizamos um exercício
reflexivo necessário, mas niilista, em torno de uma
mera constatação relativista. A margem já
não podia ocupar um centro mágico, mas uma legitimidade
política, uma negociação. Se em nossa
paixão adolescente pelo mito do marginal assassinávamos
Torquato para morrer com ele de paixão, agora o que
fazíamos era um assassinato frio de nossa paixão
assassina. Sufocávamos o prazer mítico de ler
Torquato em nome de um trabalho adulto com a cultura e com
a literatura. A obsessão pela virtude acadêmica
era então o nosso medo viciado e, também, nosso
vício respeitado.
Hoje, percebemos que Torquato
ainda nos toca o corpo. Um outro Torquato. Um outro que sempre
esteve vivo entre nós, apesar de nossas encenações
de assassinato. Assumimos uma dívida com a nossa vida
e nos indagamos: como será possível, agora,
manifestar um afeto com Torquato para além de uma dicotomia
entre a paixão mítico-idólatra do adolescente
e a frieza adulta meramente relativizadora e desconstrutora
dessa paixão? Como trazer, com a linguagem que aqui
se produz, um escritor de volta a uma vida? Com uma expressão
clássica de Nietzsche, podemos nos indagar: de que
modo podemos encarar uma escritura com vontade de potência?
Bem entendido, vontade de potência não
é vontade de poder nem é vontade de dominar.
Potência não é cobiça, mas criação
e doação (9)- diz Deleuze. A criação
é um gesto de violência: traço rasgando
uma página em branco. A doação é
aquilo que nos libera de nossos vícios, aquilo que
se cria quando nos perdemos deles. Os vícios deixam
de ser o que são justamente quando a suposta pureza
das virtudes (a tristeza de nosso porto seguro, como
na letra da canção tropicalista Geléia
Geral) já não dá conta de abraçar
a si mesma. A cria da mãe virtude (o vício)
não é capaz de suportar uma pretensão
genética totalitária:
Torquato escreve:
a) A virtude é
o próprio vício
conforme se sabe;
acabe logo comigo
ou se acabe.
b) A virtude é o próprio vício
- conforme se sabe -
estão no fim, no início/da escada. Chave.
(...)
e) A virtude, a mãe do vício
como eu tenho vinte dedos,
ainda,
e ainda é cedo:
você olha nos meus olhos
mas não vê nada, se lembra?
f) A virtude
mais o vício: início da
MINHA
transa. Início fácil, termino:
Deus é precipício,
durma,
e nem com Deus no hospício
(durma), o hospício é refúgio.
Fuja.(10)
Inaugura-se um movimento
(uma criação) em que uma força inominável
de vida vence o limite máximo (a onisciência)
da abstração: deus como precipício.
Mas não se trata de uma simples inversão dos
dois lados da escada moral: o vício no lugar da virtude
e vice-versa. Tampouco se quer o louco no lugar do louco,
o refúgio. Trata-se de um modo de fuga através
do qual as possibilidades se somam e se traçam e se
sujam e se transam e, em fim, que é também em
início, a criatura e a criação se namoram
e se fundem (a virtude é o próprio vício),
mas elas ainda se distinguem (a virtude mais o vício).
E se tudo é tão claro como a soma dos vinte
dedos passamos a ler então o que não está
escrito, a imagem que dança: você olha nos
meus olhos/mas não vê nada, se lembra? Para
onde nos leva o afeto dessa pergunta? Para recordar o futuro,
como quer Daniel Lins lendo o projeto do bom esquecimento
de Nietzsche?: O esquecimento é uma rebelião,
uma desorganização, uma dissidência ancorada
na meditação ativa, na comtemplação
que é o oposto do mutismo ou do quietismo dos homens
triturados pelas máquinas da memória .(11)
Há algo n'Os
últimos dias de paupéria que - agora sabemos
explicitar - já vinha marcando nosso corpo desde nossas
primeiras leituras. Estava lá e vive aqui, na periferia
do corpo estilhaçado, dando pulso à nossa embriaguez
para além da natureza do mito e do contra-mito já
aqui cronologizados. Em diálogo com Suely Rolnik poderíamos
pensar que esse algo talvez já não constitua
uma imagem, mas uma marca invisível, humana
e desumana, que não cessa de encontrar, em nós,
ambientes de ressonância. São como composições
que atualizam uma nova diferença, um
desassossego desestabilizador. Não somos nós
quem conduzimos essas marcas. Ao contrário: O que
o sujeito pode, é deixar-se estranhar pelas marcas
que se fazem em seu corpo, é tentar criar sentido que
permita sua existencialização - e quanto mais
consegue fazê-lo, provavelmente maior é o grau
de potência com que a vida se afirma em sua existência.
