ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

A PRESENÇA-AUSÊNCIA DE MIGUILIM-MIGUEL, O ESTRANHO CONHECIDO DO BURITI BOM: ANTINOMIAS INDISSOLÚVEIS DO NARRAR

 

 

Brenno Carriço

 

 

Denn dies war an den Reisen sonderbar: daß ihre ferne Welt nicht immer fremd und daß die Sehnsucht, die sie in mir weckte, nicht immer eine lockende ins Unbekannte, vielmehr bisweilen jene lindere nach einer Rückkehr ins Zuhause war.

 (Walter Benjamin)[1]

 

“Existir e viajar se confundem” (1969, p. 175). Esse é um dos motes de que se vale Benedito Nunes (1929-2011), em sua análise seminal[2] acerca do tema da viagem em Guimarães Rosa (1908-1967), e, igualmente, será uma de nossas vias argumentativas para a interpretação de “Buriti”, obra a qual integra o ciclo de novelas de Corpo de baile (1956), e que, mesmo sem ser mencionada pelo crítico paraense em seu estudo sobre o assunto, tem em algumas de suas asserções aquilo que nos interessa para a discussão, sobretudo, dos liames temporais dessa tessitura literária, fios soltos que atam estória e narração em um todo de grande complexidade.

 

Logo, a questão de que nos ocuparemos aqui é essa da correlação da viagem com o narrar enquanto vivência constitutiva da subjetividade, elaborada como matéria ficcional a partir do ato de rememoração, que nada mais é do que a “retomada salvadora pela palavra de um passado que, sem isso, desapareceria no silêncio e no esquecimento” (GAGNEBIN, 2011, p. 3), olvidar esse que não é simples perda de memória, senão recorte que se opõe ao infinito da lembrança[3] . E é aí que reside o cerne da narração de Miguilim-Miguel, cuja urdidura se entrecruza com a da personagem Leandra para produzir, justamente pela convergência de seus pontos de vista, efeitos poéticos de sentido que denotam uma espécie de lógica circunstancial anterior a qualquer ato humano.

 

Tanto é assim que já na cena de abertura de “Buriti” se delineiam as linhas mestras determinantes da sorte do rapaz, que compreendia no insólito da viagem de regresso à fazenda de Liodoro, para pedir em casamento a mão de sua filha, a possibilidade de “trocar o repensado contra-curso de uma dúvida, pelo azado desatinozinho que o destino quer”[4] , fado esse que se interpõe ao influxo da razão ou da providência, e, fora de uma série causal, indicia a suspensão do movimento encadeado de ida e vinda que não se efetiva, dado que o início da vita nuova do herói representa o suposto fim da trama e de seus meandros rumo à concretude amorosa: a chegada, que não se conclui, ao ponto de partida. Dessa feita, Miguel é mais do que uma presença-ausência no romance; é, antes, antinomia indissolúvel, e, por isso mesmo, indispensável para a economia da obra.

 

Além do mais, não obstante a função da ausência exercida por Miguel repercutir sobre a consciência das personagens como Maria da Glória, que, pelas lembranças que dele tem, é despertada para a o exercício de sua sexualidade — e retroagir sobre a percepção do leitor, no nível da experiência estética se distingue, ainda, na medida em que o texto progride, outra problemática suscitada: a da contextura entre o plano dos seres e o da natureza, que, ao se interpenetrarem, equacionam seus elementos — vistos não apenas como simbólicos, mas prenhes de implicações para a compreensão da obra — com as reminiscências do protagonista.

 

O primeiro relato do serão de despedida do casal, episódio recorrente por mais duas vezes, sob perspectivas díspares, é modelar quanto à explicitação das ranhuras hermenêuticas que se verificam em Corpo de baile. Tomando como pressuposto suas especificidades intratextuais, no excerto que se segue a esse comentário, pode-se constatar as referências à infância de Miguel, passada no espaço do Mutum e dada a re-conhecer em outra novela, “Campo Geral”, bem como as remissões às suas desventuras e aos seus afetos perdidos, como ocorre na ocasião em que menciona o falecido irmão, Dito, para citar só um exemplo. Contudo, mais importante é atestar, em suas confissões, que, na dinâmica da viagem, pressuposta pelo “hei de voltar aqui”, fundamenta-se a origem da promessa, isto é, da própria história, e a factitividade do retorno como forma de restituição[5] , sob o aspecto mais benjaminiano do termo, aqui associada a uma alegria possível e futura.

