1.Introdução
Por volta de 1935, Jorge Luis Borges publica A aproximação a Almotásim, narrativa que revoluciona a literatura no que põe em xeque as frágeis delimitações entre os gêneros literários. Como comenta o próprio Borges, o texto
“é uma burla e também um pseudo-ensaio. Dá a entender que é a resenha de um livro publicado originalmente em Bombaim três anos antes. Dotei a falsa segunda edição com um editor real, Victor Gollancz e um prefácio de um escritor real, Dorothy L. Sayers. Mas o autor e o livro eram de minha inteira invenção. Dei o enredo e os detalhes de alguns capítulos - tomando-os emprestados de Kipling e encaixando o místico persa do século XII, Farid ud-Din Attar— e então cuidadosamente apontei seus defeitos. A história apareceu no ano seguinte num volume de meus ensaios, História da Eternidade, enterrada no fim do livro junto com um artigo sobre a Arte do Insulto. Aqueles que leram a A aproximação a Almotásim levaram-na a sério e um dos meus amigos chegou a encomendar um exemplar em Londres” (1993, p. 104-105, grifo nosso).
Esse novo gênero narrativo, que cria uma forte tensão entre documentação e criação, entre ficção e realidade, possui pelo menos um ilustre antecedente: Marcel Schwob. No famoso livro Vidas Imaginárias (1896), o escritor francês ficcionaliza a vida de ilustres personagens da História. Em Vidas Imaginárias, “os protagonistas são reais; os fatos podem ser fabulosos e não poucas vezes fantásticos. O sabor peculiar desse volume está nesse vaivém” (BORGES, 1999, p. 571). Ao escritor francês falta, no entanto, aquela refinada ironia que encontramos tão frequentemente no argentino. A ironia borgiana, aliás, como veremos mais adiante, é uma das marcas daquilo que Mikhail Bakhtin chamou de estilização paródica (1988, p. 161). A bem da verdade, caso queiramos nos utilizar do engenhoso paradoxo criado por Borges no ensaio Kafka e sus precursores, podemos afirmar que Schwob nada mais é que um borgiano antes de Borges, visto que foi apenas após o advento do escritor argentino que a crítica lançou um novo olhar sobre a obra do autor francês. Em outras palavras: a obra borgiana lançou luz sobre a schwobiana.
Para que possamos entender com clareza o argumento de A aproximação a Almotásim, faz-se necessária a apresentação de alguns vetores do pensamento metafísico de Jorge Luis Borges. Num ensaio intitulado “Del culto de los libros”, pertencente ao livro Otras Inquisiciones, Borges, inspirado em Mallarmé e Bloy, nos expõe sua ideia do “universo como livro”. Mais que uma prodigiosa imagem, a concepção borgiana revela sua engenhosa Weltanschauung: “el mundo, sugún Mallarmé, existe para um livro; según Bloy, somos versículos o palabras o letras de um libro mágico, y esse livro incesante es la única cosa que hay en el mundo: es, mejor dicho, el mundo” (BORGES, 1974, p. 716).
Tal metáfora do universo com um livro é também uma metáfora do próprio fazer literário. Como bem observou Kristeva “todo texto se constrói como mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de um outro texto. Em lugar da noção de intersubjetividade, instala-se a de intertextualidade e a linguagem poética lê-se pelo menos como dupla” (1974, p.64). Ao afirmar que “somos versículos o palabras o letras de um libro mágico, y esse livro incesante es la única cosa que hay en el mundo: es, mejor dicho, el mundo”, Borges (idem, ibidem) nos dá a entender que não é apenas a realidade que enfoma a literatura, pois aquela é igualmente enformada por esta última. A literatura é inseparável da realidade, visto que influi decisivamente sobre o real. Neste sentido, a realidade e ficção fundem-se, pois são verso e reverso da mesma moeda. Do mesmo modo, podemos dizer que, de uma certa maneira, todos os livros são o mesmo livro, visto que “todo texto é absorção e transformação de um outro texto” (KRISTEVA, idem, ibidem). E é precisamente esse infinito jogo de espelhos da composição em abismo que analisaremos a seguir.
