Celebro com unção, como não poderia deixar de ser, a tradução para a bela língua portuguesa desses “cantos” dos primitivos Guarani do Guairá: um povo que celebrava a palavra como o vínculo fundamental entre o homem e o universo.
Os cantos que integram o Ayvu rapyta, ou textos míticos dos Mbyá-Guarani do Guairá, pertencem, como a Ilíada, à mais pura tradição oral do homem. O poeta-profeta cego Homero compilou essa monumental obra de versos que se transmitiam de boca em boca desde os tempos mais primitivos do amanhecer da civilização.
Não sabemos há quanto tempo andavam vagando pela língua os cantos do Ayvu rapyta antes que León Cadogan os recebesse como testemunho da gratidão dos Mbyá do Guairá. Ao salvar o indígena Mario Higinio de uma condenação injusta na prisão de Villarrica, Cadogan ganhou a confiança do cacique Pablo Vera, de Yro’ysã, que decidiu revelar-lhe os textos sagrados que eram mantidos cuidadosamente guardados de toda intrusão estrangeira.
Numa serena luz crepuscular, reunidos em volta de uma fogueira, León Cadogan talvez tenha sido o primeiro homem branco que conheceu as profundezas das primeiras belas palavras ou ñe’e ayvu porã tenonde. Curiosamente, elas foram publicadas pela primeira vez no Boletim 227, Antropologia n.º 5, da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, em 1959. Por obra do curso e recurso desta enigmática América Latina, hoje os cantos se transvasam à doçura cadenciosa da língua portuguesa por obra e prodígio da poeta Josely Vianna Baptista.
Tive a oportunidade de ouvir parte dessa tradução numa magnífica leitura realizada por uma jovem atriz durante uma visita minha a São Paulo, e posso testemunhar a cadenciosa eufonia dos cantos no idioma de Camões. Ayvu é, entre os Guarani, a linguagem humana, tanto o som quanto a evocação mental. E no canto Ayvu rapyta o poeta, mago, mistagogo, profeta e celebrante revela que o primeiro entre todos, o Pai
Ñamandu, “com o saber contido em seu ser-de-céu,/ e sob o sol de seu lume criador,/ iluminou-se a fonte da fala/ e fez com que fluísse por seu ser, divinizando-a”. Desde então, a palavra será sagrada para os Mbyá-Guarani por ser parte de Deus. Ultrajá-la com a mentira é uma blasfêmia. Entre os indígenas, dar a palavra é dar a alma. Eles não entendiam como um simples papel traçado com signos e tinta podia ter mais valor que a palavra dada. Ainda hoje, gente do campo considera que a palavra empenhada numa promessa é mais forte que mil documentos.
Na cosmogonia desses cantos a linguagem é uma manifestação do amor divino, surgida de sua reflexão como forma de compartilhar com todas as criaturas uma porção da divindade. Antes de existir a Terra, entre as turvações das trevas primitivas, o verdadeiro Pai dos Karaí, dos Jakaira, dos Tupã, deu-lhes consciência de sua divindade como deuses-patriarcas de suas descendências. E prontamente, como um reflexo de seu coração, compartilhou a divindade com as Mães da raça: Karaí Chy Ete, Jakaira Chy Ete e Tupã Chy Ete. Emanações da divindade primordial, elas se transformaram nos “verdadeiros progenitores das palavras-almas”. E essas palavras, na boca do mburuvicha, chefe temporal, transformavam- -se em canto poético, fundamento ontológico, preceito ético.
Alma e palavra são inseparáveis para os Guarani: o universo mítico está intimamente ligado ao universo poético.
Não sou um etnólogo. Meus amigos Miguel Chase-Sardi (infelizmente já falecido) e Bartomeu Melià têm muito mais autoridade do que eu na exegese dos textos sagrados dos Guarani. Minha visão está estritamente circunscrita ao literário, e ali é exuberante a beleza que nunca está separada do pensamento. Da reflexão, que é uma volta do discurso sobre si mesmo para mergulhar em outros níveis de significação. Vejamos, por exemplo, o Canto II, “A fonte da fala”, a fonte da palavra. Ali o profeta-poeta-mistagogo nos revela que antes de a Terra existir, “O Primeiro Pai Ñamandu / de si foi aflorando a fonte do amor”.
O que parece nos dizer, como que em sonhos, o profeta--xamã? Não está dando um testemunho da prevalência dos sentimentos sobre a solidez contundente do que é material? Primeiro cria o amor e depois a terra onde cultivá-lo. Nestes tempos duros, de relativização dos valores, faz bem lançar um olhar a essas culturas antiquíssimas que a civilização silenciou, talvez sem querer, como parte da estridência de nossos avanços.
Adiante, o xamã-mistagogo diz que “Tendo aflorado, a sós, a fonte da futura fala,/ e desdobrado, a sós, um pouco de amor;/ tendo criado, a sós, um breve som sagrado,/ ele refletiu longamente/ sobre com quem compartilhar a fonte da fala”.
Ele não está nos dizendo, de algum modo, que a linguagem e a reflexão nascem na solidão, mas estão destinadas a ser compartilhadas? E bastam estes dois pequenos apontamentos para assinalar a importância do legado dos antigos Mbyá-Guarani do Guairá e para compreender a valiosa tarefa que Josely Vianna Baptista assumiu ao traduzir aqueles cantos para a doce língua portuguesa. Sei que a tarefa está inconclusa e faço votos de que os organismos interessados na busca dos verdadeiros sedimentos das antigas sabedorias não os deixem sepultados no ossuário do esquecimento. Compartilhamos com o Brasil e a Argentina o maravilhoso legado da cultura guarani. Os mitos fundadores, com seus heróis selváticos, os animais heráldicos da raça, a transmissão dos mistérios, os conceitos instrumentais para a compreensão do mundo misterioso de rios e selvas: tudo está contido nessa revelação que é ao mesmo tempo Gênese, Levítico, Salmos e Provérbios.
A base do verdadeiro diálogo entre os povos está, sem dúvida, no passado que eles compartilham, bem como no futuro que sonham. E esse passado inclui os antigos relatos da terra, os mitos e mistérios. Por isso concelebro que o Brasil, onde nasceu esse resgate através do Boletim de Antropologia da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, com as primeiras publicações de León Cadogan, agora devolva a si mesmo esse precioso tesouro por intermédio da tradução de Josely Vianna Baptista.
Essas palavras pronunciadas por um desconhecido cacique a León Cadogan são nosso patrimônio comum. Espero que ajudem a fortalecer o diálogo longamente preterido entre nossos países.
(Texto de apresentação do livro Roça Barroca, de Josely Vianna Baptista. São Paulo: CosacNaif, 2011)
(*) Nota de Josely Vianna Baptista: Quando Augusto Roa Bastos veio a São Paulo em 2003 para lançar seu Vigília do Almirante, que traduzi e editei por minha pequena editora Mirabilia, ouviu, encantado, trechos da primeira versão que fiz de A primeira Terra, lidos pela atriz Bete Coelho na penumbra do Finnegans Pub. Na manhã seguinte ao lançamento, entreguei a ele os manuscritos do trabalho, e dias depois chegou-me pelo correio este generoso texto. Roa Bastos faleceu em 26 de abril de 2005, em Assunção, aos 88 anos. |