AMAR
ATRAVÉS DO CRIME
Chico
Lopes
Eu
tinha 13 anos e o filme era proibido para menores de 14. Havia
lido sobre a produção em Cinelândia ou em Filmelândia, sabia
de seus preparativos, da escolha da modelo Tippi Hendren para
o papel principal. Mas não pude entrar no cinema, não consegui
comover o gerente com minhas súplicas, e fiquei defronte ao
prédio, ouvindo os ruídos da projeção, os gritos das gaivotas,
pegando em relance algumas imagens do incêndio de Bodega Bay,
quase no final.
Minha
paixão por Hitchcock vem daí. Os pássaros foi minha
primeira grande intuição do que poderia ser a verdadeira
arte cinematográfica. Obcecado por pássaros, eu havia
desenhado, a lápis de cor, todo um caderno, procurando fazer
com um máximo de exatidão cópias dos pássaros de um álbum
de figurinhas educativas. Também desenhava a lápis umas HQs
com toques de ficção científica, prédios que se
incendiavam, e era leitor ávido de gibis que trouxessem isso
- calamidades, ameaças sobrenaturais. O filme ia ao
encontro desses devaneios e despertava em mim fascínio quase
obsessivo. Nunca me conformei em não ter podido vê-lo
daquela vez e desenvolvi por ele uma idolatria só satisfeita,
parcialmente, por leituras. Só o vi, na íntegra, pela
televisão, mais de dez anos depois. Para ficar maravilhado.
Lembro-me
que um crítico de renome chamou-o de "obra-prima da
inquietação»" e a Hitchcock de "gênio da arte da
ansiedade, comparável a Kafka e Edgar Allan Poe". Os cinéfilos
são, às vezes, exagerados e parecem precisar dar aos filmes
de sua predileção um verniz culto, procedente das artes
ditas "mais nobres" (em geral, Literatura) nem sempre cabível.
No caso de Os pássaros, no entanto, a comparação é
mais que justa: Hitchcock, com essa obra, ganha uma dimensão
de grande criador visionário. Em matéria de inquietação,
poucos filmes chegam perto.
Alguém
disse que é o precursor do filme de catástrofe, o que
considero uma ofensa ao gênio hitchcockiano, que é, acima de
tudo, sutil. Nenhum terremoto, nenhum grande edifício em
chamas, nenhuma avalanche teria a força aterradora desses pássaros
banais, imposta de maneira fascinante e inexplicável, assim
como em O corpo que cai vemos a Morte transformada em
sedutora e participamos de um sonho de ressurreição e onipotência
(e necrofilia).
Para
começar, o filme não é sensacionalista: os ataques dos pássaros
não são combatidos pelo exército americano nem alardeados
por todos os meios de comunicação, restringindo-se a uma
cidadezinha litorânea da Califórnia - Bodega Bay. Não há
morticínio, e uma suposta vingança ecológica fica reduzida
à precariedade da conjetura; Hitch parece descartar todas as
interpretações simplistas; sua preocupação deve ter sido a
de provocar inquietação através de uma fantasia assumida
como tal. A invasão das aves é gratuita, imprevisível, e
uma velhota ornitóloga, que pedantemente descrê da
agressividade dos pássaros, fica daí a pouco reduzida, por
um ataque, a um simples ser humano, envergonhado, incapaz de
entender.
Hitch
sempre ironiza o especialista em seus filmes. No fim de Psicose,
um psiquiatra, explicando o comportamento anormal de Norman
Bates, não explica quase nada, ou melhor, uniformiza, pelas
teorias psiquiátricas, um modo de ser que até ali nos fora
mostrado com todo o seu pathos singular de tragédia
individual e que não tem como não continuar misterioso. O ódio
ao especialista, ao "entendedor", talvez proceda de nosso
desapontamento com a arrogância da lógica, que só é eficaz
enquanto não confrontada com o mistério e o absurdo da
realidade.
Aliás,
em Psicose, filme imediatamente anterior a Os pássaros,
há uma pista para a gênese deste. Enquanto Marion, próxima
vítima, come um sanduíche preparado por ele, Norman Bates
ironiza a expressão "comer como um passarinho". "Porque
não é verdade, sabe? Os passarinhos comem exageradamente",
diz. E atrás de sua cara de alucinado, com asas abertas, há
uma coruja empalhada. Por todo o motel, há também daqueles
quadrinhos de pássaros tipicamente decorativos.
Hitch
talvez quisesse desmitificar a aura tradicional de amabilidade
das aves, devolvendo à Natureza filmada um senso de realidade
bem mais crível que a habitual e piegas inocuidade das
"graciosas criaturinhas do ar". O papel dos grandes
artistas sempre foi o de recuperar o poder de perturbação do
real, que é o responsável pela magia da arte. A fantasia
pura e simples está sempre muito abaixo ou muito acima da
grandeza, do assombro da realidade, esta sim sobrenatural.