2. A mise en abybe
No âmbito da literatura e das artes plásticas, a mise en abyme consiste num processo metalinguístico de duplicação especular que procura desnudar o processo de criação artística. Foi Victor Hugo, ao estudar a obra de Shakespeare, o primeiro a observar essa técnica. Hugo notou que, com exceção de Romeu e Julieta e Macbeth, em todas as peças do autor de Hamlet encontramos “uma dupla ação que atravessa o drama e o reflete numa dimensão menor. Ao lado de uma tempestade no Atlântico, por exemplo, uma tempestade num copo d’água.” (HUGO apud COUTINHO, 1988, p. 161). Foi André Gide, no entanto, o primeiro a teorizar de maneira mais consistente a respeito desse método de composição. Ao comentar um quadro de Velásquez, Gide afirma que gosta “de encontrar numa obra o seu próprio tema transposto ao nível dos personagens. Nada esclarece nem estabelece melhor e com maior segurança todas as proporções do conjunto. Penso em certos quadros de Memling ou de Quentin Mertzys, em que um pequeno e sombrio espelho reflete o interior do quarto onde se desnvolve a cena pintada. O mesmo se dá (com alguma diferença) no quadro As Meninas, de Velásquez. Em fim, em literatura, no Hamlet a cena da comédia” (apud COUTINHO, 1988, p.162). E em seu Diáriode 1893, Gide compara a técnica de construção em abismo à heráldica: é como “o procedimento de brasão, que consiste em colocar em abismo um segundo brasão dentro do primeiro” (idem, ibidem).
Las Ninãs, de Velásquez. No primeiro plano, observamos o próprio pintor com um pincel diante de um quadro. Observe que a imagem do pintor parece fitar o pintor real. Ao fundo, vemos um espelho que reflete a imagem de um casal situado fora do nosso campo de visão. Essa simbiose da criatura (arte) com o criador (artista) revela que realidade e ficção são verso e reverso da mesma moeda.
Drawing Hands,de M.C. Escher. Esta tela é uma perfeita metáfora da relação arte x mundo. Há uma completa fusão entre arte e artista, entre ficção e realidade. Observe as mãos em alto relevo, como que a sugerir que o real é, a um só tempo, filho e pai da arte.
A pseudo-resenha borgiana que gira em torno de uma narrativa inexistente (um romance policial) nada mais é que uma vertiginosa mise en abyme. Na narrativa de Jorge Luis Borges, essa composição em abismo chega ao paroxismo nesse trecho:
“Entende-se ser honroso que um livro atual derive de um antigo: já que a ninguém agrada (como disse Johnson) nada dever a seus contemporâneos. Os repetidos mas insignificantes contatos do Ulisses de Joyce com a Odisséia homérica continuam escutando - nunca saberei por que - a atordoada admiração da crítica; os do romance de Bahadur com o venerado Colóquio dos pássaros de Farid ud-din Attar conhecem o não menos misterioso aplauso de Londres, e ainda de Alahabad e Calcutá. Outras derivações não faltam. Certo investigador enumerou algumas analogias da primeira cena do romance com a narrativa de Kipling On the City Wall; Bahadur as admite, mas alega que seria muito anormal que duas pinturas da décima noite de muharram não coincidissem... Eliot, com mais justiça, recorda os setenta cantos da incompleta alegoria The Faërie Queene, nos quais não aparece uma única vez a heroína, Gloriana - como salienta uma censura de Richard William Church (Spencer, 1879). Eu, com toda humildade, assinalo um precursor distante e possível: o cabalista de Jerusalém, Isaac Luria, que no século XVI propagou que o espírito de um antepassado ou mestre pode entrar na alma de um infeliz, para confortá-lo ou instruí-lo. Chama-se Ibbür essa variedade da metempsicose” (BORGES, 1982, p. 103-104).
É interessante observar que a myse en abyme, no caso de A Aproximação a Almotásim, depende inteiramente do horizonte cultural e temporal em que está situado o leitor/receptor, ou seja, depende inteiramente do co-texto. Sabe-se que o escritor argentino Adolfo Bioy Casares, ludibriado pelo truque borgiano, chegou mesmo a encomendar, no ano de 1935 (ano em que foi publicada a pseudo-resenha) o inexistente romance do inexistente escritor Bahadur a uma livraria de Londres. Para Casares, portanto, o texto de Borges foi lido como uma resenha, inclusive porque foi publicado, pela primeira vez, num livro de ensaios, intitulado História da Eternidade. Suponhamos, porém (o que não é nada inverossímil) que Victor Gollancz (pessoa real a quem Borges atribuiu a edição do pseudo-romance) tivesse lido o texto de Borges no mesmo ano que Casares, ou seja, em 1935. Ora, é evidente que Gollancz o teria lido como uma ficção. Só sete anos após a primeira publicação, como nos informa o próprio Borges (1993, p. 105) é que a o texto A Aproximação a Almotásim saiu num volume de narrativas ficcionais, intitulado O Jardim dos Caminhos que se Bifurcam. Durante sete anos, portanto, quase todos que tiveram contato com o engenhoso texto borgiano o leram como uma mera resenha de um romance (Borges, propositadamente, aponta os muitas falhas do romance— brilhante estratagema para que os leitores da resenha não fizessem uma pesquisa ou mesmo encomendassem o romance inexistente—). Só a partir de 1942, grosso modo, o romance de Bahadur deixa de existir, transformando-se numa ficção. E é só a partir de então, portanto, que a ‘resenha’ A Aproximação a Almotásim também deixa de ser resenha, tornando-se uma narrativa ficcional. O mise in abyme (a narrativa ficcional dentro de uma narrativa ficcional só começa a existir, efetivamente, a partir de 1942 — isto é, para todos aqueles que tiveram acesso ao livro O Jardim dos Caminhos que se Bifurcam, pois para os leitores que só entraram em contato com a primeira edição de História da Eternidade,o romance de Bahadur continuou a existir—). Desta maneira, concluímos que a narrativa em análise deve ser estudada, também, sob o viés da estética da recepção.
