APRENDER
A CAVALGAR O TIGRE:
PESSOA EM ÁFRICA
Antônio Cabrita
Há cem
anos, em 1905, com dezassete anos feitos, regressou o anglófilo
Pessoa de Durban, para a sua aventura na língua portuguesa.
E onde cabe, neste transbordo de alma e língua, África?
Faz
cem anos que Fernando Pessoa abandonou Durban para voltar
a Portugal e os fados obstinam em manter encoberto o quadrante
africano, na sua estela. Estará na hora de afirmar que quando
sobrepomos a orografia literária de Fernando Pessoa aos mapas
cosmológicos que a antropologia africana tem traçado, encontramos
estranhas coincidências, contágios e motivos de assombro.
E que o chão onde o poeta intervala, passo a passo, é afinal
mais negro do que parece.
Sobrevoemos
o território dos seus anos de formação, com a perscrutação
veloz da ave de rapina.
À
placidez da primeira infância de Pessoa segue-se a tormenta
e as geadas: orfão de pai aos cinco anos de idade, a morte
do irmão Jorge um ano depois; luto que a mãe aplaina no afecto
legítimo do comandante João Miguel Rosa, seu futuro padastro,
nesse mesmo ano. O jovem vate reanima com a invenção do seu
primeiro "amigo imaginário": o Chevalier de Pas, que "lhe
escreve" umas cartas.
Mas
a vida não pactua e a loucura da avó paterna Dona Dionísia
Estrela, para usarmos um português-policromado à altura do
chevrolet de Álvaro de Campos,
põe o pé no acelerador. A casa da Rua de São Marçal
começa a ser habitada pelos fantasmas a quem a avó dirige
"intermináveis perorações permeadas de obscenidades" (Ángel
Crespo). E um dia o caldo entorna-se, Dona Dionísia deixa-se
de intermitências e fica tão "fora de si" que a mãe de Fernando
se decide pelo seu internamento no asilo de Rilhafoles. Isto
após meses de uma compostura destrambelhada, com "a criança
a assistir". Supomos que Fernando aliviava esta crispação
latente recebendo uma cartas do seu amigo Chevalier de Pas.
O
episódio da loucura da avó sulcou fundo em Fernando, que tomou
para si o sentimento da loucura como um destino tão funesto
como inevitável, o que acentua numa nota em inglês que Ángel
Crespo situa à volta de 1909: «Um dos males do meu espírito
- e é de um indizível horror - é o medo da loucura, que é
já a loucura».
Em
1896, meses depois do internamento da avó, está em Durban,
na África do Sul, onde João Miguel Rosa fora colocado como
cônsul.
Durban
era uma cidade recente (fundada em 1846), arrancada aos pântanos
e à pródiga vegetação subtropical e com uma baía por assorear,
à qual só acostam baleeiros e barcos de pesca. A primeira
casa dos Rosa situava-se em Ridge Road, que segundo H.D.Jennings,
era à época «um lugar muito pouco civilizado, para pessoas
que acabavam de chegar a África.» Seria a casa colonial que
se vê na foto, que imaginamos rodeada de sebes de caniço,
mangueiras, palmeiras, palhotas ou casas de adobe e colmo,
em cujas varandas se ouvia o mar entrecortado com o ritmo
dos pilões e de alguns cantos pagãos - é a imagem que nos
sugere a expressão de espanto de Jennings. Mudariam depois
para uma outra casa do bairro comercial, mas as primeiras
impressões estão tatuadas na retina e no coração de Pessoa
( - tal como as primeiras tempestades tropicais, que o levam
a um pânico de borrascas nunca mitigado).
Em
1899, depois de ter frequentado uma escola de freiras irlandesas,
Pessoa é matriculado na Durban High School, um sóbrio edifício
de tijolos vermelhos e arcadas ao longo da fachada, e onde
se esmerou numa educação o mais vitoriana possível. Em breve
se destaca pelo aprumo e nas matérias curriculares, aliás
adiantando-se dois níveis em relação aos rapazes da sua idade.
