ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

PERFORMANCE COMO LINGUAGEM

 

Auiri Tiago

 

 “o teatro é a poesia que sai do livro e se faz humana” 

Frederico García Lorca

A moderna teoria literária apresenta forte ligação com as crenças políticas e com aqueles valores ideológicos que ela acredita, conscientemente ou não, que sejam uma contextualização da época em que a obra é produzida ou reproduzida.  Nesse campo a Literatura tem o seu valor de nos oferecer uma forma escrita de posicionamentos e críticas a respeito de uma sociedade. Pensando no autor como o criador desse discurso, como diria Focault (1980), as páginas da sua representação mundana na sua obra escrita, não apenas expoe a sua visão conceitual de um determinado enredo em que somos conduzidos a compreender na narrativa, como também exprime uma opinião coletiva em que o autor é inserido (FOUCAULT, 1980, p.101)

A língua é um sistema que reflete e refrata a realidade, porque é utilizada na forma de enunciados. Esses enunciados como diria Wittgenstein não se limitam ao campo da linguagem e nem podem ser reduzidos ao próprio código lingüístico; existe uma forte dependência de convenções sociais de varias ordens que refletem e refratam o contexto histórico, onde o principal personagem é o leitor.

Como sugere Foucalt (1980), esses enunciados, agora discursos, são oferecidos por nós. E através dele, expomos a nossa forma de exemplificar a realidade como um sujeito universal. A noção de sujeito considera os individuos como seres que possuem uma existência particular no mundo, ou seja, na perspectiva em discussão, não são seres humanos individualizados e sim fruto de um todo, “um sujeito discursivo deve ser considerado sempre como um ser social, apreendido em um espaço coletivo” (FERNANDES, 2005. p 33).  Tendo em vista esse pensamento, analisamos e adaptamos a leitura para outros meios de comunicação, que nos leva a entender como somos enfeitiçados pela narrativa do texto, essa ferramenta primordial para compreendermos a cena que nos cerca, uma vez que o narrador é peça chave para a comunicação da sua opinião.

A obra como produção do autor é palco para que as várias representações contidas no texto possam refletir as representações contidas na sua realidade.

“A ação do artista sustentavase como mensagem estética por si mesma e o seu registro residual ou documental representava um epifenômeno”. (COHEN, 2002. p 17).

Essa comunicação passa a se tornar um processo simbólico pelo qual uma realidade é representada e produzida, sempre mantendo uma recuperação transformada, visando que cada autor enxerga o mundo de uma maneira ímpar. Essa comunicação é uma forma simbolica de produzir a realidade.

O reflexo dessa produção também será  diferenciada, e por isso alguns autores buscam caminhos que possam utilizar nas várias possibilidades para a comunicação da escrita, surgindo novos elementos para os questionamentos do autor frente a sua visão da realidade. Usando a idéia de Compagnon que a produção sugere uma imagem do discurso que o mundo real utiliza: a noção de sujeito considera o individuo como seres que possuem uma existência particular no mundo, ou seja, na perspectiva em discussão, não é um ser humano individualizado, “um sujeito discursivo deve ser considerado sempre como um ser social, apreendido em um espaço coletivo” (FERNANDES, 2005. p 33).  

Nessa perspectiva, segundo Wittgenstein, a representação dessa linguagem não se limita a específicos enunciados; a comunicação como forma de linguagem também depende fortemente de convenções sociais de várias ordens, nos levando a crer que a conservação da sociedade no tempo se extende a essas mensagens representadas em forma de comunicação.

A comunicação é central para a interação social e a fala é uma das mais importantes formas de comunicação. Quando falamos permitimos ao outro que conheça nossos pensamentos, sentimentos e necessidades, falar não é simplesmente um ato mecânico de borrar o momento com palavras lindas, esdrúxulas ou técnicas. As palavras limitam o mundo de quem as pronunciam.

Porém, podemos também nos comunicar com o outro escrevendo, cantando, lendo, representando ou mesmo gesticulando. Todas estas formas de comunicação podem ser agrupadas, por alguns estudiosos na nomenclatura de comportamento verbal e constituem uma aquisição recente da espécie humana.

A necessidade de explorar o signo verbal em sua tamanha profundidade e expressão gesticular  tem alguns limites de significação que merecem destaques para uma precisão maior  de uma análise mais detalhada. Por exemplo, “o caráter primordial da arte poética enquanto linguagem é o de disponibilizar para o meio social toda e qualquer espécie de informação” (RANGEL, 2007. p 21). 