(12)
Torquato sempre será
bem vindo - será potente - enquanto com ele pudermos
nos estranhar. Enquanto com ele não pudermos ter a
certeza do caminho. Perdição, força,
encontro. Só assim é possível uma experiência.
Experimentar é uma palavra perigosa. Vista na estreiteza
de seu estereótipo, tem um cheiro estrito de cronologia
crônica, mofo dos anos 70. Paralisia. Há muitos
conhecidos nossos que em nome de uma imagem experimental conservam
verdadeiros suicídios culturais. Experimentar, aqui,
não significa propriamente sair do limite, mas sair
com o limite, criar e ampliar com ele possibilidades de alterações:
ações outras entre nós outros. O que
não se altera não pode viver, afirma o filósofo
espanhol Ortega y Gasset gritando para nosotros: salgamos
fuera! Para Ortega, a vida está sempre fora do
Eu. E sendo mais ampla do que o Eu, ela conta, sempre, com
o que ele não é, suas circunstâncias.
Quando o Eu fecha os olhos e procura por si mesmo, supostamente
dentro de um puro si mesmo, ele não se encontra como
coisa, mas como um programa, pois sua própria
paisagem psíquica será sempre um dentro que
se faz um fora. É em conflito com o lá
fora que se pode perceber a diferença, a distinção
de um EU que se move e se altera no mundo: fuera es el
mundo (13).
Como se daria esse fora
- que é vida - no processo do escrever? O descontrole
de um estalo marcando um estilo programado nos libera
de nossas egocêntricas e neuróticas boas ou más
intenções todo-poderosas. É esse descontrole
que pode nos afastar dos domínios estritos da literatura
e nos aproximar de um saudável delírio. Delirar
é trair as potências fixas que querem nos
reter (14). Assumir o escrever como um processo de devir,
propor um escritor que não deseje mais ser conhecido
ou reconhecido, tal como na frase de Deleuze: escrever
é tornar-se outra coisa que não escritor
(15). Ler também não seria tornar-se outra coisa
que não leitor?
O que nos interessa não
é mais Torquato representando Torquato. Mas encontrar
o lugar onde Torquato com Torquato se torna imperceptível
(16): percepção inenarrável que não
podemos afirmar através de um tratado lógico.
O que se quer é um deslizar por entre uma escritura
alegre. Aquela que firma conosco sua perdição,
não sendo digna de ser explicada, mas convivida, em
um Cogito sempre outro:
COGITO
eu sou como eu sou
pronome
pessoal intransferível
da pessoa que iniciei
na medida do impossível
eu sou como eu sou
agora
sem grandes segredos dantes
sem novos secretos dentes
nesta hora
eu sou como eu sou
presente
desferrolhado indecente
feito um pedaço de mim
eu sou como eu sou
vidente
e vivo tranqüilamente
todas as horas do fim. (17)
Aceita-se o mundo como
um devir e o fim é vivido sob o signo do imediato:
a linguagem não representa algo, mas apresenta o intransferível.
Intransferível não é a pessoa do homem,
iniciada na medida do impossível, mas o seu lugar de
encontro com a linguagem (pronome) que não cessa de
se derivar: encontro singular que se estilhaça feito
um pedaço desse mim. Um humanismo em crise que vive
tranqüilamente todas as horas do seu fim. Um fim que
não cessa porque é presente, é passagem.
