A
POESIA EM TORNO DO UT PICTURA
Antônio
Andrade (UFF - CNPQ)
No
livro Crisantempo:
no espaço curvo nasce um,
de Haroldo de Campos, a relação entre diferentes linguagens
se faz marcante mais pela intertextualidade de muitos de seus
textos com a música (ex. "this
planetary music for mortal ears" e "frozen music"), a xilografia
(ex. "o elogio
da xilo"), a fotografia (ex. "nékuia: fogo azul em Cubatão"),
o cinema (ex. "um lance de godardos"), a instalação (ex. "sétima
instalação (bwg)"), etc., do que pela exploração dos recursos
gráficos ou pela presença de suportes distintos, tais como
as ilustrações e o CD que acompanham a edição. Sinal de que,
embora o caráter sincrético da linguagem "verbivocovisual"
concretista tenha deixado marcas indeléveis na poesia atual,
a produção haroldiana procura flexibilizar os paradigmas que
nortearam a vanguarda concreta.
E
se o que unifica as diferentes vertentes da produção poética
contemporânea é a reflexão crítica sobre o esvaziamento gerado
pela proliferação do visível, em Haroldo, o que passa a interessar
não é mais a composição gráfica como forma de comunicação
visual, fazendo do poema um objeto, mas, sobretudo, a relação
entre poesia e pintura, linguagens que refletem sobre a visualidade.
Desse modo, muitos de seus textos, além de incorporarem como
mote de construção poética categorias pertencentes ao universo
plástico, constituem um esforço de análise dos textos pictóricos.
Ou seja, ao contrário de seu irmão Augusto de Campos, que
vem dando continuidade de maneira cada vez mais radical ao
sincretismo da estética concreta, Haroldo prefere, muitas
vezes, trabalhar sob a clave do ut pictura poesis. Assim interioriza determinados procedimentos da
linguagem pictórica sem implodir o verso, como o faz Augusto,
e sem se afastar da reflexão sob a especificidade da lírica.
Aliás,
essa questão da revalorização do verso é ponto fundamental
para se compreender a divergência entre a poética haroldiana
pós-80 e os pressupostos do concretismo. Veja-se um fragmento
do "Plano-Piloto da Poesia Concreta" (1958): "poesia concreta:
produto de uma evolução crítica de formas. dado por encerrado
o ciclo histórico do verso (unidade rítmico-formal)".
Isso confirma a postura crítica renovadora que marca a produção
haroldiana. Lembre-se ainda que, anteriormente a essa revalorização
do verso, ele havia explorado, em Galáxias,
o diálogo entre poesia e prosa como uma forma até mais radical
de evitar a transformação do espaço gráfico em agente estrutural
do texto, a exemplo do ideograma. Para entendermos então como
essa modalização do ideograma representa uma nova forma de
se refletir sobre a visualidade contemporânea, procederemos
à análise do poema de abertura da série ut
pictura, incluída em Crisantempo,
em homenagem à pintora nipo-brasileira Tomie Ohtake.
Vale
ressaltar que não só ela como também outros pintores homenageados
por Haroldo nessa séria fizeram parte, pelo menos em determinada
época, da vanguarda da pintura concreta e do Grupo Ruptura
em São Paulo, ambos movimentos que possuíam laços estreitos
com as idéias com as idéias do grupo que publicava na revista
Noigrandes. Contudo
eles, assim como Haroldo, também buscavam novas formas de
expressão, traçando caminhos individuais com o decorrer do
tempo. Apesar de todos os nove poemas dessa série remeterem
de imediato ao método ecfrástico - que grosso modo é a transposição
do texto plástico para o verbal -, apenas o primeiro traz
uma reprodução: a ilustração lunar de Tomie para Hagoromo
de Zeami, peça do teatro clássico nô, traduzida por Haroldo
em 1993, colocada na primeira página, ao lado do poema em
homenagem a ela. No
entanto essa reprodução é apresentada num tom de sépia equivalente
ao de todas as demais ilustrações e fotografias do livro,
o que nos leva a crer num apagamento proposital das distinções
cromáticas na figura torna ainda mais instigante o movimento
de metamorfose das cores no poema:
tsuki
o
violeta invade
o
brancocinza da lua
semiluna
o azul
no
amarelo da lua negra
branquiluna
barcalua
vermelha
tomie
ohtake
enluara
o papel :
na
noite nanquim
a
tennin
vórtice de plumas sereníssimas
d a n ç a
(p.
