INTRODUÇÃO
O que poderá haver em
comum entre uma senhora romana de 500 a.C., uma guerrilheira
liberiana do fim do século XX e uma artista italiana do
século XVI? A senhora romana é Lucrécia, esposa do nobre
romano Colatino Tarquínio, cuja virtude foi cantada por
poetas como Chaucer e Shakespeare. Depois de ser traiçoeiramente
violentada por Sextus Tarquinius, filho do tirano Lucius
Tarquinius, denominado o Soberbo, suicida-se diante do pai
e do marido, exigindo justiça. Os odiados Tarquinios foram
então exilados de Roma, após um levante popular que levou
à criação da República Romana. Seu ato privado, portanto,
tem uma repercussão pública. Black Diamond é uma guerrilheira
liberiana de 22 anos que se juntou aos rebeldes de seu país
após ter sido estuprada por um grupo de soldados leais ao
ex-presidente Charles Taylor da Libéria, em 1999. Diz ela
que "houve muitas razões" (para entrar no grupo), "mas
essa foi a principal; Isso me fez querer lutar contra o
homem que causou aquilo tudo, porque, se você é um bom líder,
não pode se comportar assim". Quando fez essas declarações
à agência Reuters ela acrescentou que "se você tem raiva,
fica valente. Você pode virar um mestre em tudo." (BBC
BRASIL.com, 22-08-2003)
ARTEMISIA GENTILESCHI
A terceira da minha
relação é a pintora barroca italiana Artemisia Gentileschi
(1593-1652), também vítima de estupro, aos 17 anos, no ateliê
que seu pai, o pintor Orazio Gentileschi, mantinha em casa.
O agressor, Agostino Tassi, que teve a ajuda de uma amiga
da família Gentileschi, era amigo e colaborador de Orazio.
Agostino foi levado a julgamento em 1612, chegando a ser
preso e condenado a um exílio de 5 anos, mas a pena nunca
foi cumprida. Sabemos dos detalhes do julgamento porque
os autos ainda estão disponíveis e foram cuidadosamente
anexados ao brilhante estudo, fartamente ilustrado, e documentado
que a historiadora da arte Mary D. Garrard realizou sobre
Artemisia. Mesmo antes do episódio que viria a marcar sua
vida e sua arte, Artemisia já se dedicava à pintura, sob
a orientação do pai. Depois, no entanto, abraçou a arte
como sua própria razão de viver, destilando em suas telas
aquela raiva que Black Diamond diz que pode fazer você ficar
valente e "virar um mestre" em tudo que faz. Data de 1612
seu trabalho mais conhecido: Judite e Holofernes.
Apesar de ter sido um tema clássico explorado por vários
pintores da época, dentre eles o mestre Caravaggio (1571-1610),
que conviveu com Orazio e influenciou pai e filha no uso
do claro-escuro, é digno de nota o fato de Artemisia ter
voltado repetidamente ao tema, (pelo menos 5 vezes) tomando-o
por diferentes ângulos narrativos. Um aspecto, porém, deve
ser registrado: as Judites de Artemisia, diferentemente
de outras, a de Caravaggio inclusive, são sempre fortes,
valentes, determinadas, alertas, verdadeiras heroínas, protagonistas
do seu próprio destino. Essa volta ao tema denota uma idéia
fixa da qual a artista não pode se livrar por muito tempo.
A artista mexicana Frida Khalo refere-se a sua antecessora
italiana quando pinta o quadro "Alguns piquezinhos". Diz
Frida: "Por que essa idéia mórbida? Talvez simplesmente
em defesa. Essa mulher assassinada não seria eu, que Diego
assassinava a cada dia? Ou era a ou- tra, a mulher com quem
Diego podia se encontrar, que eu quis fazer desa- parecer?
Eu sentia dentro de mim uma boa dose de violência, não posso
negar, eu fazia o que podia. Sentia-me como uma pequena
Artemisia Gen- tileschi que no século XVII pintava Judith
degolando Holofernes, sem, no fundo, jamais poder vingar-se
da realidade - que, esta sim, a tinha violen- tado - em
outro lugar que não na tela. ( JAMIS: 1987, 169). Frida
assumidamente identifica-se com o sujeito da sua pintura.