Uma vidência do presente sem segredos dantes, nem secretos
dentes. Vidência distinta do estereótipo de grandiloqüência
humanista do bardo romântico: legislador do futuro.
O homem inscrito nos textos
de Torquato não se faz por sua suposta essência,
mas por seu lugar de perigo. O homem é um estado inacabado.
É no seu limite, no seu risco de humana desumanização,
que o homem berra o homem que ele pode vir a ser, nem que
seja um boi:
Escute, meu chapa:
um poeta não se faz com versos. É o risco, é
estar sempre a perigo sem medo, é inventar o perigo
e estar sempre recriando dificuldades pelo menos maiores,
é destruir a linguagem e explodir com ela...
E fique sabendo: quem não se arrisca não pode
berrar. Citação: leve um homem e um boi ao matadouro.
O que berrar mais na hora do perigo é o homem, nem
que seja o boi. Adeusão. (18)
O matadouro trágico
não é um lugar de tristeza, mas um modo de arrancar
alegria (ação) lá da ponta do abismo
da vida. Se é verdade, como já afirmou Waly
Salomão, que ...é impossível ler uma
linha de Torquato sem pensar que ele se matou... (19),
esse suicídio pode não ser a memória
de um ponto final pronto para nossa identificação
fatal, mas uma linha de fuga (uma melodia a mais) conectada
no amplo espaço do ambiente Torquato.
Falar de Torquato agora
é como ouvir música. Mas não a música
da Música: o protocolo especializado das classificações.
Trata-se de um tirar leite de pedra. Ler com as pés,
podemos afirmar parafraseando Nietzsche em seu júbilo
de escrita dançante-musical. Escrever Torquato agora
é então escrever com as marcas que escrevem:
...escrever é fazer letra para a música do tempo;
e é esta música sempre singular (20).
A música em Torquato
não nos parece ter propriamente a ver com o sentido
estrito da verbivocovisualidade do formalismo concretista,
ou da estrita melopéia de Ezra Pound que era capaz
de perceber o canto dos pássaros nas palavras de Arnaut
Daniel. Se Torquato se afetou por uma educação
concretista dos sentidos, tal afeto se conectou, de modo simultâneo,
a audições e visões de
uma desarticulação relacional da palavra que
não estão fora da linguagem, elas são
o seu fora (21). Ciladas guardadas nas palavras, poluição
de imprevisíveis significados:
Quando eu a recito
ou quando eu a escrevo, uma palavra - um mundo poluído
- explode comigo e logo os estilhaços desse corpo arrebentado,
retalhado em lascas de corte (como napalm) espalham imprevisíveis
significados ao redor de mim: informação. Informação:
há palavras que estão nos dicionários
e outras que não estão e outras que eu posso
inventar, inverter. Todas juntas e à minha disposição,
aparentemente limpas, estão imundas e transformaram-se,
tanto tempo, num amontoado de ciladas.
Uma palavra é
mais do que uma palavra, além de uma cilada. Elas estão
no mundo e explodem, bombardeadas. Agora não se fala
nada e tudo é transparente em cada forma: qualquer
palavra é um gesto e em sua orla os pássaros
sempre cantam nos hospícios. No princípio era
o Verbo e o apocalipse, aqui, será apenas uma espécie
de caos no interior tenebroso da semântica. Salve-se
quem puder.(22)
Entre nós, a grande
arte de Torquato consiste na sua desterritorialização:
a vida em movimento. Uma espécie de não-obra
que pode ser sentida de forma incisiva justamente no livro
que ficou conhecido como sua obra póstuma: Os
últimos dias de paupéria, lançado
inicialmente em 1973 pela editora Eldorado Tijuca e, posteriormente,
relançado e ampliado pela Max Limonad em 1982. Waly
Salomão, organizador do livro afirmou certa vez:
Foi um trabalho de
resgate que recusava a linearidade, pois se desdobrava em
ziguezagues. Os critérios de seleção
tinham que respeitar as variantes de um mesmo poema, por exemplo.