3. A estilização paródica
Expressão cunhada por Bakhtin (1988, p. 161), a estilização paródica é, como próprio nome já diz, uma espécie de estilização. Segundo Bakhtin (idem, p.159), estilizar é representar literariamente o estilo de outrem. Quando essa representação literária do estilo alheio perverte o discurso que representa, temos a estilização paródica (ibidem, 160). Bakhtin propõe uma diferenciação interessante entre estilização paródica e paródia retórica. Segundo o teórico russo (ibidem, 161), enquanto a paródia retórica é uma desvio que possui como marca a imitação caricata e burlesca do estilo de outrem (operando, assim, uma destruição apenas superficial e elementar do discurso alheio), a estilização paródica impõe-se como um canto paralelo (para = ao lado de + ode = canto), de contracanto (FÁVERO, 1999, p.7). Para Bakhtin (idem, ibidem), toda paródia, quando bem realizada, é, em verdade, uma estilização paródica : “para que ela seja substancial e produtiva, a paródia deve ser precisamente uma estilização paródica, isto é, deve recriar a linguagem parodiada como um todo substancial, que possui lógica interna e que revela um mundo especial indissoluvelmente ligado à linguagem parodiada.”
A sui generis narrativa A aproximação a Almotásim pode ser interpretada como uma estilização paródica do jargão da crítica. Ao empreender uma mímesis quase especular do discurso padrão, o narrador, distanciando-se da imitação caricata, instaura um contracanto que expõe as armadilhas retóricas embutidas no discurso oficial. Com a finalidade de fugir às tintas fortes da imitação caricata, Borges lança mão de alguns estratagemas que reforçam a verossililhança, a fim de que sua burla não seja facilmente percebida:
1. O texto é composto, também, por entes reais (como o editor Victor Gollancz).
2. O narrador atribui comentários críticos (inventados por ele próprio) sobre o pseudo-romance a críticos reais, tais como Philip Guedalla e Cecil Roberts. As citações, inclusive, aparecem entre aspas.
3. Há uma exposição de detalhes minuciosos sobre o livro, que vão desde o número exato de exemplares impressos ao tipo de papel utilizado na primeira edição.
4. O texto mimetiza de maneira especular o estilo padrão da resenha crítica, contendo uma exposição do argumento do pseudo-romance seguida de uma breve análise da estrutura da narrativa.
5. A pseudo-resenha aparece publicada, pela primeira vez, no livro História da Eternidade, que é um livro de ensaios.
A estilização paródica realizada por Borges é tão sutil que só é observada em alguns trechos da pseudo-resenha, onde a ironia ao jargão da crítica se deixa entrever: “assim acaba o segundo capítulo da obra. ImpossíveI traçar as péripécias dos dezenove restantes” (BORGES, 1982, p. 101).
Em A Aproximação a Almotásim, o que ocorre é um esvaziamento do discurso institucionalizado através da estilização paródica. O crítico norte-americano Harold Bloom classifica, mutatis mutandis, essa espécie de estilização como Kenosis.