E, pelo que o próprio relata, já nesta altura os seus gostos
diferiam dos dos seus colegas. Fernando abominava a literatura
para "jovens" e o espalhafato das aventuras que exigiam alguma
performance física: «Não era atraído pela vida sã e natural.
Aspirava, não ao provável, mas ao incrível; não ao impossível
teórico, mas ao impossível em si.»
Em
1901, acabada a sua escolaridade, e como o padastro obtivera
um ano de licença, a família embarca para Lisboa. Com eles,
viaja também o cadáver da pequenita Madalena Henriqueta, sua
irmã, nascida em 1897 e finada de véspera.
Em
Setembro, Pessoa regressa sozinho à capital de Natal, no vapor
alemão Herzog. Tem catorze anos, uma ramagem de mortos sobre
os ombros, um isolamento que a sua timidez não quebra, nem
quando se exprime com a enfática locução de um futuro locutor
da BBC - e quem sabe o que imagina um rapaz dado aos prodígios
da mente e fechado na cabine de um navio durante semanas.
De qualquer dos modos, esta segunda estada em Durban trará
enigmas que levederão, a meu ver, no poeta em delta que Fernando
se tornará. No que ratificamos Alexandrino E. Severino ("Fernando
Pessoa na África do Sul"/D.Quixote, 83):
«A
partir de 1903, contudo, quando do seu regresso a Durban,
depois de uma ausência de um ano em Lisboa e Açores, houve
uma modificação na vida do poeta que, apesar de indefinida,
deve ter sido altamente significante para o desenvolvimento
da sua personalidade. Já vimos que fora um período difícil.
Abandonara o curso clássico do liceu de Durban para matricular-se
à noite numa escola comercial de nível elementar (primeiro
ciclo). Referindo-se a este período, Fernando Pessoa anotou
anos depois em um caderno escolar: "Bom foi para mim e para
os meus que até à idade de quinze anos permaneci sempre
em minha casa entregue sem revolta à minha velha maneira
de ser reservada. A essa época, contudo, fui enviado para
uma escola longe de casa e então o novo ser que eu tanto
temia se manifestou e tomou forma humana". Muito embora
não possamos precisar o que lhe acontecera, o novo ser de
que Fernando Pessoa se sente possuído desabrocha em actividade
artística.»
Que
susto persegue Pessoa, ou o visita? Clifford Geerdts, seu
colega de Durban e seu amigo natural pela inteligência e aproveitamento
escolar, lembrou a Hubert Jennings, em 1964, que estando em
Oxford a estudar, recebeu uma carta de um suposto psiquiatra
de um senhor Fernando Pessoa, que o sondava a respeito da
lucidez do seu cliente e sobre que ideia fazia do seu comportamento
em Durban. Outra carta semelhante recebeu Ormond, outro amigo
de Durban, com o mesmo teor e inquirição. Geerdts adivinhou
que a carta era do próprio Pessoa e ter-lhe-á respondido evasivamente.
Jenning, entretanto, descobriu outros dois documentos referentes
a este «caso», uma nota em francês que pretendia ser um relatório
psiquiátrico sobre um paciente chamado «P», redigido com a
letra de Pessoa; o segundo documento é uma resposta do prof.
Belcher, de Durban, a um pedido de informações emanado pelo
mesmo suposto psiquiatra de Lisboa. Como escreve Crespo, há
razões para crer que F. Pessoa foi compelido a esta correspondência
não apenas por uma bizarra inspiração lúdica mas «porque atravessava
anos difíceis durante os quais ele pensava efectivamente estar
à beira da loucura». Sim, Pessoa desejava avaliar, com tão
rebuscado artifício, se se notava e "via" nele a perturbação
que transportava, o segredo que o fendia. Que segredo?