Há
no filme cenas que são pura poesia de ansiedade: Melanie
Daniels, esperando a menina Cathy sair da escola, fuma
nervosamente e percebe que, um por um, os pássaros ameaçadores
vão pousando nos ferros de um playground próximo.
Vemos a sua impotência em crescendo, e o crescendo obedece a
uma prodigiosa intuição cinematográfica - os pássaros vão
pousando nos ferros do brinquedo infantil ao ritmo de vozes de
crianças que cantam inocentemente na sala de aula, ignorando
o perigo iminente, só testemunhado por Melanie. É um autêntico
balé de medo, impotência, presságio, inquietação.
A
violência das aves é inusitada: furam portas, telhados,
vidros, atacando pessoas e coisas com uma determinação
rigorosa e insana. Hitch dispensa trilha sonora, deixando que
os gritos, pios, cantos façam a música do filme, que assim
fica marcado por um fundo sonoro surdo, ubíquo, vago e
inquietante, como um vento apocalíptico. A simples visão das
aves se juntando nos fios de eletricidade, contra o céu
crepuscular, ganha, no filme, uma eloqüência quase mística.
E há muito sexo nos ataques: bicos fálicos, determinados,
insistentes, nas pernas (muito desejáveis) de Melanie, e uma
alegria histérica na destruição pela destruição. Desde a
abertura, com os créditos sendo retalhados pelas aves,
entende-se que elas simbolizam o que se convencionou chamar de
"Id", a força puramente instintiva, anárquica, gratuita
e vital mantida sob repressão em cada homem. Hitch gosta,
obviamente, de Psicanálise, mas nesse filme, ao contrário de
no seguinte, Marnie - Confissões de uma ladra, a
simbologia não é tão evidente, embora Édipo e correlatos
possam ser vistos nos segredos latentes/manifestos do enredo.
Mitch Brenner, o advogado por quem Melanie sente um desejo
atrevido de moça rica e mimada, é escravo de uma mãe
possessiva, que o impediu de namorar a professora Anne
Hayworth, que mora resignadamente em Bodega Bay. O retrato do
pai morto é transparentemente uma referência ao triângulo
edipiano; de trás dele, a mãe, preocupada em recolocá-lo no
lugar depois de um súbito ataque de pardais à sala, faz cair
um passarinho que morrera. Para proteger a casa, no ataque
final, Mitch coloca móveis contra a porta; o último deles é
uma penteadeira, o que o faz ficar diante de um espelho. E, do
outro lado do espelho, os pássaros. Eles são mesmo o avesso
elucidador da verdade, a violência freudiana existente nessa
família cuja paz é a mais superficial possível.
O
pai de Hitchcock, segundo as biografias, tinha uma loja de
aves. É decantado um episódio da infância do cineasta, não
se sabe se inventado por ele (famoso pelas imposturas publicitárias)
ou não. O homem teria posto o filho na cadeia por alguns
minutos, numa demonstração de autoridade cuja razão Hitch não
compreendeu: o que teria feito de errado? Deve ter sentido que
o pai desejava era infundir o terror pelo terror, gozando o
arbítrio de sua posição superior. Como em A sentença,
de Kafka, o pai aterroriza porque é pai e não precisa mais
- acha-se plenamente justificado pela terrível
respeitabilidade de sua posição. E "o que perturba na
sociedade é a aparência racional de sua irracionalidade",
disse Marcuse. O gosto pelo sadismo pode ser dissimulado sob
formas oficiais, na ordem familiar, nos fatos comumente
aceitos e até estimulados, e, na arte, sob a sedução das
formas.
Mas
a vingança pessoal de Hitch é um dado menor numa obra tão
bela. O que importa é a flor original que podemos arrancar de
nossos ressentimentos, fobias, obsessões. Acima da biografia
psicopatológica do criador, embora, sem dúvida,
alimentando-se dela, resplandece o vigor auto-explicativo da
criação.
O taxidermista
Horror como
entretenimento? Que alma é a essa que precisa de doses
permanentes de crueldade para manter seu precário equilíbrio?
O que o cinema do horror nos oferece não é nada além disso
- a possibilidade de vivermos, sem repressão, sem remorso,
o sonho de um crime. De toda moral sub-edificante do filme, o
que nos interessa de fato é o assassinato, o pânico
garantido, a catarse pela vivência fantasiosa do Mal.
Precisamos de tortura, desespero e sangue, e os cineastas do gênero
sabem disso. Brincam, então, no limiar da amoralidade
absoluta, presenteando-nos com toda uma estética da maldade,
manipulando nosso desejo de sermos precisamente aquele tarado,
aquele esquartejador, aquele demônio.
