ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

DA COLAGEM SURREALISTA:
MURILO MENDES E JÚLIO CORTÁZAR

 

Bárbara Nayla Pińeiro de Castro Pessôa

 

Uma mesma atitude é exigida daquele que empreende a leitura de La vuelta al día en ochenta mundos (1967),de Júlio Cortázar e de Poliedro (1966),de Murilo Mendes: os pés interessados em incongruências, certa qualidade de passeante.  Se ao fantasiar o objeto livro, segundo Barthes, o escritor sonha com a fabricação de uma superfície sobre a qual se desliza, um volumen [1] , a leitura que apresento aqui é fruto da experiência de ler objetos cuja qualidade intrínseca de fluidez é ferida pela estética do corte, lançando-se contra a própria continuidade que lhe impõe sua física, redimensionada pela inversão de coordenadas lógicas de tempo/espaço, pela intenção de simultaneidade na experiência literária e pela própria heterogeneidade dos textos que nos oferecem um caminho irregular, uma textura de colcha de retalhos.

            Estudar a colagem literária é entender como se mobilizam as práticas de subversão e transgressão do literário em seus vários níveis de constituição. A crítica à autoria, aos gêneros, ao Livro em sua arquitetura coesa e una, e a própria literatura enquanto instituição autônoma através do rompimento com os procedimentos literários tradicionais e a posterior criação de um espaço literário lúdico que utopicamente deseja unir vida e arte são as forças que atravessam e sustentam a frouxa união dos textos que nos propomos ler sob a ótica da colagem surrealista.  La Vuelta al día...é um “almanaque”, como o designa o autor, no qual se mesclam textos críticos sobre arte, poemas, contos, cartas, ensaios e fotografias. Poliedro é uma colagem de textos divididos em setores: o “Setor Microzoo”, um zoológico insólito, o “Setor Microlições das Coisas”, dedicado a objetos que o olho do poeta corta da realidade e carrega de significados, o “Setor a Palavra Circular”, que trata de temas diversos, entre cartas e textos críticos, humorísticos e violentos. Fecha (?) o livro o “Setor Texto Délfico”, série de enigmáticos aforismas de tom oracular. Estas divisões obedecem a uma certa ordem construtiva, que divide e dá uma configuração ao texto. Entretanto, a organização empregada está longe de ser de cunho lógico; se trata, antes, de uma ordem fragmentária e insólita cujo objetivo consistiria, através do “desregramento de todos os sentidos”, no desenvolvimento das faculdades visionárias.

            Ambos os livros possuem o caráter disperso da reunião de fragmentos que caracteriza a colagem literária, revelando sua capacidade de “esticar” tanto a malha do texto, através das incisões na sintaxe e de sua configuração paratática, que ora instala relações possíveis entre o diverso, ora nos oferece um indissolúvel enigma. A colagem, então, se faz desta tensão permanente entre a possibilidade do sentido e do não-sentido. Sua realização encontra-se na encruzilhada formada por estas duas alternativas que se relacionam e constituem seu dilema que não deixa de atingir, assim, toda a questão do surrealismo. Seu problema é, então, também um problema de literatura e de arte, pois suscita a discussão das questões do consciente e do inconsciente, do arbitrário e do deliberado na criação e recepção artísticas.

É dentro deste contexto, que em Poliedro subtrai-se a funcionalidade das coisas, própria do discurso científico, para projetá-las num espaço de anti-funcional, pessoal e revelador. Na contramão da classificação enciclopédica, Murilo joga com o discurso técnico-científico, esvaziando de sentido as descrições latinas usadas nas classificações, aproveitando delas apenas sua matéria sonora na construção do espaço dedicado aos animais: “Segundo registro civil a lagosta é um crustáceo macruro (de cauda longa), antenas cilíndricas, originário da família dos Palinurídeos, portanto, piloto, nauta, guia” (MENDES, 1994, p.993), “A baleia é um cetáceo da dinastia dos Balenídeos de forma quadradoredonda, cor de burro quando foge” (MENDES, 1994, p.996).

Se Murilo ri da classificação cientificamente organizada, é sobre seu avesso que compõe uma outra ordem, na qual cada fragmento desponta uma face do que trata. Através dos processos de colagem, o poeta superpõe camadas de significado que só se multiplicam:

 

O infinito peixe. Alfa e ômega dos bichos. O peixe finito. O peixe fluvial. O peixe marítimo. O peixe redondo. O peixe estilete. O peixe oblongo. O peixe lírico. O peixe dramático. O peixe épico, assaltador de homens e navios (MENDES, 1994, p.987).