Acresce
a estes dados uma precoce e singular apetência para a literatura
esotérica e as leituras heterodoxas, desde o princípio da
sua carreira literária, e manifestamente desde o pacto firmado
por Alexander Search, «residente do Inferno» e seu semi-heterónimo
(curiosamente dado como nascido no mesmo dia e ano de Pessoa),
com Jacob Satanás. E como explicar o poema em inglês, Anamnesis,
escrito em 1901 - ano da morte da irmã Henriqueta - e onde
se lê: «Somewhere where I shall never live/ A palace garden
bowers/ Such beauty that dreams of it grieve.// There,
lining walks immemorial,/ Great antenal flowers/ My lost life,
before soul, recall.// There I Was Happy and the child/ That
had cool shadows/ Wherein to feel sweetly exiled.// They took
all these true things away./ O my lost meadows!/ My
Childwood before Night and Day!»? É mais do que uma súmula
de leituras platónicas, não se escreve "My lost life, before
soul, recall", nem "My Childwood before Night and Day!" aos
13 anos por mero mimetismo literário, sobretudo quando o futuro
confirma o génio e que não se é um literato. Que abalo empurra
o autor para o seu destino?
Abrem-se
aqui dois aspectos.
Primeiro,
apesar da presença da morte que lhe agoirou infância e anos
de formação, um interesse por temas esotéricos e heterodoxos
de comum só ocorre depois de um primeiro impacto no "numinoso".
O numinoso designa uma qualidade do vivido que nos desvela
uma outra dimensão, uma realidade que transcende o horizonte
da consciência ordinária. Esta experiência pode ser uma experiência
de terror e dilaceramento: só em aceitando-a, como se aceita
o luto, se volve a ferida, o impasse, na "passagem" que permite
a conversão, a metanóia - uma mutação da vida e da consciência.
Como na alquimia, uma calcinação precede a "coniunctio" que
significa literalmente a "união de opostos" e só aí a "alma"
se liberta da sua coagulação e paralisia, i.é, como diz Titus
Burckhardt, das garras do ego e da mente intelectual. É por
isso que não se pode ter uma "propensão intelectual" pelo
esotérico ou pelo hermetismo: este é vivido, buscado, "de
dentro", e absolutamente vedado para "os de fora", para os
que nunca afrontaram a presença do incondicionado. O próprio
Fernando Pessoa, num escrito intitulado "Um caso de mediunidade"
releva que uma das condições básicas para adquirir os dons
da mediunidade é, taxativamente: «O estado de depressão produzido
por: 1) desgostos e perturbações várias, 2) a própria perturbação
mental causada pelo aparecimento dos fenómenos "mediúnicos",
tanto por esse aparecimento, como pelo conteúdo das chamadas
"comunicações", e 3) o conflito entre tudo isto e o basilar
e normal espírito de lucidez, lógica e necessidade de precisão
científicas (...)»
Depois,
a inacreditável denegação com que Pessoa silenciará a sua
experiência africana, o clamor das suas paisagens, do seu
espaço (e Pessoa é um poeta onde abunda a evocação espacial),
a força dos seus contrastes; o silêncio suspeito com que abdica
de um testemunho sobre vizinhanças tão claramente nos antípodas
da sua educação europeia - é uma atitude inverosímel em alguém
da sua inteligência, sensibibilidade e probidade, a não ser
que algo, um transtorno mais forte que a razão, se tenha passado.
Aliás, o "profeta" do "Sensacionismo", um homem que escreve,
pela voz de Álvaro de Campos, «Afinal, a melhor maneira de
viajar é sentir./ Sentir tudo de todas as maneiras. / Sentir
tudo excessivamente,/ Porque todas as coisas são, em verdade,
excessivas/ E toda a realidade é um excesso, uma violência,/
Uma alucinação extraordinariamente nítida (...)», cala voluntariamente
sobre África? Só acredita nisso quem nela nunca sentou as
suas próprias sensações.
É
aqui que entra a antropologia africana.
Madre
Teresa dos Anjos era habitada por sete demónios, cada um do
seu estilo. Ainda hoje o maior crime para os cristãos, o pacto
com o espírito possesor, é o maior dos bens para o Tsonga,
a etnia do sul de Moçambique.