Bom para nós que temos, além da sua obra, o diário que mapeia
o seu processo criativo. Artemisia, no entanto, está muito
distante de nós (351 anos nos separam) e a maior parte do
que sabemos dela, além das poucas cartas remanescentes e
dos autos do processo que seu pai moveu contra Agostino
Tassi, só pode ser inferido dos pouco mais de 30 quadros
de sua indisputável autoria. No entanto, depois de um inexplicável
silêncio de mais de 250 anos que recaiu sobre sua obra,
Artemisia começou subitamente a gozar de uma popularidade
só explicada pelo boom dos estudos feministas. O primeiro
trabalho sério sobre sua obra é um artigo da autoria de
Roberto Longhi, datado de 1916. Depois de publicar alguns
artigos sobre Artemísia, a escritora feminista Germaine
Greer (1979) dedica um capítulo intitulado "The Magnificent
Exception" à artista barroca, no seu livro sobre artistas
pioneiras no mundo das artes plásticas. Em 1989 Mary D.
Garrard lança Artemisia Gentileschi: the image of the
female hero in Italian baroque art, o mais completo
estudo da obra de Artemisia, até hoje. No rastro desta importante
obra, fartamente ilustrada e documentada, Theodore K. Rabb
inclui um capítulo sobre a artista no seu livro sobre a
Renascença: Renaissance Lives: portraits of an age,
de 1993. Daí em diante, o interesse em Artemísia disparou.
Catherine Bohlen do New York Times registra, em 1998, sua
presença "nos palcos, na tela, nas livrarias e nas paredes
do Metropolitan Museum". Nem sempre esse tipo de notoriedade
é bem vinda: o filme "Artemisia", da diretora francesa Agnes
Merlet, por exemplo, foi duramente criticado pelas feministas
Gloria Steinem e Mary Garrard, por distorcer a história
de Artemisia, romantizando-a e mostrando Agostino como seu
"verdadeiro amor" além de atribuir o despertar da criatividade
da artista à sua discutível iniciação sexual. Contudo, embora
a abordagem de Merlet seja questinável, pode-se argumentar
que ela foi induzida pela própria Greer (1979:193) quando
esta sugeriu que Artemisia estava apaixonada por Tassi,
cujo charme e encantos pessoais despertavam todo tipo de
lealdades. A ação positiva e informativa das duas escritoras
feministas, no entanto, pressionou a opinião pública de
tal modo que a distribuidora Miramax retirou o filme de
cartaz logo após a sua estréia em New York. Em 2002, a escritora
Susan Vreeland lançou uma biografia romanceada de Artemisia,
The passion of Artemisia, um delicioso testemunho,
frouxamente baseado em documentos e, principalmente, nas
análises pertinentes contidas na obra de Garrard. Artemisia,
seu tempo, as cidades em que viveu, a sociedade que freqüentou
tomam forma no romance. A narrativa em primeira pessoa faz
com que Artemisia transcenda o tempo e se aproxime de nós.
Quando perguntada porque escolheu uma narradora em primeira
pessoa, a própria Vreeland (2002:5) diz que: "Eu senti
que a primeira pessoa me permitiria chegar mais perto de
Artemisia. Com a primeira pessoa o leitor pensará que todas
as descrições, observações, sentimentos são dela e não do
narrador. Não queria uma sensação de haver um autor contemporâneo
olhando para trás, para aquele século. Achei que a primeira
pessoa daria mais um sentido do imediato. Também, uma voz
em primeira pessoa ajudaria a distinguir The passion of
Artemisia de uma biografia." . (tradução livre) No Brasil,
Artemisia é pouco conhecida. Dei-me ao trabalho de pesquisar
entre artistas e estudiosos da arte do meu conhecimento
e todos foram unânimes em afirmar que nunca tinham ouvido
falar de Artemisia Gentileschi. Mesmo aqueles que tinham
visitado museus da Europa e Estados Unidos onde sua obra
está exposta, não se lembravam de ter visto nenhum quadro
seu. Na Internet, encontrei pouca coisa também: um artigo
do historiador de arte Jorge Coli, no Caderno Mais da Folha
de São Paulo, de 24 de março de 2002, noticiando a exposição
sobre Orazio e Artemisia que estava estreando em New York
e uma tradução do artigo de Celestine Bohlen a que me referi
anteriormente, no JB On Line, de 23 de fevereiro de 2002.