 

Seu inventário de coisas, da mesma forma afastadas de sua função utilitária, “corta” a realidade em suas múltiplas possibilidades, revelando-lhes sua face oculta. É ilustrativa, neste sentido, a lição dada ao poeta pelo queijo. Um dos ícones mais fortes da “mineiridade”, o queijo aparece em Poliedro como a primeira idéia de eternidade que recebe Murilo ainda em sua terra natal: “A eternidade nasceu pois para mim redonda e branca, vinda da forma do queijo de Minas que despontara na mesa ainda fresco (...)” (MENDES, 1994, p.1009). A cotidianeidade da brancura e forma do queijo aparece aqui explorada em uma relação direta com os conceitos abstratos de eternidade e a finitude.

Da mesma forma, Cortázar se utiliza parodicamente do almanaque que, enquanto suma do conhecimento com fins didáticos, figura dentro do marco do saber enciclopédico, aquele que através da classificação generalista pretende abarcar um saber total. Textos como “Para hacer bailar una muchacha en camisa”, “Acerca de la manera de viajar de Atenas a Cabo Sunion" e “Aumenta la criminalidad infantil en los Estados Unidos" remetem diretamente à crítica que Cortázar faz a este saber. A criação de uma receita absurda, de um ensaio sobre a memória cujo título parece indicar um texto informativo ou, ainda, um poema intitulado sob a forma de uma notícia de jornal, respectivamente, mostram que o caráter paródico de La Vuelta al día... também se dá pelo esvaziamento da função utilitária de instruir, própria dos almanaques.

Entretanto, permanece o tom humorístico e descompromissado próprio da literatura popular. Este “relaxamento” nasce de um posicionamento frente ao texto e a própria literatura:

 

Todo lo que sigue participa lo más posible (no siempre se puede abandonar un cangrejo cotidiano de cincuenta años) de esa respiración de la esponja en la que continuamente entran y salen peces de recuerdo, alianza fulminantes de tiempos y estados y materias que la seriedad, esa señora demasiado escuchada, consideraría inconciliables. Me divierte pensar este libro y algunos de sus previsibles efectos en la señora aludida, un poco como el cronopio Man Ray pensaba en su plancha con clavos y otros objetos padre cuando afirmaba: “De ninguna manera había que confundirlos con las pretensiones estéticas o el virtuosismo plástico que se espera en general de las obras de arte. Naturalmente –agregaba la lechucita anteojuda pensando en la señora que te dije [senhora Seriedad]-, los visitantes de mi exposición se quedaban perplejos y no se atrevían a divertirse, puesto que una galería de pintura es considerada como un santuario en el que no se bromea con el arte” (CORTÁZAR, 1974, p.9).

 

 Já o crítico David Arrigucci Jr. apontou o papel da diversão (no sentido etimológico de desvio) como revelador da realidade na obra de Cortázar (ARRIGUCCI, 1995). A diversão é, então, esta manobra de desvio de uma ordem pragmática racional em direção a um espaço de realização do imaginário. A própria escolha pela colagem, “que en todo caso ha sido muy divertido escribir”, desvenda aqui o caráter de jogo embutido em sua prática. Esta evoca a experiência infantil mais remota, a do recortar e colar, sugerindo que qualquer um, artista ou não, possa participar de seu jogo. A ludicidade da colagem, a aparência azarosa da contigüidade de seus fragmentos, contribuem para que a noção de diversão venha acompanhada da de arbitrariedade. A configuração da colagem, então, direciona-se a este relaxamento ficcional em que a aparência do casual colabora para encontros fortuitos. O próprio texto, entretanto, deixa transparecer sua organização, revela que por trás dessa casualidade existe a mão preocupada do escritor, “organizando” o casual [2] .

O texto muriliano, por outro lado, mantém as rédeas da organização textual mais firmes. O trabalho com a linguagem, permanentemente colada e paratática, deixa ver a mão do artista conscientemente ativa e sua força na construção do enigma. O arbitrário, entretanto, cumpre ali seu papel, é o informe que mina a estrutura fechada da forma, uma força ativa que desestabiliza e impede o fechamento do texto em uma arquitetura fixa.