123)
Ou
seja, é como se poema e imagem não tivessem uma relação meramente
reiterativa. Pelo contrário, a ausência da cor na imagem faz
com que essa categoria se enriqueça na construção do discurso
poético, e que ainda crie novas possibilidades de visualização
da imagem criada pela pintora. Nesse caso, a presença da reprodução
significa mais pelo que nela se configura como ausência do
que como presença. Esse pensamento pode talvez ser associado
à compreensão merleau-pontyana da visibilidade como um enigma
- algo que não está dado - por ser ela formada por inúmeros
fantasmas, tais como luz, sombra, reflexo, cor. Para Merleau-Ponty,
o grande lance da pintura é trazer para o externo uma visibilidade
que só se cria através do interno.
E, desse modo, o cotejo da ilustração de Tomie com o poema
de Haroldo encena o entrelaçamento dos discursos poético e
pictórico na construção da imagem intersemiótica, na medida
em que no poema se atribui ao objeto plástico um cromatismo
imaginário.
Tomando
de empréstimo nessa leitura algumas noções da semiótica plástica,
tentaremos identificar tanto no plano de expressão do texto
quanto no da imagem como se constrói essa relação. Nesse sentido,
destacamos no poema três procedimentos discursivos pela personificação
das cores como actantes, evidenciada, na sintaxe, na relação
sujeito-predicado; no cavalgamento do ritmo através da quebra
sintática do verso e na criação dos neologismos - "brancocinza",
"branquiluna" e "barcalua" - que indicam, numa justaposição
de cores e de formas, a passagem metonímica de um estágio
a outro de visibilidade. Esses procedimentos do texto verbal
correspondem a três outros procedimentos do plano da expressão
do texto pictórico, e isso não apenas da figura em questão,
mas de toda a série pictórica de Tomie. Isto é, o poema consegue
empreender uma econômica captação de suas principais isotopias,
assim como a intertextualidade com as semioses ohtakianas
também indicia uma série de isotopias do discurso poético
haroldiano.
Em
primeiro lugar, a antropomorfização das cores assinala a importância
do cromatismo como um dos principais formantes da obra de
Tomie Ohtake. Conhecida pela sua bela exploração das possibilidades
da cor - principalmente dos azuis, brancos e vermelhos que
ganham inúmeros matizes em sua pintura -, Tomie realiza, na
linha de Rohtko, um sistema semi-simbólico
sobre a categoria cromática, em que sobram apenas vestígios
de figuração, já que, parafraseando Argan, o signo aí é reabsorvido
"na calma tranqüila da cor (...) levemente movida por passagens
de tom".
Mas em Tomie, diferentemente de Rothko, não há uma identidade
total entre cor e espaço, pois nela não se apagam totalmente
os contrastes entre formas, construídas ora por trações retilíneos,
que empreendem uma divisão do espaço da tela, ora por traços
curvilíneos, que constroem uma espécie de figuração lunar,
centralizada na tela em contraste com o fundo.
Já
com relação ao enjambement,
que constrói, através do mecanismo de interrupção e retomada,
um movimento ondular no plano da expressão da poesia, podemos
relacioná-la também às ondulações e circunvoluções fortemente
presentes na pintura de Tomie. E o interessante é que nela
esse movimento inter-relaciona todos os formantes plásticos:
eidéticos, cromáticos, topológicos e matéricos. Note-se a
esse respeito uma paradigmática tela em que se pinta sem contornos
uma linha ondulada ascendente vermelha, em contraste com o
fundo branco, indiciando assim as idéias de passagem e elevação,
que, segundo o modelo da semiótica tensiva, representariam
a própria noção de produção dos sentidos como intensificação.
Ou ainda as várias telas em que, ora através dos brancos que
provocam o jogo da luz, ora através do próprio empastamento
da pincelada, faz emergir formas da superfície da cor, as
quais, além de atentar para a própria materialidade da pintura,
representam um movimento, quer circular quer ondulado, que
por vezes remete à elipse. A nota sobre esse tipo de movimento
sinuoso, construído pelo próprio ritmo interno da pintura,
pode inclusive ser relacionada à reflexão sobre o tempo histórico,
que tem muito mais a ver com as formas elípticas e arabescas
do que lineares, de maneira que, conforme verificou Benjamim,
o presente é sempre constituído pelas tensões entre ruínas
do passado e a expectativa do futuro, afastando-se assim da
idéia de progressão.