Afora esses registros encontrei ainda um artigo acadêmico
intitulado "O Refúgio da Arte", da autoria de Rosana Cássia
Kamita (UFSC) no qual ela faz um estudo comparativo de reavaliação
histórica entre Artemisia e a brasileira Júlia da Costa.
No presente trabalho procuro mostrar um pouco da vida e
da obra de Artemisia, atribuindo a perenidade da sua obra
à abordagem pessoal e original que fez de temas clássicos
e bíblicos como é o caso de Suzana e os Velhos, Judite
e Holofernes, Maria Madalena, Cleópatra, Lucrecia, Betsabée,
dentre outros. Escolhi para meu objeto de análise apenas
algumas de suas obras: Suzana e os Velhos, Judite decapitando
Holofernes (que na realidade forma um conjunto com mais
quatro telas) e Auto-Retrato como a Alegoria da Pintura,
por serem representativas da sua obra e por ilustrarem melhor
seu método de composição e filiação artístico-ideológica.
SUZANA E OS VELHOS
Já foi dito anteriormente
que não é exatamente a escolha dos temas que reflete o posicionamento
ideológico da artista. Ousaríamos afirmar que Artemisia
assume uma atitude feminista perante a vida e isto se revela
na sua arte. Suzana (1610) é um dos seus primeiros
quadros. A escolha do tema não é particularmente original.
Outros artistas dos séculos XVI e XVII como Tintoretto (1555-56),
Rubens (1635-40) e Rembrandt (1647), só para citar alguns
dentre os mais conhecidos mestres da pintura, dedicaram-se
ao tema, explorando as possibilidades eróticas que ela oferece.
A lenda Apócrifa de Suzana passa-se na Babilônia, no período
do Exílio, no século VI A.C. Suzana é a jovem e bela esposa
de um rico judeu, Joaquim, que costuma reunir a comunidade
judaica em casa. Dois velhos que freqüentavam essas reuniões
desenvolvem uma atração pela bela anfitriã e conspiram para
seduzi-la. Um dia, escondem-se no jardim e quando as criadas
se afastam, surpreendem Suzana no banho, exigindo que ela
se submetesse aos seus desejos, sob pena de espalharem o
boato de que ela havia mantido uma relação adúltera com
um jovem, naquele mesmo local. Embora o crime do qual seria
acusada fosse punida com a morte, Suzana resiste veementemente
ao assédio dos velhos e eles cumprem a ameaça. Suzana é
levada a julgamento e é condenada. É então que surge o jovem
juiz, Daniel e pede um novo julgamento, alegando que a pena
tinha sido aprovada sob falso testemunho. O próprio Daniel
conduz a investigação e submete os velhos a interrogatórios
em separado. Os dois se contradizem nos detalhes das acusações,
o que vem a provar a inocência de Suzana. E os velhos são
sentenciados à morte em seu lugar, por crime de perjúrio.
Esta é a história contada deste os tempos bíblicos do Velho
Testamento. Com o tempo ela foi se deturpando e o que se
pode ver em muitas das representações pictóricas que a relatam
é uma oportunidade de legitimação do voyeurismo, com requintes
de erotismo na exposição do nu feminino. É aí que a abordagem
de Artemisia difere daquelas dos outros artistas dos séculos
XVI e XVII. Sua Suzana assume uma postura de aflição e repulsa.