Não tinha cabimento um corte severo de eleição
da "melhor" variante. Somente o autor (...) poderia
ter escolhido tal vertente ou tal outra. Daí optei
por uma amostragem perspectiva, ou seja, a revelação
dos diferentes vértices encontrados. Há quem
não suporte o rugir das crateras, dos abismos, dos
buracos da liberdade, ou seja, encontrar-se em alto mar quando
supunha-se atracado em porto seguro... (23)
Através então
de uma leitura em ziguezagues, capaz de surpreender a expectativa
de uma recepção ancorada em uma lógica
linear e à espera de um produto estético bem
acabado e coerente, viajamos por traços e contrastes
de um poeta inacabado cuja multiplicidade vai do empolgado
tropicalista, autor de manifestos e engajado em um projeto
coletivo de intervenção neo-antropofágica
na cultura brasileira, ao pós-tropicalista gauche,
do jornalista de amenidades ao cronista da guerrilha cultural,
apologista do cinema marginal e da cultura subterrânea
(24); da visibilidade, conquistada principalmente através
das letras de música (parcerias com Edu Lobo, Gil,
Caetano, Macalé e outros), aos diários de hospício;
da oswaldiana alegria como a prova dos nove à tristeza
como porto seguro.
Mas não é
apenas pela multiplicidade que essas máscaras nos des-territorializam.
É muito mais do que isso. É que Torquato é
mesmo um pensador des-territorializante. Uma música
que não cessa de nos surpreender. Em uma crônica
de amenidades, pelos cantos do jornalista (jornalista?),
não raro ouvimos uma voz que nos atualiza: notas de
perplexidade (dissonâncias) atuais (em ato) para os
dias de sempre: vida para os amortecedores de notícias:
Hoje tem espetáculo
Vá ao cinema,
presta?
Vá ao teatro, presta?
Esses filmes servem a quem?
Essas peças: servem? Para que? (25)
Torquato não pára
de nos sugerir uma ocupação de espaço.
Manter a vida acesa pelos lugares por onde andamos. Uma política
de luta para tomar o lugar. Ouçamos: ocupar espaço,
num limite de tradução, quer dizer tomar o lugar.
(...) Com sol e com chuva. Dentro de casa,na rua. (...) espantar
a caretice: tomar o lugar: manter o arco: os pés no
chão: um dia depois do outro. (26)
Agora - aqui dentro, lá
fora - e a partir dessa sugestão de ocupação
- podemos nos indagar: que tipo de espaço estamos ocupando
agora? Estamos ocupando algum espaço?
Sabemos: Os livros só valem à pena quando nos
mexem com a vida, quando com eles a alma da vida não
é pequena. O resto é burocracia acadêmica,
troca simbólica de moedas assassinas, prontas a nos
sugar a vida e nos tornar preparados para o comércio
da morte. E não basta Ler Torquato, Deleuze ou Nietzsche
ou etc. para que nos salvemos. Os livros não podem
nos salvar sozinhos. É necessário que nós
o necessitemos com a vida e em vivo.
Muitos intelectuais e
professores defendem a leitura como salvação
da cultura. Mas não é difícil encontrarmos
mais idiotas no mundo das letras do que fora dele. Idiota,
em seu sentido etmológico, e também em seu sentido
vital, ensina-nos Donaldo Schüler lendo Heráclito,
é aquele que não sai de si, é aquele
que não se des-territorializa. Para que ler um livro?
Para não sair do livro? Para nos tornarmos escravos
do livro? De que modo temos lido nossos livros? Como livros
nossos? Ou como o livro do professor? (um professor que não
está em nós).
Do lado de dentro, do
lado de fora, a pergunta, aqui, ainda deve ser: O que estamos
dizendo aqui encontra ressonância aí? Ou estamos
sendo idiotas? O que vocês acham?
*
Notas:
___ (1) NETO, Torquato.
Os últimos dias de paupéria. São Paulo:
Max Limonad, 1982, p.325.
___ (2) Idem, p.325.
___ (3) Apud SALOMÃO, Waly. Hélio Oiticica:
Qual é o parangolé? Rio de Janeiro: Relume Dumará,
1996.