Quem
é que hoje em dia debateria coisas tais como os perigos a que
uma alma está exposta, os abismos de sedução do Mal, as
implicações metafísicas da aceitação de violências
rotineiras, as conseqüências da Grande Omissão? Vivemos
numa civilização que namora cada vez mais a Morte, cultuando
o risco da destruição total com um fascínio mal disfarçado
pelos protestos de um humanismo débil. Os artistas, se
grandes, limitam-se a detectar a ameaça com sensibilidades
que já os fazem bastante desgraçados para poderem
indignar-se ativamente. Não passam de agentes torturados do
que mal podem definir. E a resposta que damos às suas
inquietações é somente uma apreciação estética do
Horror. Ou um culto fanático da sedução que transborda de
suas obras, cegos às auto-imolações inomináveis que podem
tê-las gerado.
Hitchcock
conheceu muito bem as ambigüidades dessa situação. Aparecia
em seu filme com a lepidez típica dos gordinhos, com ar de
desdém e descompromisso perante a sua própria obra, um gnomo
cheio de malícia e falsamente disposto a ser simpático.
Obrigado a ceder ao comercialismo de Hollywood, usava-o como
um artista fino, dando ao espectador-vampiro seu quinhão de
morte e castigando-o sempre que possível. Seu cinema tinha um
teor de revanche moral, mas era suficientemente sedutor para
passar por espetáculo de massa puro e simples. Eles nos fazia
compactuar com crimes e perversões, punindo-nos ou
deixando-nos desamparados, feiticeiro displicente. "Lavava
as mãos", de certo modo. "Dou o que vocês pediram, o que
vocês merecem, portanto. Não tenho nada com isso. Mas, já
que estou aqui, por quê não divertir-me, punindo-os um pouco
também?". Esse gênio do humor negro talvez seja um dos
artistas-chave do século. O cinismo era a sua forma de virar
a mesa, de provocar inquietações morais.
Nunca
me esqueço da figura de Norman Bates em Psicose. Dono
de um motel fora de mão, órfão de pai, mãe, Deus e todo
mundo, empalhava pássaros como passatempo. Esse taxidermista
simboliza a solidão trágica de nosso tempo. Escravo de suas
compulsões, filho involuntário das trevas, entrou para a
galeria de monstros célebres do Cinema, e, como Nosferatu,
tem uma aura arquetípica de humana e patética inumanidade.
Desenhado como o típico "filhinho da mamãe", ele é tímido,
gentil, gagueja, não pára de cometer "atos falhos",
tropeçando em si mesmo continuamente. Procura ser solícito,
encantador, mas é nervoso demais para isso. "O melhor amigo
de um rapaz é a sua mãe, você não acha?", pergunta a
Marion Crane (Janet Leigh), mais afirmando com hostilidade que
perguntando.
Há
nele uma homossexualidade de que Hitch só nos dá um sinal irônico
- e penalizante: é quando o vemos subindo uma escada com
uma espécie de rebolado involuntário, entre a comicidade e o
desespero. Mas, Édipo para além da morte, ele resolve seu
homossexualismo matando mulheres. Matar Marion Crane para ele
é matar o fascínio perverso que a fêmea (incesto, tabu)
exerce sobre sua sexualidade distorcida. O passatempo de
taxidermista desnuda esse gosto necrófilo, essa incapacidade
de amar a vida sem reduzi-la a uma coisa inanimada. Para a sua
psicose, a mobilidade é uma perturbação, a liberdade do
Outro, uma fonte de desespero e inveja. Morta, Marion Crane
estará possuída, exorcizada, não mais causará transtorno
em sua rotina de solidão necessária.
O crime do box do banheiro, tão célebre, pode ser
visto como um ato de amor.
E
a casa de Norman, conjugada ao motel? Um estereótipo de mansão
de filme de horror, do qual o mestre extrai uma dignidade de
autêntica morada dos Usher. Obrigado a excitar platéias cada
vez mais insensíveis, peritas em truques e imprevistos, Hitch
não só fez um filme de grande sucesso comercial na linha do
susto garantido, mas uma tragédia contemporânea, tão forte
e seminal que todos os filmes de suspense posteriores lhe
rendem tributo de maneira direta ou indireta. Sem, contudo,
captar o essencial desse e de outros filmes de Hitch: uma
atmosfera peculiaríssima de degradação, perversidade, elegância
e ironia, em que transparece a consciência atormentada de um
moralista católico, para quem tudo nesse mundo é apenas
reflexo da batalha entre Bem e Mal, travada lá longe, lá no
fundo, muito além das aparências.
