Em seu ensaio A arte como procedimento, Victor Chklovski apresenta um confronto entre a linguagem literária e a linguagem cotidiana, apontando como principal diferença entre elas seu caráter de singularização e automatização, respectivamente.
Ao iniciar o texto, o autor discute a afirmação “a arte é pensar por imagens” e procura destacar o pensamento de Potebnia. Para esse filólogo, a imagem é mais simples do que aquilo que ela representa e possibilita uma economia das energias mentais exatamente por ser mais familiar para o leitor do que aquilo que ela explica. Potebnia chega, então, à conclusão de que “a poesia = a imagem” (apud Chklovski, 1973, p. 41), o que serviu de fundamento para a teoria que seduziu os simbolistas por afirmar que a imagem é um símbolo e se torna “um predicado constante para sujeitos diferentes”. (Chklovski, 1973, p. 41) Mas Chklovski afirma que Potebnia somente chegou a essa conclusão por não ter distinguido a linguagem poética da linguagem prosaica e que tal teoria era menos contraditória quando utilizada na análise de fábulas.
Segundo Chklovski, há dois tipos de imagem: uma funciona como um caminho mais facilitado, mais prático de pensar e a outra seria uma maneira de reforçar as impressões. No primeiro caso, tem-se a imagem prosaica (mais relacionada à metonímia) e, no segundo caso, a imagem poética (mais metafórica). Assim, a lei da economia das energias criativas aplica-se somente à língua quotidiana, embora tenha sido estendida à língua poética, equivocadamente, exatamente por não se ter feito distinção entre esses dois tipos de linguagem. É necessário, então, traçar as diferenças entre os dois tipos de linguagem para que se possa tratar das regras de economia e despesa da língua poética considerando-a em seu próprio campo e não em relação à língua prosaica.
Para Chklovski, o discurso prosaico sofre um processo de automatização em que “os objetos são substituídos por símbolos”. (Chklovski, 1973, p. 44) Essa automatização é facilmente percebida na língua quotidiana através de frases inacabadas e de palavras que sofrem apócopes ou síncopes ao ser pronunciadas, a percepção do objeto é superficial e o que se pretende é o seu reconhecimento. O discurso cotidiano procura uma rapidez na comunicação, seus objetos apresentam-se “empacotados” para que o tempo de percepção seja o mínimo possível e, dessa forma, há uma economia das forças perceptivas.
Já a arte pretende estabelecer uma nova percepção do objeto através de um procedimento de singularização. Há, por isso, a tentativa de tornar as formas opacas, de aumentar a dificuldade de entendimento para que se alcance uma maior duração da percepção, pois “a arte é um meio de experimentar o devir do objeto, o que já é ‘passado’ não importa para a arte”. (Chklovski,1973, p. 45)
Esse processo de liberação do automatismo pode ser alcançado de diversas formas, mas, em seu artigo, Chklovski ressalta apenas um desses meios, aquele que era utilizado de modo constante por L. Tolstoi. Esse autor, em seu processo de singularização, não nomeia simplesmente os objetos, mas os descreve como se os tivesse visto pela primeira vez, da mesma forma, trata cada acontecimento como se fosse inédito, como se nunca tivesse ocorrido e, desse modo, imprime um ar inaugural à sua escrita. Além disso, Tolstoi via os objetos fora de seu contexto natural, utilizando, em lugar das palavras costumeiras, vocábulos que correspondiam a outros elementos.
Para Chklovski, “sempre que há imagem, há singularização” (Chklovski, 1973, p. 50) e a imagem poética tem como objetivo não facilitar a compreensão, mas particularizar a percepção do objeto, criando uma visão e não apenas um reconhecimento. E, segundo ele, a arte erótica permite uma melhor observação das funções da imagem, pois muitas vezes os objetos eróticos são representados de maneira velada com a finalidade de afastá-los da compreensão imediata ou facilitada. Mas a singularização não está somente relacionada ao desvendamento dos eufemismos e figuras eróticas, antes, é a base de todas as adivinhações. Toda descrição que confere a determinado objeto palavras que não lhe são usualmente atribuídas é, por si só, uma adivinhação.
Ao examinar a língua poética, Chklovski percebe que “o caráter estético se revela sempre pelos mesmos signos” (Chklovski, 1973, p. 54) e que, na poesia, a linguagem é obscura, difícil e repleta de obstáculos. Mas nada disso impede que haja uma aproximação entre a língua prosaica e a poética desde que não haja perda e nem se contradiga a lei da dificuldade. Assim, o autor define a prosa como um discurso facilitado, enquanto a poesia é um “discurso elaborado”. (Chklovski, 1973, p. 55)
Em A arte como procedimento, V. Chklovski diferencia o discurso poético do prosaico, através do estabelecimento das disparidades entre os objetivos e imagens criadas por cada um desses discursos. O autor esclarece que, durante anos (e talvez ainda hoje), houve uma tentativa de generalização e aproximação das finalidades desses dois meios de expressão que, somente quando tratados nos limites de suas peculiaridades, podem ser efetivamente compreendidos. Ao tratar as diferenças entre a língua prosaica e a língua poética, o ensaio apresenta dois processos que são a chave para a compreensão e distinção das funções das imagens por elas criadas: os processos de automatização e singularização. Assim, por meio dos exemplos citados, consegue-se perceber que, para Chklovski, a imagem do discurso quotidiano é facilitadora e procura encurtar o caminho da percepção, enquanto, na poesia, a imagem é provocadora, procura estender ao máximo a percepção e acaba por criar um discurso efetivamente instigante e, por isso, elaborado.
Bibliografia
CHKLOVSKI, Victor. A arte como procedimento. In: TOLEDO, Dionísio de (org.). Teoria da literatura: formalistas russos. Porto Alegre: Globo, 1973. |