DAS
VANGUARDAS DO 20 EM PORTUGAL
por
Alberto Augusto Miranda
Talvez as vanguardas
do século XX, em Portugal, comecem com Cesário Verde, no século
XIX. Talvez a vanguarda, como hoje, pós-experiências, se clarifica,
seja o homem no esplendor irrestrito da sua verdade. E, no
20, talvez todas elas se plasmem no Húmus (1917, onde é possível "ler" avant-la-lettre o "surrealismo",
o "existencialismo", Orwell e tantos outros) de Raul Brandão.
Os
movimentos europeus tiveram sempre o seu reflexo em Portugal.
Às vezes tinham nomes, hoje de catálogo, como renascimento,
maneirismo, barroquismo, que ocultavam o que a modernidade
rotulou de vanguardas. Porém, na atitude, pouco se distanciavam
do aggiornamento
que os seguidores dos movimentos vanguardistas procuravam.
As
chamadas vanguardas do 20 tiveram sempre decalcadores nos
seus países de origem e fora deles. Há toda uma legião de
seguidistas que se castraram para seguir o que não lhes era
próprio. Como em todos os movimentos, os nomes que hoje permanecem
são significativos só por si ainda que saibamos que, num primeiro
momento, mamaram o leite de manifestos e programas. Veja-se,
por exemplo, em pleno vulcão do "Orpheu" o decalque operado
por Fernando Pessoa sobre uma frase (um verso?) de Marinetti
no manifesto futurista. Onde Marinetti afirma: "um
bólide (...) é mais belo do que a Vitória de Samotrácia",
Pessoa transpõe: "o
binómio de Newton é tão belo como a Vénus de Milo".
Todas
as vanguardas são produtos do romantismo, movimento (vanguardista?)
que persiste há mais de 2 séculos. No último quartel do 19,
o programa de Verlaine e Mallarmé deu a volta a toda a Europa
e granjeou um séquito de filo-simbolistas que, em Portugal,
se plasmou, entre outros, no Oaristos de Eugénio de
Castro. O simbolismo português é, aliás, um alfobre de produções
fónico-semânticas de invulgar qualidade e apresenta-se, apesar
da metrificação, com uma autonomia sonora que se poderia estruturar
no signo Som/Sentido. O programa, a havê-lo, configurar-se-ia
deste modo: para um
Sentido novo, um Som novo. Tal como, de outra forma enunciado,
o programa de Maiakovski no seu sui
generis futurismo: "Não
há Conteúdo novo, sem Forma nova". Para além de Eugénio
de Castro, vejam-se os casos de António Nobre, Gomes Leal,
Ângelo de Lima, Mário Sá-Carneiro e, fechando o arco simbólico,
o ouro musical da palavra poética de Camilo
Pessanha, esse de cuja poesia se poderá dizer que é a
única, na produção portuguesa, onde a Música aparece como
exacto rumor subterrâneo
da palavra. Ângelo
de Lima será até (por muito que os do Orpheu
dele se quisessem apropriar) um caso único, (condensando Gomes
Leal e Eugénio de Castro), o que recria pela re-volta (veja-se,
entre outros, o soneto Mia
Soave).
O
movimento/revista Orpheu, onde se encontram Luís de Montalvor e Almada Negreiros, com
a excepção Mário de Sá-Carneiro, anuncia a conspícua relação
entre criação e publicidade.
Os heterónimos de Pessoa têm aí a sua raiz. De nada espanta
ver versos de Pessoa como slogans publicitários: "O
mito é o nada que é tudo" "Tudo
vale a pena quando a alma não é pequena", "Não
haver Deus é um Deus também" e mais um longo etecetera.
Almada Negreiros é o estereótipo dessa relação, o cromo, como
hoje se diria. Com um surplus de exibicionismo, será na visualidade (e repare-se que o seu
caso pode já ser considerado dentro da chamada cultura visual)
que o seu rasto mais se filia. Coetâneo e fonâmbulo, Santa
Rita Pintor ultrapassa a circunstância modernista, paulista,
futurista, sensacionista e tudo. Inicia, em Portugal, a estética
da dissolução.
Outro
movimento vanguardista assinalável é o movimento surrealista.
De tardia aparição em Portugal, dele ficam apenas dois nomes:
Mário Cesariny
(igualmente o único teórico e permanecedor militante) e António
Maria Lisboa (desaparecido
quase antes de chegar a si).