O roubo
Marion
Crane rouba um milionário texano arrogante e corrupto que
todos nós, espectadores, gostaríamos de sacanear. Toda a
parte do roubo e da fuga que lhe segue constitui uma das mais
perfeitas e amarradas seqüências de cinema que se conhece. O
prazer de transgredir, de cometer uma imoralidade (o que o
espectador procura) é aí sintetizado à perfeição. Mas,
como bom católico, Hitch não deixaria a pecadora sem castigo
e, desde o momento em que Marion se apossa do maço de notas,
está determinado que isso acabará mal, pois ela cedeu a uma
tentação e atraiu contra si os ventos da Morte, embora pareça
haver uma enorme desproporção entre o ato cometido e o rigor
da punição. Acontece, porém, que o ato não envolveu apenas
o prazer do roubo, mas toda uma metafísica da desobediência,
como Adão comendo o fruto. É notável como Hitch fetichiza
ao máximo as notas, ampliando em significado esse signo que,
às vezes, ocupa a tela toda. Esse maço de notas é sexo,
significa a possibilidade concreta de união física total
entre a ladra e seu amante. Mordido o fruto, só resta a
expulsão do Paraíso. E vem a jornada em que Marion, ao
volante, parece ir mergulhando progressivamente, detalhe por
detalhe, no Inferno, seu rosto lutando com as sombras da
noite, dividido entre a excitação e o medo, a culpa e o júbilo
da transgressão.
A Lei usa óculos escuros
Enquanto ruma
para a morte, Marion é - ou supõe ser - perseguida por
um policial de óculos. Esse policial é outro dos inúmeros
achados que fazem a maestria do diretor. Simbolizando a consciência
pesada da ladra, ele é como que onisciente e onipresente; a
todo momento, ela se depara com sua figura imóvel, vigilante,
sinistra em sua impassibilidade acusadora, sem poder ler o
olhar que a lê, devido ao obstáculo dos óculos escuros.
Quando ele enfia a cabeça carro adentro pedindo-lhe os
documentos, o rosto é profundamente duro, frio e hostil, e os
óculos simbolizam tanto a cegueira quanto a insondabilidade
da lei.
E simbolizam
também o charme dúbio da interdição, da autoridade, prato
feito para a sexualidade masoquista, que não faz senão
flertar com encarnações erotizadas da restrição, da punição,
da Morte. A aproximação do policial ao carro onde ela se
abrigou parece uma estranha devassa de pecados, de intenções
que Marion não ousaria confessar a si mesma.
Participamos da
ansiedade dessa anti-heroína e vemos claramente como a consciência
culpada alucina a percepção das coisas. Passamos instantes
de paranóia pura suando frio, temendo por uma ladra, cúmplices
de um roubo. Mas o policial não suspeitava de nada anormal e
apenas realizava uma inspeção de rotina. Isso é Cinema: o
que aconteceu foi mínimo, mas o talento do diretor é de tal
magnitude que as imagens tiveram uma eloqüência capaz de nos
levar para muito mais longe do que poderíamos supor.
Suspiramos de alívio ao vermos Marion liberada, retomando a
estrada. Exatamente como ela. E a seqüência mal continha diálogos.
O
pacto involuntário
Não
fosse por todo o resto, Pacto sinistro valeria por
oferecer uma lição de como abordar um assunto ingrato (e
impensável para a década de 50, no contexto do cinema
comercial de Hollywood) - a homossexualidade - sem uma só
menção explícita, sem uma apelação sequer. Quem quer que
tenha dúvidas do talento de Hitchcock para manipular imagens
que conseguem sugerir mundos e fundos sem perder a superfície
elegante, a narrativa fluente e aparentemente empenhada apenas
em entreter, seduzir, assustar, precisa ver este filme.
É
preciso dizer tudo aparentando dizer nada, ou dizendo muito
pouco, apenas o suficiente para seduzir o público, que depois
poderá decidir do que viu. Mero entertainment? Não,
é a condição para um mergulho nas águas de um realismo
superior à "realidade". A história é uma sublimação
em crime de um sufocado amor entre homens. Criss-cross,
"um pelo outro", propõe o mais ousado deles.
Ele
é Bruno Anthony, milionário desocupado, e o outro, Guy
Haines, tenista em ascensão que está para casar-se com a
filha de um senador. Unidos por acaso no vagão de um trem de
luxo, eles falam de suas dificuldades, Bruno com o pai, Guy
com a ex-esposa, que não quer lhe dar o divórcio.
Insinuante, Bruno propõe um pacto: matará a ex-esposa, que
estorva seus planos de ascensão social e, em troca, Guy deverá
matar-lhe o pai. Argumenta: em ambos os casos, seria o crime
perfeito pois, cometido por estranhos, estaria privado de um
elemento essencial: a motivação.