Na tentativa de virar do avesso as bases que sustentam a ordem lógico-racional do literário, nossos escritores lançam mão de um acervo afetivo e seleto para a composição de seus livros. As citações funcionam como elementos alheios que dão espessura as múltiplas relações intertextuais que a colagem quer estabelecer. Como uma “espécie de baúl”, a colagem se mostra como escrita que questiona os critérios de autoria e propriedade através do jogo de corte e cola que deixa ver, na maioria das vezes, o processo de deslocamento. A colagem estabelece, assim, uma encenação de seu processo de escrita que alia a criação e a reflexão. O discurso do outro é inserido às vezes mimetizado pela incorporação sem vestígio que faz da citação um furto, às vezes explicitamente retirado de seu contexto e colado em outro ou, ainda, como “falsas citações”, quando humoristicamente Murilo atribui a terceiros seu próprio discurso. Em várias ocasiões, Murilo deixa clara sua intervenção no texto “original” e sua subversão como parte do próprio processo criador num desconcerto constante dos critérios de propriedade e autoria. Um exemplo ilustrativo está em “A tartaruga” em que Murilo re-contextualiza ludicamente a citação livre de Walter Benjamin: “De resto no século XIX, conforme nos revela Walter Benjamin muitos parisienses, entre os quais provavelmente Baudelaire, tinham o hábito de flanar em certas ruas e passagens da cidade arrastando uma tartaruga pelo cordel” (MENDES, 1994, p.1034). Murilo impõe à sua citação a marca de sua escrita, sem deixar claro, ainda que possa ser facilmente inferido no exemplo em questão, onde começa o texto do outro e onde termina o seu. A agressão à noção de autoria aqui é dupla, não só o poeta assume o texto do outro como seu, como faz com que o texto do outro sofra intervenção.

               As referências constantes a outras personalidades e artistas também funcionam como núcleos de significação dentro do texto que se constrói mediante a incorporação do outro. Murilo, em “Microdefinição do autor”, dedica uma seção inteira ao reconhecimento destas figuras:

 

Tenho raiva de Aristóteles, ando à roda com Platão. Sou reconhecido a Jó; aos quatro evangelistas; a São Paulo, a Heráclito de Éfeso, Lao-Tse, Dante, Petrarca, Shakespeare, Cervantes, Montaigne, Camões, Pascal, Quevedo, Lichtenberg, Chamfort, Voltaire, Novalis, Leopardi, Stendhal, Dostoievski, Baudelaire, Mallarmé, Rimbaud, Lautréamont, Nietzsche, Ramakrishna, Proust, Kafka, Klebnicov, André Breton; a Ismael Nery, Machado de Assis, Mário de Andrade, Raul Bopp; Manuel Bandeira, Oswald de Andrade, Guimarães Rosa, João Cabral de Melo Neto (...) (MENDES, 1994, p. 47).

 

Da mesma forma, Cortázar elabora um poema feito à onze mãos. “El hombre se ha hartado de cambiar la tierra” conta com os fragmentos de textos de José Lezama Lima, Roberto Fernández Retamar, Heberto Padilla, Eliseo Diego, Rolando Escardo, Fayad Jamis, Cesar Lopez, Pablo Armando Fernandez, Antón Arrufat e Luis Suardiaz, sendo a de Cortázar a responsável por agrupar as outras vozes encabeçadas pelos títulos "Es tiempo que la tierra cambie al hombre",  "Esa tierra ya se levanta, ya tiene un nombre" e "Con los amigos cambiaremos la relojería del cielo”. Este poema coletivo, bem a gosto do preceito de Lautreamont “a poesia deve ser feita por todos”, revisita o lema recuperado pelos surrealistas à luz da defesa da revolução cubana: “Con los amigos cambiaremos la relojería del cielo”. A citação aparece aqui não como apelo à voz do outro dentro do discurso do autor, mas o próprio discurso do autor se faz pela citação. A referência explícita aos escritores e aos textos de onde foram retirados os fragmentos deixa a mostra o processo de deslocamento a que os textos foram submetidos. A intervenção do escritor parece mínima, seu trabalho se constitui da arte combinatória, descentrando, assim, seu papel na criação pela renúncia à singularidade artística e a propriedade intelectual, requisitos da própria noção de autoria.

O elenco de amigos conclamados nesta colagem é o elenco de poetas cubanos relacionados à revolução cubana tanto de maneira crítica, como o caso ilustrativo do poeta Heberto Padilla ou Antón Arrufat, ou não, como o caso dos poetas Rolando Escardo ou Roberto Fernandez Retamar. É pela presença reiterada de Lezama Lima que se esclarece que a extensão da revolução defendida não se circunscreve somente ao âmbito social, mas quer realizar-se na utopia do hombre nuevo. Dentro desta perspectiva, as forças do desconhecido e do irreal são as que nos convidam a abrir outras portas: “si tan sólo dedicaras unos minutos a sentir lo que te rodea, / si dejaras que el mundo participara/ plenamente de tu mundo,/ si conocieras el hermoso poder de escribir um poema.” (JAMIS, Fayad Apud: CORTÁZAR). A constante da colagem cortazariana é a da poética do absorvente e do esponjoso, do corte e do lugar privilegiado que ocupa o intersticio como “respiro” necessário às entradas e saídas do livro, a sua transitabilidade. Esse movimento camaleônico engendra não só uma estética, mas também uma ética humanista que seria levada a cabo por este hombre nuevo, o homem capaz de viver a poesia e, assim, franquear as barreiras entre imaginário e o vivido.