___ (4) MORISON, James Douglas. Os Mestres e as Criaturas
Novas. Lisboa: Assírio & Alvim, 1994, p.36.
___ (5) DELEUZE, Gilles, PARNET, Claire. Diálogos.
São Paulo: Editora Escuto, 1998, p.75.
___ (6) NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. São
Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 64.
___ (7) NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal:
prelúdio a uma filosofia do futuro. São Paulo:
Companhia das Letras, 1992, p. 189.
___ (8) Declaração extraída de uma entrevista
videografada concedida a Ivan Cardoso sobre Torquato Neto.
A entrevista foi exibida pela Rede Manchete no programa Documento
Especial em janeiro de 1992.
___ (9) Cf DELEUZE, Gilles. Nietzsche. Lisboa: Edições
70, 1994, p. 24.
___ (10) NETO, Torquato. Os últimos dias de paupéria.
São Paulo: Max Limonad, 1982, p.86.
___ (11) LINS, Daniel. "Esquecer não é
crime". In : Nietzsche e Deleuze: Intensidade e Paixão.
Rio de Janeiro: Relume Dumará; Fortaleza, CE: Secretaria
de Cultura e Desporto do Estado, 2000, p. 49.
___ (12) ROLNIK, Suely. "Pensamento, corpo e devir -
uma perspectiva ético/estético/política
no trabalho acadêmico". In : Cadernos de Subjetividade.
São Paulo: PUC, 1993, no 2, p. 242.
___ (13) Ver ORTEGA Y GASSET, José. Unas Lecciones
de Metafísica. Madrid: Alianza Editorial, 1999, p.
159-170.
___ (14) DELEUZE, Gilles, PARNET, Claire. Diálogos.
São Paulo: Editora Escuto, 1998, p.53.
___ (15) DELEUZE, Gilles. "Literatura e vida". In
: Crítica e clínica. São Paulo: Ed. 34,
p, 1997, p.11.
___ (16) Cf: DELEUZE, Gilles, PARNET, Claire. Diálogos.
São Paulo: Editora Escuto, 1998, p.58.
___ (17) NETO, Torquato. Os últimos dias de paupéria.
São Paulo: Max Limonad, 1982, p. 98.
___ (18) Idem, p. 63.
___ (19) "Cave, canem, cuidado com o cão".
In : Folha de São Paulo. São Paulo, 5 de novembro
de 1995, p.5.
___ (20) ROLNIK, Suely. "Pensamento, corpo e devir -
uma perspectiva ético/estético/política
no trabalho acadêmico". In : Cadernos de Subjetividade.
São Paulo: PUC, 1993, no 2, p. 242.
___ (21) Cf: DELEUZE, Gilles. "Literatura e vida".
In : Crítica e clínica. São Paulo: Ed.
34, p, 1997, p.16.
___ (22) NETO, Torquato. Os últimos dias de paupéria.
São Paulo: Max Limonad, 1982, p. 98.
___ (23) "Cave, canem, cuidado com o cão".
In : Folha de São Paulo. São Paulo, 05/09/1995.
___ (24) Palavra
cunhada por Hélio Oiticica pra designar o que seria
o underground brasileiro, ou, como afirmou o próprio
Torquato, "...subterrânea deve significar underground,
só que traduzido para o brasileiro curtido de nossos
dias..." (NETO: 1982, p.70).
___ (25)NETO, Torquato. Os últimos dias de paupéria.
São Paulo: Max Limonad, 1982, p. 110.
___ (26)Idem, 180.
*
André Monteiro
nasceu em São João del-Rei, MG, em 1973. Licenciou-se
em Letras pela Universidade Federal de Juiz de Fora. É
mestre e doutor em Literatura Brasileira pela PUC-RIO. Publicou,
entre outros, o ensaio A ruptura do escorpião ?
ensaio sobre Torquato neto e o mito de marginalidade (2000)
e Ossos do Ócio (poesias reunidas, 2001), ambos
pela Cone Sul (SP).
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