Desde
o início, filmando os pares de sapatos que procedem de pontos
diferentes e esbarram-se no vagão, propiciando o encontro,
Hitch deu a este um caráter de necessidade, de fatalismo. Guy
vê Bruno apenas como um desses maçantes que às vezes nos
abordam em viagens, como um maluco inofensivo, e finge aceitar
a idéia para livrar-se do incômodo e um pouco também porque
fora bastante adulado. Esta pequena concordância íntima,
contudo, detonará conseqüências trágicas, na linha
tradicional do Mestre, que pune leviandades com catástrofes.
O cineasta parece estar sempre repetindo que, para
enredarmo-nos no Horror, não é necessário mais que um
pequeno e frívolo sopro do Acaso, um pequeno descuido de
consciência lassa.
A
obra transpira ambigüidade. Bruno é, obviamente, um duplo
negativo de Guy, representa a materialização de seus desejos
inconfessáveis, seus devaneios de violência postos em prática.
Depois de brigar com a ex-esposa em Metcalf, onde o trem o
deixara, o tenista diz à namorada Anna, no telefone, que
seria capaz de matar, estrangular essa mulher que não
concorda com o divórcio. Nesse exato momento, o trem que leva
Bruno passa ruidosamente pela cabine de onde fala e, a seguir,
aparecem as mãos de Bruno contorcendo-se na avidez de
estrangular, exercitando-se para o crime concreto que
acontecerá num parque de diversões.
Um
crime antológico: começa por um processo de sedução, pois
Bruno sabe que a ex-mulher de Guy é pouco séria e é muito
seguro de seu charme, e termina num estrangulamento que se
consuma como se fosse um desejo partilhado pelo assassino e
sua vítima. Temos pena da mulher - ela deseja esse homem
que a segue e que é um bonitão - mas estamos preparados para
achar "bem feito" que ela acabe tão mal. Bruno leva seus
óculos a Guy para provar a façanha e efetuar a cobrança. Criss-cross.
Apavorado, o tenista hesita entre ficar ao lado do maníaco ou
chamar a polícia, e a cena em que passa para o lado de Bruno
no portão, a fim de se esconder de uma viatura, é uma
ilustração perfeita dessa relutância. Parte vital de seu
ser está com esse homem doente; a cena do portão tem o
frenesi de um beijo que não se realiza; Bruno assedia Guy de
uma maneira oferecida, coquete, idólatra, procurando aliciá-lo
de qualquer modo. O prodígio da elegância de Hitch é que
isso nunca é vulgar. Pois é evidente que a cumplicidade que
Bruno exige é de natureza sexual, o "um pelo outro" do
trato consuma-se na multiplicação dos signos de
cumplicidade: isqueiro com raquetes de tênis cruzadas,
cruzamento ferroviário, sapatos que se tocam, grade de portão
que veda e aproxima. O "troca-troca" sonhado é denunciado
por todos esses signos pouco inocentes.
Noturno,
ubíquo, imprevisível, Bruno é um credor implacável e
velado, um indício exterior da consciência culpada de Guy, e
aí fica patente a conexão misteriosa, erótica, que existe
entre Bem e Mal, entre o lado da claridade e o lado das
sombras, desejosos um do outro.
Há cenas
perfeitas: numa partida de tênis, sentado na arquibancada,
Bruno está completamente imóvel e vigilante; enquanto os
espectadores todos se movem acompanhando o ir e vir da bola
com a cabeça, ele tem a perigosa rigidez dos que possuem uma
idéia fixa. Nunca essa verdade teve uma tradução cinematográfica
tão simples e brilhante.
Bruno
aparece como uma silhueta negra contra a brancura do Pentágono.
Só age à noite, e como o Rusk do Frenesi de
1972, é outro edipiano trágico, ostentando, tal como este,
um monograma que denuncia seu narcisismo. Sua mãe, uma ociosa
que quer ser pintora, aparece numa cena que consegue ser
tragicômica, hilariante e assustadora, mostrando ao filho um
quadro de que ele debocha vigorosamente, dobrando-se de rir.
Sempre mães, sempre filhos para os quais os pais é um rival
perigoso, uma ausência, um estorvo concreto ou imaginado. O
horrível quadro que a mãe pintou, na tentativa de fazer um São
Francisco, é, para Bruno, uma reprodução exata do
"velho".
Por
precisar de um outro modelo masculino, de uma paternidade mais
de acordo com seus desejos amorosos e hostis, aproximou-se de
Guy e matou a mulher do tenista, querendo como que substituí-la;
por isso, tem a filha do senador como inimiga. Signos ambíguos,
que não param de fundir-se e desdobrar-se na dinâmica da
narrativa. Bruno é trágico, Guy é apenas um arrivista medíocre,
covarde. Ao fim, depois de uma tensa partida de tênis, jogada
contra o relógio, seguido pela polícia, Guy tem de se livrar
de seu demônio por um ato de audácia extrema, auxiliado pela
noiva e a futura cunhada (bem sintomático: é a guerra entre
as hostes femininas e masculinas dentro do herói). Buscando
impedir que Bruno o incrimine, colocando um isqueiro seu no
parque de diversões onde a ex-mulher foi estrangulada, ele
vive um momento tão crítico quanto um pequeno Juízo Final.