Lê-se
no livro da antropóloga Alcinda Manuel Honwana, "Espíritos
Vivos, Tradições Modernas, Possessão de Espíritos e Reintegração
Social Pós-Guerra no Sul de Moçambique" (Ela por Ela,
2003): « (...) ao analisar a política de identidade na África
pré-colonial, Ranger argumentava que, longe de estarem ligados
a "uma única identidade tribal, a maior parte dos africanos
entravam e saíam de múltiplas identidades, podendo definir-se
a dado momento como súbditos deste chefe, noutro como membros
daquele culto, num outro momento como parte deste clã e noutro,
ainda, como iniciados daquela corporação profissional. Estas
redes sobrepostas de associação e intercâmbio estendiam-se
por várias áreas"».
E
esta fluidez da identidade sobe de grau no caso da possessão
pelos espíritos - de ancestrais que se tornaram deuses ou
de inimigos mortos sem os devidos ritos funerários cumpridos.
Duma forma grosseira, diga-se que no quadro do pensamento
tradicional, não se verifica, tanto na zona do sul de Moçambique,
entre os Tsongas, como em Durban, com os Zulus, o sentimento
de uma separação entre os homens e a divindade - «em virtude
de se conceber que os agentes espirituais se apoderam dos
corpos e das faculdades, vivem e se desenvolvem nas pessoas»
(Honwana). A volição, nestas áreas,
é uma modalidade da incubação - com o sonho, o transe,
os mitos e a vida material mesclados num tipo distinto de
racionalidade. Neste preciso momento em que escrevo, 30 de
Janeiro, saiu no semanário "Domingo", de Maputo, uma reportagem
enorme, de Bento Venâncio, sobre o canhoeiro misterioso (uma
árvore de grande porte) que em Magude, a cem quilómetros de
Maputo, «conserva virtudes humanas, "passeia-se à noite" e
"não aceita" que um dos seus ramos seja arrancado de qualquer
maneira.» Compreende-se então que os mundos de Mia Couto não
existem só nos livros.
Até
à invasão dos Nguni, um ramo dos Zulus, no século XIX, os
Tsonga não conheciam a possessão por transe. Entre os Zulus,
os tais vizinhos bárbaros de Pessoa, é comum, tal como o carácter
múltiplo da possessão. O que significa que cada veículo corporal
pode ser tomado por vários espíritos e enredar-se numa constelação
linhageira, num arquipélago identitário. Como se coubesse a cada humano incorporar a sua genealogia
e às vezes a de outros - habitualmente misturam-se os espíritos
locais e os estrangeiros. Isto deu origem a um novo tipo de
curandeiro, o "nyamusoro", cuja institucionalização subentende
«a aceitação implícita do carácter transcultural da posse
pelos espíritos» (Alcinda). O "nyamusoro" incorpora os espíritos
"tinguluve" (Tsonga) , e os espíritos "vanguni" (de origem
Nugni) e "vandau" (de origem Ndau), que os Nguni trouxeram
consigo, a fim de poder tratar "todos" os casos, tendo em
conta as diferentes etnias. Será preciso dizer que cada espírito
tem a sua caractereologia e às vezes a sua própria língua?
Henri Junod, etnólogo suiço que palmilhava a África do Sul
e Moçambique precisamente na altura em que Pessoa viveu em
Durban, estudou os povos Bantu (que englobam todas estas etnias
que temos referido), e precisa quanto aos cantos, nos rituais
de exorcismo: «Estes cantos são, geralmente, em zulu e afirma-se
que ainda quando o paciente não fale essa língua torna-se
capaz de se servir dela nas suas conversações, por uma especie
de milagre das línguas» ("Usos e Costumes dos Bantu,
vol. 2, pág. 419, Arquivo Histórico de Moçambique, 1996).