 

Minha mãe dizia: Todo amor... A meninice é uma quantidade de coisas, sempre se movendo; a velhice também, mas as coisas paradas, como em muros de pedra sossa. O Mutúm. Assim, entre a meninice e a velhice, tudo se distingue pouco, tudo perto demais. De prêto, em alegria, no mato, o Mutúm dansa de baile. Maria da Glória sabe que pode fiar, de sua beleza. Ela tem meu olhar para os seus braços. — “O senhor está com a idéia muito longe...” De onde eu sou, ela é: descende dos Gerais, por varonia. Minha meninice é beleza e tristeza. — “Dito, você é bonito!...” — o papagaio Papaco-o-Paco conseguiu falar. Matavam o tatú, nas noites de o belo luar. — “Hei de voltar aqui, sim, volto...” Esquivava o assunto terno [...]. Maria da Glória, da alegria. Tudo ela destemesse. Amanhã, vou-me embora. Hei-de voltar, se não puder me esquecer de Maria da Glória. Como se eu mesmo me tivesse dito, adiantado: — Vou ter de viver longe, tristemente, desta môça tão diversa... Posso querer viver longe da alegria? Quando encontrei Maria da Glória, aqui, foi como se terminasse, de repente, uma grande saudade, que eu não sabia que sentia. (ROSA, 1956, v. 2, p. 691-2)

 

A viagem é, como se observa, uma temática que, presente nas narrativas de Corpo de baile, evidencia o conjunto das forças moventes que operam em um cosmos sertanejo caracterizado pela rudimentariedade e estagnação. O périplo de Miguilim — do Mutum para a cidade, onde estuda e se torna vacinador de gados —, que volta adulto em “Buriti”, revela não somente as rotas existenciais de sua trajetória, mas, também, o superar, a partir da ação transformadora introduzida pela modernização no ambiente rural, dos estados mais cristalizados, inscritos no hábito dos homens do lugar, inclusive no seu.

 

Essa nova ordem de acontecimentos se dá numa situação muito especial, momento em que Miguel, portador da técnica, intervém, de modo natural, na natureza, imunizando os animais da Grumixã, o que causa a surpresa dos vaqueiros, que “apreendiam [aquilo] com esquisita sutileza” (ROSA, 1956, v. 2, p. 645), e a admiração do proprietário dessa fazenda, Nhô Gualberto Gaspar, aquele com quem Miguel mantém contato antes do encontro com Glória, e por meio de quem tudo sabe acerca da moça e dos moradores do Buriti Bom.

 

Entretanto, nesse mesmo contexto, paralela à vontade de deslembrar as tristes coisas do passado, para usar uma expressão tipicamente rosiana, há uma potencialização narrativa que compele Miguel a verbalizar a mais recôndita de suas memórias, num encontro que, em última instância, é retorno a si próprio, mediado por relações outras, como a da simplicidade da região e de seus habitantes, cuja dimensão poética surge por uma linguagem repleta de lirismo que incide sobre o espaço local, interseccionando o belo da natureza com o desagradável do sofrimento pueril, e acabando por fazer dos Gerais o locus onde o sertão se transmuta em eu, “mergulho abissal na memória, captação poética do real.” (HOLANDA; TEIXEIRA, 2010, p. 116)

 

Já aí Miguel cobrava também interesse por nhô Gaspar, nele encontrava a maneira módica do povo dos Gerais, de sua própria gente, sensível ao mudo compasso, ao nível de alma daquelas regiões de lugar e de viver. Contra o sertão, Miguel tinha sua pessoa, sua infância, que ele, de anos, pelejava por deslembrar, num esforço que era a mesma saudade, em sua forma mais eficaz. Mas o grande sertão dos Gerais povoava-o, nele estava, em seu amor, carnal marcado. Então, em fim de vencer e ganhar o pas­sado no presente, o que ele se socorrera de aprender era a preci­são de transformar o poder do sertão — em seu coração mesmo e entendimento. Assim na também existência real dele sertão, que obedece ao que se quer. (ROSA, 1956, v. 2, p. 641-2)

 

Aqui, a recordação involuntária, mais até do que o lembrar, não está em nada distante do esquecimento, o que faz desse evocar contínuo do passado um princípio motriz do ato de narrar, ancorado nos desdobramentos da reatualização dos fatos decorridos. Nesse processo, construída pela ação de outros agentes, a trama avança sob a ingerência de um Gualberto Gaspar, que, ao expor todos os detalhes da vida íntima de seu amigo, e vizinho, Iô Liodoro, imprime certa tensão à narrativa, se se pensar que, ao tornar conhecido o comportamento moral do patriarca, amante da esposa do Inspetor, D. Dionéia, e enfatizar a mudança dos costumes culturais do sertão, numa época e lugar em que “[...] homem matava homem, por causa de mu­lher [...]” (ROSA, 1956, v. 2, p. 659), se deixa entrever o adultério de Nhanina, a mãe de Miguilim-Miguel, em “Campo Geral”.