Símbolo do pacto e da inversão, o isqueiro é o trunfo de
Bruno: simboliza a capitulação involuntária de Guy, é a
prova da existência de um «eu» clandestino. Para recuperá-lo,
neutralizar seu potencial de acusação (em mais de um
sentido), é necessário que Guy lute com Bruno num carrossel
descontrolado, luta que se parece um pouco com um
engalfinhamento sexual. O demônio morre, mas até o último
suspiro quer incriminar Guy junto à polícia, e só expirando
é que sua mão, vencida pela morte, se abre para deixar
aparecer o isqueiro, agora prova da inocência do tenista. O
que era denúncia vira libertação, numa dessas operações
geniais de transmutação de símbolos das quais Hitch tinha o
segredo. E Guy pode retornar aos braços de Anne.
Para
que se estabeleça um pacto com o Mal, não é preciso uma
aceitação formal: o próprio desejo, ainda que reprimido,
pode consumá-lo. O pecado é profundo, pensa Hitch, e nossas
almas são potencialmente más, bastando muito pouco para que
nossa malignidade (Pecado Original) tome forma. Bruno é antagônico
de Guy, para quem quiser ver no filme apenas um thriller bem
feito, mas, na verdade, é o próprio Guy subterrâneo agindo
em obediência a uma verdade oculta.
Ele nunca
aceitou sua parte no pacto, repeliu o que Bruno lhe propôs (a
eliminação do pai) como uma idéia impensável, demente.
Mas, decidido a contar ao «velho» de Bruno que o filho é
louco e deve ser internado, vai à casa dele com um revólver.
Por quê? Sobe para um quarto à espera de encontrar o homem,
mas, na cama, é o próprio Bruno que dorme, usurpando o lugar
do pai e fazendo ali o papel da mãe que espera por Guy, pai
substituto e idealizado. O revólver significa que Guy tanto
podia estar pensando em defender-se de Bruno quanto em
executar sua parte no pacto.
Essas
almas que duelam em claro-escuro são uma só alma, um
só desejo, um só destino quebrado em partes que se espelham,
se buscam e se repelem, ansiosas de um Absoluto afetivo contra
o qual a ordem social se insurge.
À espera do castigo: o desejo
furtivo e a palmatória
Naturalmente,
não se poderá entender com clareza a obra de Hitchcock se não
considerarmos o lastro católico do diretor - e, embora
muito já se tenha escrito sobre isso, a obra é tão rica que
estará permitindo sempre novas releituras. Tampouco se poderá
deixar Freud de lado, de tal modo as idéias freudianas
parecem ser perfeitamente ilustradas por esse cinema. Quem
aqui escreve não é um estudioso de Psicanálise, apesar do
farto uso do vocabulário psicanalítico. Quem escreve é um
crítico de cinema, um escritor, um esteta, que acredita ter
lido Freud como um grande escritor, um fino e atormentado
leitor dos problemas da cultura, não como o criador de uma ciência,
uma disciplina cuja progressiva implantação no mundo leigo
rendeu tantas polêmicas, e ainda renderá.
O
Hitchcock católico, que, jovem, foi mantido no colégio jesuíta
Saint Ignatius, em Londres, ao falar com François Truffaut no
célebre Hitchcock/Truffaut: Entrevistas
(editora Brasiliense, São Paulo, 1986), diz, à página 23:
"Foi provavelmente ao longo de minha passagem entre os jesuítas
que o medo se fortificou em mim. Medo moral, aquele de ser
associado a tudo que é mau. Sempre me mantive à distância.
Por quê? Por medo físico, talvez. Tinha horror aos castigos
corporais. Ora, havia a palmatória. Creio que os jesuítas
ainda a empregam. Era de borracha muito dura. Não era
administrada de qualquer jeito, não, era uma sentença que se
executava. Diziam-lhe para passar por um padre no final do
dia. Esse padre escrevia solenemente o seu nome num registro
com a menção do castigo a ser sofrido e, durante todo o dia,
você vivia nessa espera."
Não
importa a quantidade de palmatórias e as esperas ansiosas
(que já poderiam definir um dos traços de gênese do gênero
"suspense") para esse fim do dia em que ficaria claro o
castigo que o infrator das leis católicas receberia - com o
Desejo, castigo ou proibição algum pode ter uma eficiência
mais que passageira.