Os braços que afastam os homens que a assediam e a torção
incômoda do corpo, falam bem do constrangimento a que está
submetida. Artemisia recuperou o sentimento daquela antepassada
distante no tempo e próxima na experiência. Mary Garrard
(1999:191) admira-se com o fato de o "indomável ego masculino"
conseguir transformar um exemplo bíblico da castidade feminina
em uma celebração pictórica de oportunidade erótica. Contudo
ela reconhece que o assédio e o estupro têm sido historicamente
glorificado na arte, em diversos épicos, como no caso de
Helena e Paris e no caso das Sabinas, sem esquecer os deuses
lúbricos do Olimpo, como Zeus e Apolo. Na língua portuguesa
faz-se uso de um eufemismo para se designar o estupro através
do termo "rapto". "O rapto das Sabinas" é bem mais delicado
que "O estupro das Sabinas", mas a intenção do raptor é
a mesma do estuprador. Embora a Suzana de Artemisia
seja datada de 1610, uma data muito precoce para uma associação
mais imediata com a data do estupro perpetrado por Agostino
Tassi, com a conivência do seu amigo e cúmplice Cosimo Quorli,
não deixa de ser admirável que os mesmos elementos estejam
presentes na vida e na obra da artista: assédio sexual por
homens mais velhos seguido de chantagem com a ameaça de
denegrir sua reputação caso ela não cedesse. O que quer
dizer que ela sabia do que estava tratando ao se colocar
na posição de constrangimento da sua retratada. Este quadro
nos dá um reflexo da situação de vulnerabilidade em que
se encontrava a jovem, órfã de mãe (contando apenas 17 anos)
vivendo numa sociedade marcadamente misógina e patriarcal,
cujas regras eram todas feitas por e para os homens. JUDITE
E HOLOFERNES Judite e Holofernes, nas suas cinco
versões assinadas e preservadas, três das quais incluídas
dentre os melhores trabalhos de Artemísia, nos oferecem
uma fantasia de vingança de uma mulher que fora ofendida
no que lhe era mais íntimo. Desta experiência sexual traumática
ela extraiu a matéria e o sentimento que informam a sua
obra, mesmo que de forma inconsciente. O livro de Judite,
da Bíblia, nos conta que o general assírio Holofernes estava
sitiando a cidade israelita de Betúlia. Os habitantes estão
a ponto de se renderem quando Judite, uma viúva,
(grifo meu) se oferece para salvar a nação. É importante
ressaltar que não se trata de uma virgem, nem de uma senhora
casada. Embora Judite seja uma mulher de reputação inquestionável
que vivia em completa reclusão e penitência desde a morte
do marido, sua exposição não punha em jogo a moral patriarcal:
se ela falhasse no seu intento nenhum homem teria sua honra
manchada. Sem explicar seu plano, ela veste suas melhores
roupas e parte em companhia da criada, Abra, para o acampamento
inimigo. Aqui, é também importante frisar que os homens
da sua cidade não se opuseram à sua saída. Os soldados inimigos
ficam encantados com sua beleza e acreditam na sua história:
ela dizia que vinha oferecer ajuda ao maior general de Nabucodonosor.
Através da beleza e da palavra ela consegue o acesso desejado.
O general Holofernes, igualmente encantado, termina por
convida-la a comer e beber com ele, o que ela aceita, após
algumas recusas. O general bebe demais e adormece. Judite
aproveita o ensejo, tira-lhe a espada e corta-lhe a cabeça,
entregando-a em seguida a Abra, sua criada e ajudante, que
a põe num saco. Em seguida, as duas deixam o acampamento
e voltam a Betúlia. Lá apresentam a cabeça do tirano, aconselhando
que a expusessem para intimidar o inimigo. Ao verem a cena,
os assírios se assustam e dispersam, sendo facilmente derrotados
pelos betulianos. O livro de Judite foi composto anonimamente
no fim do segundo século antes de Cristo, mas foi excluído
do cânone hebreu e rejeitado como apócrifo pelos protestantes
e Martinho Lutero interpretou-o como uma alegoria. Muitos
dos analistas da obra de Artemisia têm interpretado a cena
da sangrenta decapitação de Holofernes (três dentre as cinco
telas retratam o ato da decapitação, as outras duas se concentram
em cenas após o ato) como uma expressão de vingança contra
o homem que a violentou, Agostino Tassi, baseados na equação
tanto bíblica como freudiana entre decapitação e castração:
a justa punição pelo estupro dentro da tradição do "olho-por-olho".
Mary Garrard nos adverte que, nos seus quadros sobe o tema,
Artemisia parece ter extraído coragem da sua heroína para
ir mais longe do que qualquer outra artista tinha ido até
então, ou iria, antes do século XX. É bom lembrar que Artemisia
foi a primeira mulher a ser admitida na fechadíssima Academia
de Desenho de Florença. As Judites de Artemisia chocam não
apenas pela sua virulência, mas principalmente porque retratam
a violência perpetrada por uma mulher contra um homem, explicitando
assim a velha questão da guerra dos sexos, a partir do ponto
de vida da mulher. Artemisia deu vida e magnitude a uma
personagem totalmente antipatriarcal. Se em termos iconográficos
ela é forte e heróica defensora de seu povo, em termos metafóricos,
entretanto, ela simboliza o desafio feminino ao poder masculino.