 

Ocorre que “Buriti”, porém, é a narrativa da alegria, em que, “diante do dia” (ROSA, 1956, v. 2, p. 822), e da busca pela superação de todo o ódio, que com o tempo se exalara, “ninguém falava mais o antigo” (ROSA, 1956, v. 1, p. 21), senão para constatar a atualidade do novo (JAUß, 1996), situado no trânsito onde o arcaico e a modernidade emergente afluem no sertão. Nesse impasse, a recognição de Miguel, de que “[a] vida não tem passado. Tôda hora o barro se refaz. Deus ensina. (ROSA, 1956, v. 2, p. 822), aponta para o fim do maior percurso de uma personagem rosiana em direção ao encontro consigo, uma vez que o objeto de seu passado, as vicissitudes de sua fortuna, determinam, na revisão de sua memória, as disparidades entre a história presente e a posterior, circunscrita ao núcleo narrativo: o término de uma busca por alegria, que só finda com o instante peremptório da afirmação amorosa.

 

Maria da Glória certamente o amava, aquêles belos braços, tôda ela tão inespe­rada, haviam falado de menores assuntos, disto e daquilo, o monjolo socava arroz, com o rumorzinho galante, agora Maria da Glória não o poderia ter esquecido, e o amor era o milagre de uma coisa. Glória, Glorinha, podia dizer, pegar-lhe nas mãos, cheirar o cheiro de seus cabelos. A bôca. Os olhos. A espera, lua luar de mim, o assopro — as narinas quentes que respiravam. Os seios. As águas. Abraçados, haviam de ouvir o amar do monjolo, enchão, noites demoradas. — “Você fala de coisas em que não está pensando...” “— Estou é pensando de outro modo em você, Maria da Glória...” As pessôas — baile de flores degoladas, que procuram suas hastes. Maria da Glória sorrira tão sua, sabia que êle a amava. (ROSA, 1956, v. 2, p. 821)

 

Nesse ponto, nossa análise se distancia daquela empreendida por Luiz Roncari (2012), pois, se para este as resoluções encontradas para interpretar “Buriti” perpassam por uma leitura em que o pensamento de Nietzsche e Walter Benjamin se congruem, com base na ideia do eterno retorno, para inferir que, no plano temporal da narrativa se coloca em relevo a representação de uma brasilidade, assentada principalmente nos anos do nacional-desenvolvimentismo, daí falar acerca de modernização conservadora, aqui, pensa-se de maneira diversa. Explico.

 

Se os fatos em “Buriti” encerram uma visão mais realista da história do Brasil, como pretende Roncari, há que se considerar inegável que essa relação com os tempos modernos toma forma em um narrar como o de Miguel, aquele que, ao prospectar o diorama fossilizado do pretérito, metáfora da lembrança, concomitatemente estanque e célere, faz com que o mesmo entre em um vínculo contíguo com o iminente, transitório e obsoleto. Assim, como traço [Spur] da estória, inscrita na história, a articulação entre memória e narração, vista no estudo dessa personagem que por nós é tida na conta de uma aporia, nos possibilitou observar, nos vestígios de sua vivência do passado, a marca de um sujeito fragmentário, cuja percepção só se torna experiência na proporção em que suas ruínas [Ruinen] imagéticas se diluem no fluxo constante da conjuntura histórica da modernidade, que é, também, nesse caso, uma reconfiguração estética do próprio espaço sertanejo.

 

 

REFERÊNCIAS

 

BENJAMIN, Walter. Gesammelte Schriften. Frankfurt: Suhrkamp, 1972, v. 4, 1108 p.

______. Infância em Berlin por volta de 1900. In: Rua de mão única. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho et alii. 5. ed. São Paulo: Brasiliense, 1995, p. 71-142.

GAGNEBIN, Jean Marie. História e narração em Walter Benjamin. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2011,  114 p.

HOLANDA, Sílvio; TEIXEIRA, Everton. Tematização da experiência estética em Corpo de Baile. In: Guimarães Rosa: novas perspectivas. Curitiba: CRV, 2010, p. 105-124.