E
que dizer quando se constata, conforme escreve Alcinda Honwana,
que «os diversos tipos
de espíritos, que frequentemente coexistem no mesmo indivíduo
possuído, interrelacionam-se uns com os outros» e estabelecem
relações de poder, como as que o mestre Caeiro estabelecia
com os restantes heterónimos? Não é claramente a etiologia
da possessão que nos interessa mas a estranha coincidência
entre os seus mecanismos e o dispositivo da heteronimia em
Pessoa, que passeou em África dez anos da sua porosidade e
inteligência. Era esta a realidade a que assistia entre a
criadagem, no vozear que polvilhava as cercanias (portas-meias,
segundo Hennings) da casa de Pessoa. Dez anos que calou, num
mistério nunca profanado.
Diga-se
previamente que o transe, ou a possessão pelos espíritos,
não reveste sempre uma forma espectacular manifesta. Esclarece
Gerrie ter Haar, referindo-se à possessão na Zâmbia ("L'Áfrique
et le monde des esprits", Karthala), que «Nos homens em
particular, tende a tomar uma forma latente e pode nunca se
manifestar abertamente». Na esteira da "histeria branda" auto-diagnosticada
por Pessoa em carta para Adolfo Casais Monteiro, de 13 de
Janeiro de 1935: «A origem dos heterónimos é o fundo de histeria
que existe em mim (...) residindo na minha tendência orgânica
para a despersonalização e para a simulação. Estes fenómenos
(...) fazem explosão para dentro e vivo-os eu a sós comigo.
Se eu fosse mulher (...) seria um ataque para a vizinhança.
Mas sou homem - e nos homens a histeria assume principalmente
aspectos mentais; assim tudo acaba em silêncio e poesia...»
"Controle" corroborado pelo que se explicita no clássico de
Ioan M. Lewis ("Extase Religioso", Editora Perspectiva,
1971): «...em muitas culturas onde a possessão por espírito
é a interpretação única ou principal do transe, a possessão
pode ser diagnosticada muito antes do verdadeiro estado de
transe ser atingido.»
Qual
pode ter sido o «mistério africano» de Pessoa? Imagino a cena.
É noite e Pessoa vai entregue aos devaneios, a caminho da
escola comercial - uma caminhada e tanto por ruas semi-construídas
e alguns atalhos onde o negrume da vegetação se mistura aos
barracos em madeira e colmo, rasgados pelo bruxuleante crepitar
das fogueiras. Tem quatorze/quinze anos e uma cabeça que ferve
em pouca água - felizmente refrigerada por uma fantasia que
lhe amortece os sinais de uma emocionalidade à beira de desmoronar.
Como tantas vezes, às vezes corta a eito, pelos sítios mais
sombrios, a ruminar em versos alheios, pletóricos e enigmáticos.
De repente eclodem tambores, nas suas costas. Fernando sabe
- já se informou, discretamente, nos bares de baleeiros, no
cais - que o
exorcismo pelo toque dos tambores é o método clássico para
expulsar os espíritos, e que cada espírito tem o seu ritmo.
Sente-o desde miúdo, mas agora as peles percutem nas suas
costas, numa clareira que se abre atrás duma caniçada. Resolve
ir espreitar.
Vê
um pequeno grupo de homens em redor de uma fogueira, evocações
que não compreende, cantos e inexplicáveis gestos do curandeiro
e duas mulheres que estão convulsas, enquanto os tambores
lhe burilam o coração. Sai detrás do arbustro e aproxima-se,
hipnoticamente, fascinado, a medo. Senta-se, a cinco metros
da fogueira, ninguém parece dar por ele. A cerimónia sobe
de tom e os tambores retumbem na consciência impressionável
de Pessoa. A noite está quente mas o seu suor começa a esfriar
nas omoplatas como uma língua de cobra. O curandeiro ergue
as mãos cheias de sangue. Pessoa sente-se "embriagado". E,
de repente, "algo" entra nele, ou sai, ou flui, numa alteração
subitânea da sua percepção e consciência.
