ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 


O EVANGELHO SEGUNDO JESUS CRISTO
E O EVANGELHO SEGUNDO JUDAS1



Aurora Bernardini



Tanto para o Evangelho segundo Jesus Cristo (José Saramago, 1991) quanto para A Glória ou “O Evangelho segundo Judas”, (Giuseppe Berto, 1980, conhecido no Brasil por ter escrito o roteiro de Anônimo Veneciano e por ter sido o auto de O Mal Obscuro , Ed. 34), os episódios da vida de Cristo, tais são conhecidos por quem foi criado na cultura judaico-cristã, servem de estrutura portante natural aos relatos, cabendo ao leitor não o trabalho de memorizar a seqüência dos fatos para não perder o fio da estória, mas o prazer de reconhecer acontecimentos já sabidos nas circunstâncias estratégicas tecida pelos autores e, o que é mais importante, de se surpreender com a interpretação que é possível dar aos fatos assim dispostos.

Nesse sentido, as diferenças entre os dois evangelhos são poucas, diante das coincidências, mas inclusive devido ao ponto de vista e ao fato do narrador adotado formalmente (em Berto é Judas, em Saramago é uma terceira pessoa), elas existem e são basicamente as que seguem.

Não há praticamente em A Glória indagações quanto aos desígnios de Deus pai, nem descrições ou conjeturas quanto à vida, à culpa e à morte de José, que em Saramago ocupam capítulos inteiros. No que se refere a José, sua atuação é extremamente reduzida, em Berto. Contrariamente a Saramago, tendo ele casado com Maria quando essa já havia concebido ao filho, seu despeito revelou-se ao chamá-lo Jesus e não Emanuel, como tencionara.

Não há passagens amorosas no romance de Berto, nem entre José e Maria, nem entre Jesus e Maria Madalena. A Maria, enquanto mãe, é atribuída a origem do complexo de superioridade do filho que, agindo no subconsciente do jovem, libertaria forças inesperadas.

A condição de Jesus, quanto à família, em Berto, é de orfandade. “Quem me segue e não odeia seu pai e sua mãe, e a mulher e os irmãos, e mesmo sua própria vida, não pode ser meu discípulo”, é um dos preceitos que ele lembra em suas primeiras pregações.

Já em Saramago, Maria tem uma personalidade marcada, não é apenas função da vida do filho.

O que realmente importa na obra dos dois autores são as conclusões a que os evangelhos permitem chegar, não somente enquanto versões de “Vida e Obra de Nosso senhor Jesus Cristo”. São conclusões às vezes tão radicais que levam a discutir as questões mais fundamentais de nossa cultura. É a algumas delas que vamos, agora.

Lembro-me da inquietação existencial constelada de dúvidas de minha geração, que tentava remir mergulhando nas argumentações dos grandes clássicos – Dostoiévski, por exemplo. Para uma delas, de primeira grandeza, o equacionamento, se não propriamente a resposta, vinha do discurso de Ivan Karamázov, resumidamente assim: “Não se trata de entrar aqui no mérito da existência ou não de Deus. Se trata do seguinte: se este é o mundo que Deus permitiu que existisse, eu o recuso, devolvo o bilhete”. Dostoiévski, como se sabe, embora por Ele atormentado (sic) durante a vida inteira, nunca chegou a negar a existência de Deus. Ingmar Bergman, conforme também se sabe, faz com que uma das personagens de O Sétimo Selo assim se manifeste: – “os homens pegaram seus medos e deram-lhes o nome de Deus” – e, mais tarde, em sua entrevista aos Cahiers du Cinema, em 1969, ele mesmo depõe:“Depois que me libertei da idéia de Deus, tudo ficou mais fácil para mim. Agora estou tranqüilo”.

Não há mais grandes valores, pois seus eixos, que são as grandes crenças, com a morte de Deus, deixam de existir”, dizem os pós-estruturalistas, retomando Nietzsche. Deus não existe. Nesse mundo sem Deus, tudo, de fato, é permitido, e o que não o é, não o é graças às leis que agora governam os homens e reprimem a animalidade instintiva à qual a maioria deles se reduziu, ou devido ao medo da culpa, que a minoria continua sentindo, e ao que se costuma dar ainda o nome de “consciência”. Mas o que é esse Medo e o que é essa Culpa que o homem ainda não totalmente bestializados não pode deixar de ter? É aí que entra o livro de Saramago. O Medo e a Culpa (e o medo da culpa) são tão próximos à idéia de um deus virtual que ainda continua condicionando nossa vida, que tanto vale partir - sem tanta especulação e conforme cabe a um evangelista como Jesus Cristo - da premissa que Deus existe sim, ou melhor, que Deus é, tal como o Diabo também é, e um não é sem que seja o outro. Mas, como Jesus descobre que o Diabo não é necessariamente o mal, e que seus papéis ora são invertidos, ora são entrelaçados, mas sempre sendo um a conseqüência do outro? Através do sentimento da Culpa, não a culpa genérica do pecado original, que essa é por demais desgastada, mas de uma culpa concreta que cada um carrega ou herda, fruto de um ato inevitável. Assim se configura o beco sem saída da existência, onde Deus aparenta deixar o homem livre só para poder castigá-lo, onde o homem é, mais do que o instrumento, o joguete de Deus. Se em Dostoiévski o homem resgatava sua culpa com a expiação, aqui a única libertação da culpa é a morte, à qual o próprio filho de Deus aspirava, para que se finde o jogo, aqui está a trama, que com as outras imprevisíveis tramas tende apenas a fazer com Deus continue sendo.