Um
caso pouco vulgar em Portugal é o de Edmundo Bettencourt,
um poeta e cantor, um bardo que em rigor cantava
o seu canto poético, numa espécie de epopeia reversa, não
havendo fractura de qualidade entre texto e música e cuja
poesia se institui - só por ela própria - como um dos raros
momentos de vanguarda em Portugal.
Inevitavelmente
herdeiros de todas as vanguardas e poéticas ao longo dos milhares
de anos que a poesia já contabiliza, podemos destacar aqueles
poetas que, só pela sua obra, se tornaram vanguardas: Carlos
de Oliveira, Herberto Hélder, Luiza Neto Jorge.
O
"desejo absurdo de sofrer"
(Cesário) parece, mesmo neste XXI, a corda onde os poetas,
introduzido o Romântico, se penduram e formam uma órbita cósmica
sobre a mundanidade. O "desejo", entendido como Acto de Vida,
materializa-se então na poesia, a poesia é a acção do Desejo,
na esteira da sentença de William Blake: "Quem
deseja e não Actua, engendra a Praga".
Esta
pulsão, chamada erradamente masoquista pela terminologia analítica,
terá muito mais a ver com uma resistência à formatação do
que propriamente como indicação de um pensamento elaborado.
Cada neurose - e do poeta não-neurótico não se vislumbram
sinais no Actual - é assim apreendida como resistência
à estrutura psico-social e, no limite, uma resistência ao
Cosmos, ou seja: uma rivalidade com os deuses, ou deus, entretanto
desaparecido, não já para criar uma ordem ou uma harmonia,
como pretendiam os gregos, mas como acto libertador dos constrangimentos,
sob a espora da idéia de o poeta não ser produto ou agente
mimético mas sim criador.
Quanto
mais resistente é o poeta mais fácil se torna a passagem da neurose à psicose
ou, em linguagem mais recente, ao estado de borderline que resume a condição humana pós-shakespeariana. Onde Shakespeare,
no Hamlet, coloca o drama: "Ser Ou não Ser, Eis a Questão", introduzindo a opção dramática pela
conjunção alternativa, o poeta contemporâneo evolui para o
Trágico, numa solução deste tipo: Ser
E Não Ser, Eis
A Questão que configura, no espírito e na prática, a dimensão
bipolar do humano.
O
actual Tempo de Tragédia, Tempo Sem Escolha E Sem Opções,
é designável pela omnipresença do Despojo, da Multi-Origem,
do Não-Sentido e do Nada, do Corpo desarmadilhado de Eros,
da Ausência de Futuro, ou, num só signo unificador: da Verdade,
enquanto objecto poético de recurso, após o revisionismo crítico
das mitologias (caso de Fiama Hasse Pais Brandão), e depois
de o signo Morte e o signo Loucura, com todos os verazes traços
endógenos ou adolescentários (de António José Forte a António
Gancho, de Raul Brandão a Luiza Neto Jorge), terem rondado
obsessivamente a produção poética das últimas décadas.
Sem esquecer a contemporaneidade das propostas poéticas
de Maurice Blanchot, ou a palpitação leve e sócio-desiludida
de Jean Baudrillard, mesmo no actual estádio massivamente
circunvagante do hipertexto - termo inventado por Theodor
Nelson, em 1977 - hoje convulsivamente praticado por via das
leituras/escritas do meio electrónico e pasto salvífico de
muitos materiais escolares, talvez se possa afirmar que, após
a extensa fase desconstruccionista muito teorizada por Jacques
Derrida, mas já formulada por Freud na "morte do pai", a poesia
- se quisermos encontrar uma cobertura generalista - foi tomada
de assalto pelas veleidades verazes, caracterizando-se por
aquilo que podíamos designar como estética
da dissolução.
Uma
das contra-poéticas mais salientes é a rejeição da fantasia
amorosa como ponto de descolagem para o Acto Poético, e a
incorporação das abordagens científicas, da antropobiologia
à quântica, ou seja: a abertura ao sagrado
humano, interior, com a consequente despresença do sagrado
instituído, exterior. Nesse estádio, que de modo nenhum
ignora a metáfora, habitam alguns perseguidores de uma poesia
veraz e não tanto de uma poesia do real.
O que é mais extensivo, no tempo pós-vanguardas (elas próprias não extensas
para lá do grupo de café) é a repetição. Por todo o lado,
nesta Europa caduca, se repete. O individualismo é uma cicatriz
do B.I. Raramente há individualidade, raramente há poesia.
*
Alberto
Augusto Miranda, poeta e ensaísta português,
nasceu em Vila Real, em 1956. Publicou os livros Nojo
(1979), Portografias (1995), Vento (1998) e
Dá-me Com A Noite (2002).
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