Não
interessa se foi "possuído", se teve simplesmente uma experiência
de "não-dualidade" para a qual a sua educação lógico-discursiva
e embebida em senso comum, não o preparara. Quando ocorre
uma "alteração da consciência" em quem não foi iniciado, instala-se
a "inquietante estranheza a si mesmo" ("Das Unheimliche")
a que Freud alude, um estado de desconectação motivado por
uma ausência de categorias para traduzir a sensação de que
o exterior e o interior são inusitadamente simbióticos. Sucede-se
a supressão das marcas que colocava o sujeito face ao objecto,
como seu oponente, e o sobressalto que daí advém. Dissolvidas
as fronteiras entre o eu e o tu, o observador e o objecto
da observação, pode então o "sujeito", de repente, ouvir brotar
as vozes dos outros como se emanadas "de dentro" de si, do
jorro de vibrações que o inunda - e o susto é brutal, dado
confundir uma plenitude saturada com a (sua) vacuidade.
Impreparado
para detectar de imediato os padrões-que-religam, esse intenso
sentimento de irrealidade solta-lhe os ferrolhos das palavras,
no sentido em que lhes multiplica os sentidos e os contextos,
projectando-os em níveis de significação flutuantes. E dá-se
a fractura ontológica, a que decorre do «conflito entre tudo
isto e o basilar e normal espírito de lucidez».
Neste
sentido se apura a veracidade da dissociação que Pessoa descreve
numa fala da Terceira Veladora em "O Marinheiro": «Minha
irmã, não nos devíeis ter contado essa história. Agora estranho-me
viva com mais horror. Contáveis e eu tanto me distraía que
ouvia o sentido das vossas palavras e o seu som separadamente.
E "parecia-me que vós, e a vossa voz, e o sentido do que dizíeis,
eram três entes diferentes, como três criaturas que falam
e andam"» (sublinhado
meu).
Vaticina
Gilbert Durand em "A Imaginação Simbólica", com rigor:
«A doença mental reside justamente numa perturbação da re-presentação.
O pensamento doente é um pensamento que perdeu o "poder da
analogia" e no qual os símbolos se desfazem, se esvaziam de
sentido», O poder da analogia só se exerce a partir de distintas
coordenadas psíquicas. Quando estas se extraviam, o mapa da
realidade estilhaça-se, sem nexo, «partes sem um todo» como
diz Pessoa - até à sua reordenação, sob o olhar de um novo
intérprete. Aí o pensamento, balizado por novas coordenadas,
volta a reencontrar a liberdade da transumância e o seu «guardador
de rebanhos».
A
experiência da "não-dualidade", ou a de uma "consciência alterada",
se impreparada, pode desencadear uma cisão devastadora, um
intro- "esburacamento" da consciência onde, como nos "buracos
negros", tudo se absorve - "espíritos alheios", se a oportunidade
proporcionar, ou o simulacro disso; os psicanalistas referem
a existência de um simulacro inconsciente quase constante.
E quem a sofre torna-se, como no «drama estático» "O Marinheiro",
um Velador, um interlúdio da morte: lembremos, «(...) o novo
ser que eu tanto temia se manifestou e tomou forma humana».
Julgo
que esta hipótese torna mais transparentes muitos versos da
obra ortónima: « Sinto de repente pouco,/ Vácuo, o momento,
o lugar./ Tudo de repente é oco - / Mesmo o meu estar a pensar./
Tudo - eu e o mundo em redor - /Fica mais do que exterior.»
"Além- Deus, I"; « Vasto por fora do Vasto/ Sem ser, que a
si se assombra...», "Além-Deus, II; «Não sou eu quem descrevo.