A
homossexualidade no cinema de Hitchcock se inscreve no capítulo
das taras, perversões e anátemas que a religião católica
aponta nesse mundo fervilhante do Desejo, que nunca lhe foi
possível controlar e dominar. Já estava lá em Murder,
de 1930, no artista de circo que mata uma mulher para que esta
não revele à noiva que ele tem uma vida homossexual - e,
aliás, ele, avô de Norman Bates, já pratica o travesti. Vai
fazer vários reaparecimentos ao longo de sua obra - no
primeiro passo que dá na América, com Rebecca, a mulher
inesquecível (1940), está lá, na relação da
governanta Mrs. Danvers com a mulher que morreu e que continua
viva dentro dela, como paixão para lá de obsessiva, e tem
uma espécie de ápice retorcido em Festim diabólico (1948),
em que dois rapazes matam um terceiro, amigo deles, por um
motivo tão vago como a teoria de um professor que lhes fala
da superioridade da inteligência sobre a moral convencional e
porque o tal amigo estaria gostando de uma mulher, escondendo
o cadáver dentro de um baú sobre o qual improvisarão uma
mesa de jantar.
A
associação da homossexualidade com a vilania e o crime faz
todo o sentido dentro da lógica da repressão católica que
Hitchcock sofreu. Lógica que não impedia seu cinema de,
penetrando na alma do "desviado", mostrá-lo como uma denúncia
viva da perversão do processo - obrigado a calar o seu
desejo, só pode manifestá-lo de forma distorcida, vingativa,
"doentia", meio como se buscasse torná-lo um ato de
satisfação substitutiva pelo fato de a maldade constituir um
alívio provisório e uma acusação a um mundo de regras que
submeteram sua alma a um deserto sem a menor esperança de água
ou brisa. O crime é uma tentativa de acerto, de diálogo com
essas forças que o deixaram perdido num inumano palco
interior de ânsias e sinais trocados.
Já
a história da relação do cinema de Hitchcock com a Psicanálise
é contraditória, porque quanto mais seus filmes são
assumidos no sentido psicanalítico, mais óbvios,
convencionais e fracos eles ficam. Isso começa claramente com
Quando fala o coração, de 1945. O filme mal resiste a
uma revisão, tão ridículo é, em seu ABC freudiano. Ainda
no tópico do psiquiatra com sua fala ridiculamente
explicativa ao final de Psicose, Marnie - Confissões
de uma ladra (1964), de resto uma das obras-primas menos
valorizadas do Mestre, há uma queda na redundância mais rasa
toda vez que tenta se explicar o comportamento da anti-heroína.
Hitchcock é melhor simplesmente como artista, e é como
artista que teria muito a ensinar a Freud. Mais radicalmente
que as teorias deste, o seu cinema faz a defesa do Desejo e o
associa, em sua perseguição da finalidade total, com a
Morte, mas como uma distinção criativa da espécie humana,
como uma aspiração legítima que o meio social tentará
disciplinar ou circunscrever, não desanimando em sua rigidez
normativa da mesma forma como ele, contrariado, não desanimará
de expressar-se, de procurar satisfação, de um modo ou de
outro. Evidente que, como artista preocupado com a bilheteria
que era, como homem de educação católica, Hitchcock faria
sempre, conscientemente, objeções irônicas a esse tipo de
análise. Mas, mais artista do que gostaria de admitir, é na
sua obra que vamos encontrar as provas de emotividade que se
situam além de toda explicação racionalizada.
É
com esse intratável, irredutível a regras, normatizações e
socializações, que o cinema de Hitchcock lidará, e ele pode
ser o mesmo cerne irredutível ao processo civilizado, livre e
selvagem demais, que Freud apontava como a inextirpável fonte
de irracionalidade humana. O mestre vienense desanimava de
acreditar na Civilização devido a isso. Mas, é em parte
devido a isso mesmo, que devemos ter fé em a Civilização não
conseguir eliminar - ou só o fazer parcialmente, sem muito
sucesso - o que podemos ter de mais criativo e insubornável.
Um tio e uma sobrinha
O
que talvez me agrade em Hitchcock é que, sendo ele o cineasta
de quem vi o maior número de filmes, seja a certeza de uma
organicidade, de uma obra cujos sinais se repetem e evoluem de
forma bem nítida. Perseguindo a ex-mulher de Guy no parque de
diversões de Metcalf, Bruno explode, com um cigarro e uma
displicência demoníaca, a bexiga de um menininho, que chora.
É cruel e engraçado. Bexigas são perfuradas pelos pássaros
de muito tempo depois, na festinha de aniversário da menina
Cathy em Os pássaros. Essas pequeninas repetições me
encantam infinitamente, parecem sugerir significados inesgotáveis
e é por causa delas que é preciso rever os filmes, sempre
com novo prazer.