3.1 A estilização paródica como Kenosis
Termo resgatado e ressemantizado por Harold Bloom em A Angústia da Influência, a palavra kenosis vem de São Paulo, o apóstolo, quando este descreve a humilhação de Cristo ao passar de divindade a homem. “No poeta forte, a kenosis é um ato revisionário, através do qual tem lugar um esvaziamento ou vazante em relação ao precursor. Sua postura parece ser a do precursor, mas o significado dessa postura é anulado; ela sofre um esvaziamento de prioridade que é uma espécie de qualidade divina” (BLOOM, 1991, p.103). Ora, o que é a estilização paródica, ao fim e ao cabo, senão esse ato revisionário, essa tentativa de esvaziamento do discurso alheio mediante um contracanto? É certo que Harold Bloom criou a categoria tendo em vista as relações intertextuais existentes no âmbito do texto poético, mas é igualmente certo que o próprio Bloom as utilizou para analisar desde as tragédias shakespeareanas aos romances de Dostoiévski, nos quais enxerga, por exemplo, a influência do autor de Macbeth. Ademais, o crítico norte-americano não diferencia o prosador forte e criativo do poeta, pois entende que poeta é todo aquele que pratica a poiesis.
O esvaziamento do discurso padrão da crítica por Jorge Luis Borges é executado através de um recurso que desconstrói as armadilhas retóricas do discurso do outro: a ironia. A Kenosis provoca uma descontinuidade libertadora que, de outra maneira, não seria possível (BLOOM, 1991, p.125). Em outras palavras, a superação do 1º texto pelo 2º texto só é possível graças à revisitação das vigas-mestras do 1º texto – e essa fórmula é seguida a risca por Borges. Isto caracteriza a Kenosis. Pois a Kenosis, segundo Bloom (1991, p. 122), é uma espécie perversão do 1º texto, mas perversão no sentido etimológico do termo, ou seja, no sentido de retorno pelo caminho errado, desvio.
Ao mesmo tempo, esse esvaziamento do texto parodiado pode ser entendido igualmente como uma espécie de dessacralização. No livro A cultura popular da Idade Média e no Renascimento, Bakhtin cita São João Crisóstomo como sendo o que declarou que “as burlas e o riso não provêm de Deus, mas são uma emanação do diabo”, sendo, portanto, o dever do cristão “conservar uma seriedade constante, o arrependimento e a dor em expiação dos seus pecados” (BAKHTIN, 2002, p. 63). Assim sendo, podemos afirmar que Borges opera a dessacralização através da burla (pseudo-resenha) e do riso (ironia).
Borges esvazia o próprio discurso no que tece comentários críticos acerca do vazio (ou seja, acerca de um romance inexistente). Daí o eminente ensaísta uruguaio Emir Monegal afirmar que, para o escritor argentino, “todo julgamento é relativo, e a crítica é também uma atividade tão imaginária quanto a ficção ou a poesia” (1980, p. 80), decretando, assim, “a impossibilidade final de uma estética” (idem, ibidem). Foi seguindo esse caminho que Borges formulou (com trinta anos de antecedência) o lúcido comentário de Jean Starobinski, segundo o qual “a crítica não pode permanecer dentro dos limites de um saber verificável; ela deve fazer sua própria obra, correndo os riscos da obra” (apud ROGER, 2002, p. 7).
REFERÊNCIAS
BORGES, Jorge L. “Otras Inquisiciones”. In: Jorge Luis Borges: Obras Completas. Buenos Aires: Emecé Editores, 1974.
_________. “Biblioteca Pessoal”. In: Obras Completas de Jorge Luis Borges (volume IV). São Paulo: Editora Globo, 1999.
_________. “A Aproximação a Almotásim”. In: História da Eternidade. Trad. Carmen Cirne Lima. Rio de Janeiro: Globo, 1982.
_________Elogio da sombra; Um ensaio autobiográfico. Tradução [respectivamente, de] Calos Nejar e Alfredo Jacques [e de] Maria da Glória Bordini. 6. ed. São Paulo: Globo, 1993.
BAKHTIN, Mikhail. Questões de Literatura e de Estética. São Paulo: Hucitec, 1998 .
______. A cultura popular da Idade Média e no Renascimento. 5. ed. São Paulo:
Hucitec: Annablume, 2002.
BLOOM, Harold.A Angústia da Influência .Rio de Janeiro: Imago, 1991.
COUTINHO, Edilberto. “A criação ‘em abismo’ na ficção de Gilberto Freyre”. In: I Congresso de Literatura Nordestina /ANAIS. Recife, Editora Universitária, 1988.
FÁVERO, Leonor Lopes. “Paródia e dialogismo”. In: BARROS, Diana Luz Pessoa de; FIORIN, José Luiz (Orgs). Dialogismo, polifonia, intertextualidade: Em torno de Bakhtin. São Paulo:Edusp, 1999.
KRISTEVA, Julia. Introdução à Semanálise. São Paulo: Perspectiva, 1974.
MONEGAL, Emir R. Borges: uma poética da leitura. Perspectiva, São Paulo, 1980.
ROGER, Jérôme. A Crítica Literária. Rio de Janeiro: Difel, 2002.
NOTAS
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