Eu sou a tela/ E oculta mão colora alguém, em mim.»,"Passos
da Cruz, XI"; «Emissário de um rei desconhecido,/ Eu cumpro
infomes instruções de além,/ E as bruscas frases que as meus
lábios vêm/ Soam-me a um outro e anómalo sentido...», Passos
da Cruz, XIII; «De quem é o olhar/ Que espreita por meus olhos?»,
"A Múmia,II; «Sou já o morto futuro./ Só um sonho me liga
a mim - O sonho atrasado e obscuro/ Do que já devera ser -
muro/ Do meu deserto jardim.», "O Andaime"; «Não dormes sob
os cipestres,/ Pois não há sono no mundo./........................../
O corpo é a sombra das vestes/ Que encombrem seu ser profundo.»,
"Iniciação". E se deixássemos o demónio da interpretação e
lêssemos estes versos de forma "literal"? O poeta avisa-nos
em «Para Além Doutro Oceano», do sigiloso heterónimo C.Paceco:
«Sentir a poesia é a maneira figurada de se viver/ Eu não
sinto a poesia não porque não saiba o que ela é/ Mas porque
não posso viver figuradamente». Paradoxo que Jorge de Sena
ilumina pertinazmente: «a poesia ortónima não é a poesia de
uma personalidade, e sim a de uma personalidade que analisa
a sua inexistência, precisamente porque as outras lhe existem»
(in «O Heterónimo Fernando Pessoa e os poemas ingleses
que publicou»)
Julgo,
deste modo, adequadas as formulações de Eduardo Lourenço,
no recente "O Lugar do Anjo", «o "eu como ficção" não
é para Pessoa um achado literário - é a realidade e o lugar
de uma busca, o signo de um sofrimento», (...) «De outra forma
não seria possível compreendermos o eu empenhadamente na criação
de outros eus marcados como o dele, por idêntica vacuidade.
Aquilo que Pessoa quer convencer-se, é da realidade do mundo
exterior(...)». Haverá realidade do mundo exterior para "o
possesso", em África? É duvidoso, e tudo se franja de símbolos
na rodada saia de Maya, a ilusão.
Com
Caeiro, que não emergiu à cautela como um periscópio, mas
rompeu águas de uma vez (30 e tal poemas numa noite, segundo
declarações de Pessoa) como as crianças de algumas tradições
orais africanas que se cansavam da "luz negra" do útero e
resolviam vir cá fora banhar-se na luz do dia, as clivagens
conheceram a cicatriz. A erupção do heterónimo Caeiro fez
Fernando Pessoa "cavalgar o tigre" - formula-se no zen: se
cavalgamos o tigre impedimo-lo de lançar-se sobre nós - da
"loucura", exorcismou-o. Com Caeiro, Pessoa chegou à arte
de esvaziar a "doença dos símbolos" (a danação das palavras
significarem sempre "outra coisa").
Alberto
Caeiro fê-lo passar de figurante temeroso a demiurgo, a orquestrador
do "adorcismo". O adorcismo designa o acto de convocar periodicamente
os espíritos e de os socializar, baptismar, pelo ritual. O
medo transfigura-se em sentido, em fruição de jogo - convertido
o caos em linguagem. Não esqueçamos que o actor nasce da morte
da possessão efectiva.
Viria
depois a crise de 1916, empurrada pela doença da mãe e o suicídio
de Sá-Carneiro mas houve um momento em que Pessoa pôde dizer
como Pascal: «Le monde me comprend, et m'engloutit comme un
point, mais je le comprends". Situou-se, finalmente, no espaço.
Nesse espaço vasto que é um sistema de pontos diferentes.
Como
em África, o mais vasto dos espaços porque neste continente
a topologia não prescinde do invisível: «A casa branca nau
preta// Felicidade na Austrália...»
NOTA:
O
que me impeliu a este texto? Andava em leituras antropológicas
e as descrições de casos do livro de Alcinda fumigaram-me
uma intuição que só ganhou forma no livro seguinte, quando
uma frase do célebre "O Antropólogo como Autor", de Clifford
Geertz, me concretizou a hipótese de uma "iniciação" de Pessoa
em África. Redigi uma nota na última folha do livro e passei
adiante. Até que numa biblioteca pública me caiu nos braços
o livro de Severino, "Fernando Pessoa na África do Sul" que
desconhecia existir. Abro-o ao acaso e deparo com o nome do
companheiro de carteira de Pessoa na escola em Durban e seu
melhor amigo: Clifford Geerdts. Eu não acredito em bruxas,
mas que as há, há... O leitor que julge, eu, em homenagem
ao vate, alinho num scotch.
*
António
Cabrita,
poeta e ensaísta português, reside hoje em Moçambique.
*
Leia
também um conto
do autor.
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