Dentro deste contexto, a colagem como arte combinatória rompe com os esquemas lógico-racionais de compreensão do tempo e do espaço, as categorias de linearidade e sequencialidade. Cabem na colagem a simultaneidade de tempos e espaços diversos, como podemos observar no texto de Murilo Mendes “Colagens”:

 

Colagens

 

Os blocos vermelhos, desarrumados de Roma. A explosão do ocre. Roma, enorme colagem de estilos.

Muros inspirados em gravuras de Piranesi, onde topamos fragmentos de Césares togados, santos crucificados de cabeça para baixo, mitras desosidas, lápides ornando o tempo, fotografias de La dolce vita e dos peitos da soberba Loren, pedaços de jornal transformados em colagens de Rotella, cartazes gritantes do PCI, do PSI e do PSIUP concitando os cidadões à greve e ao incoformismo; da DC, ao semiconformismo; do MSI à galvanização do fascismo, ahimé! (MENDES, Murilo, 1994, p.1020)

 

Como os signos da cidade que se aglomeram caoticamente, deixando ver o tempo em ruinas, a escrita muriliana se faz do acréscimo, do acúmulo de imagens desordenadas. A ausência de uma coordenação que ligue as diversas partes do texto, tais como as imagens desconexas do muro romano, é a que explicita a colagem como arte que expõe seus próprios artifícios. O discurso despreza aqui os pedestais sobre os quais se ergue o bom estilo, a coesão e a coerência. A sintaxe engendra um discurso em flashes, o mundo que o poeta cola e também sua linguagem estão erodidos. Assim, os materiais com os que o poeta trabalha são materiais “pobres”, já consumidos pela sociedade e pelo tempo. Na contramão dos valores burgueses, interessa-lhe, particularmente, o poder do obsoleto e do inútil:

 

Este é o nosso mundo lacerado, filho do tampão com a ditadura. Da ditadura que de vez em quando toma férias, engordando para voltar à carga. Da predominância do efêmero. Das teorias rapidamente esgotadas. Dos objetos rapidamente consumidos e consumados. Que, desejando recuperá-los, nós colamos e fotomontamos. O mundo onde as coisas, laceradas pela espada do tempo ou do ditador, talvez finalmente COLEM (MENDES, Murilo, 1994, p.1020).

 

O escritor é aquele que coleta os objetos já desgastados e tenta, através do ato de colar, recobrar-lhes valor. Não é à toa que Murilo Mendes atém seu olhar a uma lata de lixo em seu inventário sobre as coisas. Em seu texto “A lata de lixo” o poeta lança sua utopia desde dos restos: “um mundo novo se levantará sobre latas, máquinas de plástico ou não, sobre as ruínas dos textos, as ruínas das ruínas: o novo céu, a nova terra” (MENDES, Murilo, 1994, p.1008).

A colagem recicla, então, não só os materias gastos pela sociedade de consumo, mas também os “fora de moda”. Esta prática se encontra já nas primeiras colagens surrealistas de Max Ernst. É a partir das ilustrações de folhetins do século XIX que Ernst recupera o poder de imagens desgastadas das ilustrações advindas da literatura popular. Este material, majoritamente de baixa resolução, e deste modo, “pobres”, será sempre explorado pelo viés do enigmático a partir da extrema carga dramática que carregam. Também Júlio Cortázar se utiliza das ilustrações dos livros de Júlio Verne como imagens fantásticas de viagens impossíveis encontradas na literatura de seu xará. O poder destas imagens, cujo conteúdo endossa mais uma vez a idéia da viagem e passeio presentes em todo o livro, é evocado e colocado em contraste com outras imagens recicladas como as de uma propaganda de creme de barbear.

No âmbito da linguagem, a sintaxe corroída da colagem coloca em questão a própria escrita. Em “La hoguera donde arde una” a mutilação sintática que se empreende no final de cada verso, abre o espaço a diversas leituras, deixando a cargo do leitor as possibilidades de realização do poema. Subtrair as conjunções que tornam legível o texto é também preservar seu poder de fascínio, a impossibilidade de uma única leitura. Desta forma, a crítica ao autor como criador individual se estabelece tanto na produção de textos cuja intervenção é somente combinatória como na produção de textos que invocam a participação do leitor de forma mais explícita.