A expansão das artes plásticas em direção ao território do invisível, do irrepresentável questionava a sedimentação do pensar artístico e reclamava novos conceitos. A noção de performance respondeu às novas proposições estéticas e ao mesmo tempo sugeriu uma nova perspectiva de leitura da história das artes.  (COHEN, 2002 p.19)

Precisamos estabelecer essa linguagem como nossa percepção do outro. O ser humano possui uma multiplicidade de mensagens e sua totalidade traduz imediatamente as suas manifestações do mundo.

Quando nos remete a Antiguidade, observamos que a passagem do culto ao rito e do rito ao espetáculo é exemplificada em sociedades como India, China, Tibete etc..

Cohen, citando Aguilar: “A performance utiliza uma linguagem de soma: música, dança, poesia, vídeo, teatro de vanguarda, ritual… Na performance o que interessa é apresentar, formalizar o ritual. A cristalização do gesto primordial”. (COHEN, 2002 p. 50)

A produção poética daquele tempo era associada a situações corriqueiras do dia a dia que representassem agradecimento, euforia e/ou pesar. Com o tempo e a realizações de rituais para exemplificar essas necessidades do homem, surge as danças miméticas (compostas por mímica e música). Com a necessidade de fomentar um desejo coletivo do homem, e não mais o individual, surge na civilização Egipcia pequenos ritos que se tornam grandes rituais formalizados baseados nos mitos que representavam a realidade a qual veio a existir. No Egito representações religiosas acerca do Deus Brama também se destacam. Na China, o budismo institui o verdadeiro teatro religioso e por fim na Grécia surge a consolidação das manifestações, em função das homenagens ao deus do vinho, Dioniso ou Baco. Com o passar do tempo as procissões que eram realizadas no final de cada nova safra de uva (ditirambos), foram ficando cada vez mais elaboradas e organizadas as representações dos cantos, danças e cenas das peripécias de Dionísio consolidavam o intermédio entre ator e platéia, trazendo pensamentos e sentimentos à tona, e também a conclusão da encenação. Formando assim uma manifestação artistica hibrida entre a representação e a palavra escrita que sempre andavam juntas. Willian Shakespeare um representante desse espaço, nos popularizou essa alegoria através do soneto - que surgiu como uma espécie de canção ou de letra escrita para música e interpretação.

Essa transformação se opera por intermédio do mito, que sustenta o desenvolvimento da ideologia, assegurando, assim, a perpetuação das tradições e da cultura. A encenação desse processo é responsável por revelar a história da humanidade em suas dobras e fios, que se articulam e justificam sua própria existência.

E em pouco tempo essa forma de expressão foi se tornando popular entre todas as comunidades que sentiam necessidade de se expressar e de transformar a escrita em contexto representativo, como afirma Anne Ubersfeld:

...O sentido no teatro, não somente não preexiste à representação, ao que é concretamente dito, mostrado, mas não se faz sem o espectador.... O texto é da ordem do ilegível e do não sentido; é a prática que constitui, constrói o sentido. Ler o teatro é simplesmente preparar as condições de produção desse sentido. UBERSFELD, 1977:304

É pela linguagem e através das suas infinitas formas de expressão que o ser revela-se, assimilando e compreendendo o mundo ao seu redor. Podemos concluir que uma linguagem em comunhão com o conhecimento possuem, na representação o seu ponto de partida e caminhos, onde um completa o outro incessantemente, manifestando o conhecimento de cada indivíduo.

Nos dias atuais a representação de perfomance é um gênero consolidado, onde a todo momento, surgem inúmeros artistas e escritores dedicando se exclusivamente a esta dorma de atuação estética.

No Brasil, essa comunhão e adequação da perfomance, representou um típico processo de colonização cultural americana ou européia que foram excessivamente valorizadas equivocadamente pelos meios de comunicação e carrregados por décadas. Somente a partir de 1964, com o golpe militar que o teatro e suas perfomances teve o seu processo valorizado no Brasil. É nesse tempo que surge o nosso objeto de pesquisa que por apresentar uma produção ampla, na música, na poesia e no teatro, mesclado entre os principais gênero literários: o drámatico e o épico – representado pelo romance, nos oferece suporte para uma análise de uma narrativa contemporânea. Francisco Buarque de Holanda, conhecido por Chico Buarque.

“É sobretudo nas peças de teatro que a crítica social se apresenta mais incisiva, que o problema do Nacionalismo – mas abrangentemente: do Nacional-Popular- se coloca mais a flor da pele, ou melhor mais a flor do texto” – Adélia Bezerra de Menezes.