Se as personagens de Dostoiévski, admitindo a possibilidade da existência de Deus separado do mundo que criou, permitem acalentar a idéia do resgate desse mundo de pecado, as de Saramago fundem Deus e o mundo por ele criado, sem possibilidade nem sentido de resgate algum.

Já a posição de Berto, partindo da premissa pós-Dostoiévski (de que a redenção falhou), propõe como Tese um tipo de “religiosidade em negativo”, que vamos agora expor.

... um judeu americano... perguntou a si mesmo e ao Eterno: qual é a filosofia de minha geração? Encontrou, espero, com a ajuda do Eterno, esta resposta singular: Não que Deus morreu, esse ponto já foi superado há muito. Mas o seguinte: ‘a morte é Deus’ ”.

É essa a tese que Judas demonstra ao longo dos capítulos de A Glória, de forma muito natural e conseqüente, visto a morte desempenhar no livro uma série de funções fundamentais.

Em primeiro lugar, representa o pacto secreto entre Jesus e Judas (que o teria escolhido como discípulo para que interviesse na hora em que fosse preciso morrer), que dá tensão à trama e profundidade à figura do apóstolo. Em segundo lugar, representando a morte o fim inevitável de tudo o que é vivo, é o grande trunfo de Deus que, invocado pelo filho, pode adiá-la ou revertê-la, provando assim definitivamente – aos incrédulos – sua natureza. Finalmente, tendo Jesus e Judas cumprido seu papel, a humanidade, contudo, não teve como se beneficiar: “Fiz o que eu pude e Tu também o fizeste: procuraste Tua morte com suficiente dignidade e firmeza, Tua majestade escarnecida, nunca porém rebaixada. Não bastou e, de fato, cá estamos nós ainda, no vale de lágrimas; na obra da redenção algo não funcionou”.

O que resta, em Berto, entretanto, é a esperança (ou fé) que a morte do indivíduo seja a passagem para uma outra vida, e o fim dos tempos, a glória: “...o princípio vital que Tu encarnas é, em última instância, um princípio de morte: a única vida é a vida eterna”.

Mas Judas, como ser humano, debate-se entre acreditar e não acreditar. Diante do silencio de Deus, à espera de que finalmente chegue o tão almejado tempo, “a própria vastidão do pecar gerando a esperança de uma revelação”. A revelação parece chegar com o Batizante João (“Era a potência de Deus que me inflamara sob o olhar do Batizante? Eleição ou orgulho infernal?”), mas ela apenas tremeluz.

A essa incerteza suprema obedece o próprio Cristo (“Se eram um (Ele e o Pai), então por que o desacordo? Ele como queria que acontecesse? De outro modo ou definitivamente não? A angústia era intolerável, a solidão assustadora” ), e não é de se admirar portanto que Ele deseje a morte como libertação e não apenas como resgate da culpa da matança dos inocentes (Saramago, Camus) ou de outras futuras culpas e de outras futuras matanças. “Tua doutrina confusa, contraditória, sempre oscilando entre liberdade e destino, exprimia melhor do que qualquer outra a aspiração inesgotável do gênero humano: ir levando adiante a dor de viver, procurando algo que a torne mais branda ou, melhor ainda, que a faça cessar: amor, justiça, igualdade, mas acima de tudo, a glória, o fim dos tempos, a morte universal”.

Tal como em Saramago, a morte é absorção final e a dissolução de todas as crenças ou descrenças. Mas em Berto, apesar das ambigüidades insolúveis, o tom é de esperança: acreditar em Deus é acreditar na Morte como passagem.

Nota

1 SARAMAGO, José. O Evangelho Segundo Jesus Cristo, Companhia das letras, São Paulo, 1992.
BERTO, GIUSEPPE. La Gloria, Oscar Mondadori, Milão, 1980.

 

 

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Aurora F. Bernardini é professora de pós-graduação em Literatura Russa e Teoria Literária e Literatura Comparada da Universidade de São Paulo (USP).

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