É então o reverso da perseguição de Suzana e da própria
Artemisia por Agostino Tassi e seu amigo Cosimo Quorli.
É ainda Garrard (1999:311) quem frisa que "dada a extraordinária
biografia da artista e a validação do princípio aristotélico
da catarse pela psicologia moderna, é plenamente justificável
que se interprete a pintura, pelo menos num nível, como
a expressão catártica da raiva pessoal, e talvez reprimida,
da artista." (tradução livre) Comparando os quadros de Artemisia
com os dos seus contemporâneos que trataram o mesmo tema,
como Botticelli, Veronesi e mesmo Caravaggio, constatamos
um flagrante contraste entre essas interpretações. A de
Caravaggio, por exemplo, a que mais se aproxima da de Artemísia
(o que não é de admirar, dada a proximidade no tempo - 1598-99
- e as relações de amizade com seu pai, além da explícita
influência que aquele mestre exerceu sobre pai e filha,
não foge à regra e mostra uma Judite delicada, feminina,
inexpressiva, convencional. Holofernes, no entanto é brutal,
viril, protesta, berra, esperneia. Embora tenha se mantido
quase fiel ao retrato de Holofernes, Artemísia altera sensivelmente
a representação de Judite. Ao invés da mocinha enfastiada
com os braços paralelos, afastados, com se não quisesse
se sujar com o sangue que estava derramando, temos duas
mulheres totalmente envolvidos no ato que se propuseram
a realizar. Não diria que Judite extrai um prazer sádico
da sua ação. O que vemos é mais concentração, precisão.
Longe da feminilidade frágil das outras Judites, a sua é
forte, braços e pescoço de uma mulher que sabe e pode se
defender e até atacar, se for preciso. Numa das Judites,
a do palácio de Uffizzi, em Florença, datada de 1620, há
um detalhe microscópico que também merece a nossa atenção:
esta Judite está portando uma pulseira. Numa ampliação que
Garrard (1999:326) faz deste detalhe, ela nos mostra que
os medalhões da pulseira têm figuras femininas em cenas
de caça. Ora, a deusa Diana, a caçadora, Ártemis para os
gregos, cujo nome está presente no nome da pintora, era
uma divindade que defendia a castidade, castidade esta espontaneamente
abraçada pela viúva de Betúlia e agredida, no caso da pintora
italiana. A inclusão da pulseira, portanto, equivaleria
a uma assinatura.
AUTO-RETRATO COMO
ALEGORIA DA PINTURA
Tendo realizado sua
catarse, seu exorcismo, expulsado a raiva do seu corpo,
a artista está pronta, agora, para soltar sua imaginação
mais livremente. E isso ela faz com Pintura, um quadro
de 1630, pintado quando a artista contava 37 anos, na plenitude
da sua criatividade. Pintura tem uma relevância especial
dentro do conjunto da obra de Artemisia. Primeiro porque
é uma criação totalmente original, uma invenzione
totalmente sua e também porque este é o único auto-retrato
conhecido que temos dela; se pintou outros (e ela menciona
diversos auto-retratos em cartas endereçadas a seus patronos)
não foram ainda identificados, ou foram perdidos. Sua significação,
além do valor artístico, prende-se ao fato que, ao retratar-se
para a posteridade, a artista escolheu a própria representação
da sua arte, em plena ação, portando pincel e palheta, combinando
pintora, modelo e concepção, unidas num todo coeso. Pintura
encontra-se hoje no Palácio de Kensington, em Londres e
faz parte da coleção da rainha Elizabeth II. Um trocadilho
da época, segundo Jorge Coli (2002:23) costumava separar
as sílabas do seu nome Arte-mi-sia, significando "a arte
seja minha", assinatura digna de figurar em Pintura.