O livro e peça escolhido foi Calabar: o elogio a traição escrito por Chico Buarque e Ruy Guerra em 1972 é chave para se pensar o teatral, abordando um momento específico da história do Brasil, onde Domingos Fernandes Calabar, que, no decorrer da guerra para a obtenção do monopólio da produção do açúcar e os seus ideais, toma partido ao lado dos holandeses contra a coroa portuguesa. Esse episódio reflete a traição e a colonização estabelecida nas terras brasileiras no século XVII.

Outro fator importante para se pensar é que a sua produção e encenação se dá em um momento de destaque da realidade brasileira: a ditadura militar (1964-1985).

A ironia está presente em toda a peça, começando pelo título que vincula duas palavras com princípios e significados incompatíveis: “elogio” e “traição”.  O texto de Chico Buarque e Ruy Guerra apresenta se ora em versos, ora em prosa, aparecendo em diálogos prosaicos, cantos, discursos píblicos e declamação. A peça dividida em dois atos, constituem uma sucessão de cenas curtas e descontínuas que são praticamente independente entre si. Podemos observar que essa escolha na estruturação do texto, oferece uma maior abertura com a proposta de construção épica, porém nos dá a impressão de uma falta de organicidade dentro da obra, porém ela é bem trabalhada e nos mostra uma atualiadade da sua escrita profundamente relacionada com o tema vivido na metade dos anos 70. Sob a acusação de estarem traindo a pátria, muitos brasileiros foram exilados, torturados e presos. Ao relativizar uma relação de traição na peça, os autores constróem um ambiente de dúvidas, perguntas e reflexões discutindo quem são os traidores e qual é a pátria traída. Justamente em um conturbado momento ditadorial que viviam na época que a peça foi escrita. Onde esses mesmos questionamentos se aplicavam nas vozes atuais de um povo brasileiro, que semelhante aos nativos do Brasil na metade do século XVII que as riquezas eram dilapidadas entre Portugal e Holanda, não existindo autonomia para a decisão sobre o destino da colônia. Nos víamos no mesmo contexto, porém as riquezas do Brasil nos anos 70 eram sugadas por multinacionais advindo de nações mais ricas que decidiam o destino do país, uma vez que o poder político estava nas mãos dos generais que controlavam as escolhas do país.

O fomento que a obra nos oferece para a discussão e reflexão sobre a realidade brasileira, nos possibilita dialogar com o momento histórico e realidade social de tempos distintos e contextos semelhantes, átraves de uma escrita comunicativa e perfomática. “Tempo e memória costituem o tecido com que se recria a realidade vivida do passado, trazendo-a até os limites do presente” como afirma Raúl Castagnino.

É no instante da criação ficcional dominada pelo impulso básico da negação do tempo que o Autor, ao fugir da contigência histórica, remete juntamente com a obra ao tempo sem duração, ao antitempo, pois originalmente a arte ficcional era o próprio mito, em que a realidade só se configurava mediante a participação do homem no drama da vida. (CASTAGNINO, 1970 p 85).

Contudo nos gêneros e espécies literárias o tempo constitui motivação tanto para o passado quanto para o contemporâneo, principalmente no período de grandes tensões, o escape para as soluções de eliminar ou suavizar o sofrimento que a história e a vida impõe para o ser humano é visivelmente compreensivo na literatura e nas suas perfomances.

 

 

REFERÊNCIAS

 

 

BUARQUE, Chico & GUERRA, Ruy. Calabar: o elogio da traição. Rio de Janeiro:

Civilização Brasileira, 1985.

 

 

CASTAGNINO, Raúl H. Tempo e Expressão Literária. São Paulo: Mestre Jou 1970.

 

 

COHEN, Renato. Performance como Linguagem: criação de um tempo-espaço de experimentação. São Paulo: Perpectiva: 2002.

 

FERNANDES, Cleudemar. Análise do Discurso: reflexões introdutórias.Goiânia: Trilhas Urbanas: 2005.

 

 

FOUCAULT, M. Power/Knowledge: Selected Interviews and others writings 1972-77.Org. C. Gordon. Nova York: Harvester Wheatsheaf: 1980.

 

MENESES, Adélia Bezerra de. Desenho mágico: poesia e política em Chico Buarque. São Paulo: Hucitec, 1982.

 

RANGEL, Vinicius. O doce e o amargo: poesia, estética e política na música popular brasileira. Rio de Janeiro: UFF, 2007.

 

WITTGENSTEIN, Ludwig. Observações filosóficas. São Paulo: Loyola, 2005.

 

 

UBERSFELD, Anne. Lire le Théatre. Paris: Sociales 1977.

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