E
finalmente com relação ao procedimento metonímico, podemos
também associá-lo ao próprio método da composição cromático-eidético
de Tomie, na medida em que nela a sutil mutação de cores e
formas por contigüidade dentro de planos aparentemente inívocos
faz refletir, como no poema, sobre a idéia de indecidibilidade
do figurativo - ou, de outro modo, sobre a multiplicidade
imagética que pode advir da exploração do figural.
Por isso também, a referência pictórica da figura lunar se
transmuta em "barcalua" no poema de Haroldo, além de nele
passar de um estado cromático a outro, como se o texto recriasse
o colorido de maneira análoga ao nascimento da cor na paleta.
Lembre-se ainda que essa automatização do signo "lua" é empreendida
também pela pintura de Tomie através de sua duplicação e/ou
redimensionamento topológico no espaço da tela. Esse paralelo
entre procedimentos textuais e entre atividades relativas
a distintas semioses artísticas recorda-nos o conceito de
"contágio" intersemiótico, utilizado por Ana Claudia de Oliveira
num ensaio em que analisa o quadro La joie de vivre, de Henri Matisse, demonstrando como que nele a configuração
de um olhar dançarino conviva a participação de diferentes
ordens sensoriais na construção da pintura.
Em "tsuki", Haroldo solicita argutamente as idéias de dança,
movimento e leveza para demonstrar, ao mesmo tempo, a volatilidade
do significante verbal e o caráter cambiante das imagens pictóricas.
Vale
ressaltar ainda, nesse poema, a reversibilidade dos papéis
de enunciador e enunciatário, pois o sujeito aí é ao mesmo
tempo receptor e produtor da mensagem poético-pictórica. Esse
caráter indecidível dos papéis, das formas e das cores, em
ambos os discursos, demonstra que o tema do ut pictura poesis representa um modo de leitura em aberto, permitindo,
como já apontamos, através da metonímia, inúmeras analogias
imaginativas. Fazendo inclusive uma leitura intertextual da
obra de Haroldo, vamos perceber que a metonímia configura
a partir da revolução de Galáxias
um procedimento fundamental em sua obra, contrapondo a tendência
concretista à concentração formal a uma proliferação significante
que enceta aquele mesmo tipo de movimento ondular da pintura
de Tomie, figurativizado em Haroldo pela imagem do "torvelinho".
Mas o interessante é que, em Crisantempo,
a metonímia encerra as tensões entre concentração e dispersão,
figuratividade e abstração, rigor e fruição, que marcam a
série ecfrástica desse livro.
Note-se,
por exemplo, como em outro poema dessa mesma série, "a oniroteca
do wladyslaw", Haroldo também valoriza o diálogo intersemiótico
entre poesia e pintura como modo de desnaturalizar a representação
realista vinculada às categorias plásticas - desenho/cor -
e lingüísticas - significante/significado -, encenando assim
o método pictural empreendido por Anatol Wladyslaw como um
suicídio de imagens que se atiram "da janela / aberta / da
cor". E ainda, como em mais um poema, agora em homenagem a
Hermelindo Fiaminghi, internaliza o contato com a própria
materialidade da pintura a ponto de forjar uma sintaxe deslizante
em associação às texturas movediças e à imbricação de cores
e luzes na tela:
geômetra
amoroso
da reta
e
da curva
precisas
das
retículas sutis
que
se reticulam
como
texturas movediças
(o
violeta entrando pelo verde
pervasivo
insinuante
feito
um véu que desvela outro
véu)
(p.
125)
Já
na sua forma de se referir ao pintor - "geômetra amoroso" -,
Haroldo ressalta o rigor construtivo da técnica pictural, ainda
que descreva a experiência pictórica aí como um êxtase da visão:
inventor
e mestre
voa
em
sua esfera ambital
sustentado
pelo motor fortefrágil
do
coração
-
central coralina
de
onde irradia um
jocundo
artesanato de
formas
de beleza
serenamente
domadas para o
gozo
plenipotenciário do olho
(p.
126, grifos nossos)
Mesura
e serenidade, invenção e técnica, vertigem e racionalização.
Novamente aqui essas noções ecoam a tensão que configura,
na verdade, a própria renovação da linguagem haroldiana numa
vertente pós-vanguardista.
*
Antonio Andrade é
mestrando em Literatura Brasileira e Teorias da Literatura
pela Universidade Federal Fluminense, bolsista do CNPq e orientando
da profa. dra. Celia Pedrosa. Sua dissertação
chama-se "Galáxias Neobarrocas: poesia e visualidade em Haroldo
de Campos".
BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In:
______. Obras
escolhidas I: Magia e técnica, arte e política. São
Paulo: Editora Brasiliense, 1985.
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