Desta maneira, podemos ver que os fragmentos que constituem a prática da colagem não contribuem para o reconhecimento de uma figura total, ao contrário, emancipados, as partes garantem sua independência pese seu poder de estabelecer ou não relações entre si. O gesto crítico contra a configuração de caráter total do livro mostra uma outra via de ordenação da obra de arte, já livre de um discurso regente que organiza e submete os outros. O princípio da colagem permite tanto a anexação de fragmentos como a subtração, sem que estas operações afetem de maneira significativa sua constituição, pois suas partes não são regidas por uma lógica somatória. A analogia poética é a lei que sustenta as bases de um texto que se infla e se expande, já que

 

A analogia poética tem em comum com a analogia mística o fato de transgredir as leis da dedução para fazer que o espírito apreenda a interdepndência de dois objetos do pensamento situados sobre planos diferentes, entre os quais o funcionamento lógico do espírito não é apto a lançar nenhuma ponte e se opõe a que qualquer espécie de ponte seja lançada (BRETON, 1975, p.33 apud: WILLER, 2009, p.306).

 

O trabalho da colagem está na perigosa e escorregadia instalação de uma ponte entre o díssimil, o trabalho da busca de uma identidade profunda que não se rende a uma igualdade, mas faz-se na diferença. Aqui, a proposta da colagem é também paradoxal, beira ao apagamento das diferenças, mas precisa justamente delas para a “explosão” de uma nova realidade. A reversibilidade possível através da analogia sustenta um universo plástico, maleável, cujo movimento é o da metamorfose. Chegamos, então, ao ponto de máxima carga utópica da prática da colagem, a utopia da suspensão das diferenças para o qual o mundo exterior e o interior, o real e o irreal não são vistos mais como pares opostos. Por trás da duplicidade, existe sempre uma ânsia de superação das antinomias que se justifica na presença da analogia como móvel da criação na colagem e faz com que sua estética deixe entrever a proposta poética de ambos os autores. Atravessados pelo surrealismo, os projetos estéticos em questão caminham numa mesma direção, desde as negativas empregadas pode-se entrever a edificação de novas perspectivas artísticas, o que se constrói sobre este terreno devastado. A colagem reúne em sua heterogeneidade os esforços de construção de uma realidade convergente e aberta, capaz de integrar em si o caráter dual da realidade e construir, assim, uma vivência poética, uma práxis que nunca perca de vista a experiência cotidiana.

 

Notas Explicativas:

 

[1] Barthes, ao propor-nos uma tipologia do livro, substitui a palavra genérica livro, a qual ele atribuirá um conceito específico, por volumen. A etimologia da palavra, derivada de volvere, “girar”, designa, assim, “um    rolo, uma dobra”, e, por extensão, “a reunião dos cadernos, brochados ou encadernados, ligados uns aos outros e compondo um livro” (BARTHES, p.105).

[2] “Cuando uno mira simplemente un libro ilustrado, no se imagina lo que representa como esfuerzo de ajuste, de búsqueda de ritmos y equilibrios, para no hablar de la corrección de pruebas, siempre llena de emboscadas para el que, por ser ‘el padre de la criatura’, tiene tendencia a fijarse en el sentido más que en las palabras como objetos tipográficos [...]” (CORTÁZAR, Júlio, 2000, p.1359 apud: RIOBÓ, 2008, p.156).

 

 

Referências Bibliográficas:

 

ARRIGUCCI JUNIOR, Davi. O escorpião encalacrado. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

 

BARTHES, Roland. A preparação do romance. Vol.II São Paulo: Martins Fontes, 2005.

 

BRETON, André. Manifestos do Surrealismo. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2001.

 

CORTÁZAR, Julio. La vuelta al día en ochenta mundos. (tomo I e II) Madrid: Siglo XXI, 1974.

 

LIMA, Sergio. A aventura surrealista. Campinas: Editora da Unicamp, São Paulo: UNESP, Rio de Janeiro: Vozes, 1995.

 

MENDES, Murilo. Poliedro”. In: ______Poesia completa e prosa. Org. Luciana Stegagno Picchio. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.

 

RIOBÓ, Maria Victoria, coord. Borges/Cortázar: penúltimas lecturas. Buenos Aires: Circeto, 2007.

 

WILLER, Cláudio. Surrealismo: Poesia e Poética. In: GUINSBURG, J. LEINER, Sheila.(Orgs.) O Surrealismo. São Paulo: Perspectiva, 2008.

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