Se compreendemos empoderamento como "acesso e participação
no poder", Artemísia foi uma mulher que teve tudo isso,
tendo vivido entre poderosos do seu tempo, como os Médici
de Florença, privando da amizade de homens da estatura de
Galileo. Todas as adversidades que conheceu soube transformar
em circunstâncias favoráveis, aprendendo a abrir portas
até então fechadas para a mulher. Tendo em vista o exemplo
subversivo que passou para outras mulheres do seu tempo
e mesmo muito além dele, não admira que o seu nome tenha
sido calado, a sua arte incômoda tenha sido velada pelo
silêncio. Aliás, esta prática não foi privilégio seu. Os
estudos feministas têm se dedicado arduamente ao trabalho
de levantar o véu de silêncio que foi colocado sobre tantas
outras artistas do passado, sejam elas pintoras, escritoras
ou compositoras. Pintura, além de todos os seus
significados já mencionados, representa também, talvez,
uma reconciliação, um reencontro consigo mesma. Depois de
retratar tantas heroínas sofredoras, aviltadas, sofridas,
como Suzana, Cleópatra, Maria Madalena e mesmo Judite, parece
ter chegado finalmente a vez de relaxar, esquecer a dor
e festejar com prazer o dom magnífico que compartilha com
o "divino" Michelangelo. Isto não significa, porém, que
nunca mais voltou aos temas heróicos que a imortalizaram.
Ainda pintou uma Lucrecia (1642-43), sob a influência
de Van Dyck, o pintor flamengo que também se encontrava
na corte de Charles I quando ela e Orazio lá estavam cumprindo
uma encomenda. Também é desta época uma Cleópatra,
que hoje se encontra numa coleção particular, em Londres,
além de outras, de igual apelo dramático. É importante ressaltar
que Artemisia nunca conseguiu, ou quis, pintar suas suicidas
no ato de atentarem contra a própria vida. Tanto suas Lucrécias,
como suas Cleópatras são retratadas naqueles momentos mínimos
que antecedem o gesto fatal, quando ainda pode haver um
recuo. Encerrando esta tentativa de resumo da vida e obra
de Artemisia, entrego, mais uma vez, a palavra a Mary D.
Garrard (1999:138) sua maior e melhor estudiosa até então:
"Sobre a extraordinária vida criativa de Artemisia Gentileschi
pouco foi escrito. Só umas trinta e quatro pinturas e vinte
e oito catas restaram para revelar a verdade. Mas, enquanto
as cartas sugerem um orgulho da masculinidade honorária
e da superação pessoal das desvantagens de gênero, as obras
nos dizem algo mais. Com um estilo vigoroso que não está
sujeito a estereótipos de gênero, Artemisia Gentileschi
transmitiu uma intensa identificação de gênero com as mu-
lheres, cujas lutas subterrâneas contra a dominação masculina
são passadas de uma forma visual lúcida. Nas pinturas de
Gentileschi as mulheres são protagonistas convincentes e
he- roínas corajosas, talvez pela primeira vez na história
da arte..." (tradução livre)
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BBC BRASIL.com., 26
de agosto de 2003. Bíblia Sagrada. São Paulo: Editora Paumape
Limitada, s.d.. BOHLEN, Celestine. "A musa misteriosa do
barroco". Rio de Janeiro: Caderno B, JB on line, 1 de junho
de 2003. COLI, Jorge. "Orazio e Artemisia". São Paulo: Caderno
Mais, Folha de São Paulo, 24 de março de 2002, p. 23. GARRARD,
Mary D. Artemísia Gentileschi: the image of the female hero
in Italian Baroque art. Princeton: Princeton University
Press, 1989. GREER, Germaine. The obstacle race: the fortunes
of women painters and their work. New York: Farrar, Straus
and Giroux, 1979, pp 189-207. JAMIS, Rauda. Frida Kahlo.São
Paulo: Martins Fontes, 1987. KAMITA, Rosana Cássia. "O refúgio
da arte". www.amulhernaliteratura.ufsc.br/artigo-rosana.htm.
Arquivo consultado da Internet em 11/05/2003. VREELAND,
Susan. The passion of Artemisia. New York:Penguin Books,2002.
*
Maria
das Vitórias de Lima Rocha, poeta e ensaísta,
nasceu em Recife (PE), em 1946. É autora do livro
de poemas Anos Bissextos (1997). Leciona Literaturas
em Língua Inglesa na Universidade Estadual da Paraíba.