JAUß, Hans Robert. Tradição literária e consciência atual da modernidade. In: OLINTO, Heidrun Krieger (org.). Histórias de literatura: as novas teorias alemãs. São Paulo: Ática, 1996, p. 47-100.

______. Pequeña apología de la experiencia estética. Trad. Attílio Cancian. Barcelona: Paidós, 2002, p. 28-95.

NUNES, Benedito. O dorso do tigre. São Paulo: Perspectiva, 1969, 278 p.

PADILHA, Solange Viaro. Guimarães Rosa: flashback e polifonia em Buriti. Revista das Faculdades Santa Cruz, Curitiba, v. 8, n. 1, p. 79-85, jan./ jun. 2010.

RONCARI, Luiz. Nietzsche, Walter Benjamin e Guimarães Rosa: uma ideia de história. Letras de Hoje, v. 47, n. 2, p. 131-135, abr./jun. 2012.

ROSA, João Guimarães. Corpo de baile: sete novelas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956,  2 v.

SANTOS, Wendel. A construção do romance em Guimarães Rosa. São Paulo: Ática, 1978, 231 p.

 

NOTAS

[1] BENJAMIN, Walter. Berliner Kindheit um Neunzehnhundert. In: Gesammelte Schriften. Frankfurt: Suhrkamp, 1972, v. 4, p. 240. Em português, a epígrafe aqui transcrita tem a seguinte redação: “Pois isto era singular naquelas viagens: seus mundos distantes nem sempre eram estranhos, e a saudade que despertavam em mim nem sempre era um chamariz ao desconhecido, mas antes, por vezes, aquele desejo mais suave de voltar a casa.” Cf. BENJAMIN, Walter. Infância em Berlin por volta de 1900. In: Rua de mão única. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho et alii. 5. ed. São Paulo: Brasiliense, 1995, p. 77.

[2] O trecho citado logo no início deste artigo é de um ensaio introdutório ao motivo da viagem, ideia que será discutida em texto de maior fôlego publicado, assim como o primeiro originalmente o foi, no suplemento literário de O Estado de São Paulo, em 1966-67. Já em 1969, esses trabalhos foram reunidos sob o título de O dorso do tigre.

[3] Mais uma vez as anotações memorialísticas benjaminianas nos servem de suporte, pois ainda no texto da Infância, no entretítulo O jogo das letras, o autor escreve: “Nunca podemos recuperar totalmente o que foi esquecido. E talvez seja bom assim. O choque do resgate do passado seria tão destrutivo que, no exato momento, forçosamente deixaríamos de compreender nossa saudade. Mas é por isso que a compreendemos, e tanto melhor, quanto mais profundamente jaz em nós o esquecido. Tal como a palavra que ainda há pouco se achava em nossos lábios, libertaria a língua para arroubos demostênicos, assim o esquecido nos parece pesado por causa de toda a vida vivida que nos reserva.” BENJAMIN, Walter. Op. Cit., p. 104-5.

[4] Assim diz o texto: “Depois de saudades e tempo, Miguel voltava àquele lugar, à fazenda do Buriti Bom, alheia, longe. Dos de lá, desde ano, nunca tivera notícia; agora, entretanto, desejava que de coração o acolhessem. Receava. Era um estranho; continuava um es­tranho, tornara a ser um estranho? Ao menos, pudessem recebê-lo com alegria maior que a surpresa. Mas, para ele, aproximar-se dali estava sendo talvez trocar o repensado contra-curso de uma dúvida, pelo azado desatinozinho que o destino quer. Achava.ROSA, João Guimarães. Corpo de baile: sete novelas. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1956, v. 2, p. 625. [Foi mantida a grafia do autor]

[5] Jean Marie Gagnebin assim esclarece as duas ideias-chaves, para Walter Benjamin, de origem e restituição: “A restauração indica, portanto, de maneira inelutável, o reconhecimento da perda, a recordação de uma ordem anterior e a fragilidade desta ordem. [...] A origem benjaminiana visa, portanto, mais que um projeto restaurativo ingênuo, ela é, sim, a retomada do passado, mas ao mesmo tempo e porque o passado enquanto passado só pode voltar numa não-identidade consigo mesmo abertura sobre o futuro, inacabamento constitutivo.” Op. Cit. Origem, Original, Tradução. In: História e narração em Walter Benjamin. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2011, p. 14.

 

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Brenno Carriço é graduando do curso de Letras pela Universidade Federal do Pará (UFPA) e bolsista de Iniciação científica (CNPq). E-mail: brenno_carrico@yahoo.com.br.

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