Um
vilão da estirpe trágica de Bruno é o tio Charlie de À
sombra de uma dúvida. É um estrangulador de viúvas
procurado em todos os EUA. Para camuflar-se, fugindo da polícia,
ele vai para uma cidadezinha, Santa Rosa, onde tem uma irmã
casada, que o admira muito e para quem ele é a própria
encarnação do sucesso, o melhor em mundanidade que um homem
pode alcançar. O homem tem uma sobrinha que, como ele, se
chama Charlie. O elo necessário e misterioso entre a sobrinha
e o tio se estabelece desde o início; quando ele viaja para o
interior, ela já tinha lhe mandado um telegrama, chamando-o.
Ingênua, é claro que ignora a verdadeira identidade do tio.
Mas acaba suspeitando da verdade, e a sua curiosidade vai levá-la
à descoberta.
Nessa
operação de descoberta se instala o núcleo de tensão e
poesia do filme: ela se apavora e se excita com a verdade que
vai sendo desvendada, indecisa entre o charme e a repugnância
do Mal, como todos nós. À tentação ela opõe uma resistência
débil, ainda mais enfraquecida pela curiosidade. Está sempre
flertando com seu demônio, e o fato de saber a verdade a
torna cúmplice dos crimes do tio sedutor, fá-la participar,
com perigosa intimidade, do segredo do Mal. Ou seja, é puro
sexo, pois até sua mãe tem pelo irmão uma admiração que não
está longe de ser incestuosa.
Ambivalência
é movimento. Nada é definitivo, nada pode ser julgado e a câmara
ágil esquadrinha a dúvida e a ambigüidade incessantes. A
sobrinha é uma jovenzinha típica do interior americano na década
de 40, sonhadora, romântica, com uma tendência inocente à
idolatria. Virgem, o tio obviamente lhe representa o encanto
do mundo masculino adulto, de cujos perigos está no limiar. A
conivência erótica com o crime, com o assassinato, é uma
obsessão do diretor já bem patente nessa fase ainda meio
tateante de seu cinema na América.
Tipo
acabado do narcisista maldoso, o tio é um sedutor cínico que
sabe de seu poder e abusa de seu charme - este lhe autoriza
a prepotência e mascara a sua provável impotência sexual.
Prova da impotência: tomada em primeiro plano de sua mão à
janela, quando contempla a sobrinha lá fora. A mão treme e
se contorce no desejo incontido de estrangular, quase uma
representação metafórica da impossível ereção. Amar,
para esse grande solitário, significa estrangular.
No
fundo, é um homem completamente desiludido. Na mesa de um
restaurante diz à sobrinha que ele é uma tola, que nada sabe
da lama e do desespero que as boas aparências encobrem,
mencionando o nojo que sente das viúvas ricas que seduz,
rouba e mata. Como um exibicionista, mostra à sobrinha sua
perícia em estrangular usando um simples guardanapo,
insinuando sexo, poder e orgulho de sua condição de demônio
(a cena é magistral porque estabelece um contraponto visual
entre o que ele diz e o que ele realmente é; a imagem torna o
discurso vazio, ironiza-o). Tudo isso não passa de uma
demonstração tão patética quanto a dos pobres diabos que
abrem as braguilhas para crianças e mulheres mundo afora. Um
orgulho infantil do pênis, uma procura de reconhecimento para
uma verdade solitária e anti-social.
A
sobrinha se divide entre um policial insípido (o Bem, ou
seja: a Repressão) e o tio, ficando entre esses fogos e se
dilacerando entre dever e desejo, ordem e transgressão.
Tentando matá-la, o tio brinca com sua sedução e realiza a
sua vocação desesperadora de só poder amar através do
crime. A luta final no trem, quando a sobrinha vence (apenas
fisicamente) o seu demônio, é mais uma metáfora do coito
frustrado que um duelo de vida e morte propriamente.
O criminoso como poeta?
Só a morte pode
satisfazer esses amorosos trágicos - Norman Bates, Bruno,
tio Charlie? O Mestre do Suspense parece ser dos poucos que vêem
assassinos psicóticos e anormais em geral com a mesma visão
compassiva, embora lúcida, de um Dostoievsky - decaídos
que não podem ser julgados com tanto rigor, visto que seus juízes,
pelo menos na lógica dos filmes, ao menos na intenção,
situam-se no mesmo plano, e talvez sejam até mais desprezíveis,
visto que não têm coragem de ir às últimas conseqüências
de seu desejo e a sociedade legitima que frustrem os que
querem fazê-lo - portanto, obedecem mais a uma pulsão sádica
que a um imperativo moral.
Perdedor
contínuo do Paraíso, o ser humano está situado num mundo de
corrupção inata e só tem escolha entre a maldade e a
hipocrisia. O criminoso se aproxima do ídolo, pois sua
transgressão materializa fantasias e traz à tona nossos mais
reprimidos desejos. Com tudo o que tem de apavorante, o tio
Charlie é, no entanto, mais interessante que o policial com
cara de futuro marido que a sobrinha tem como protetor. O
verdadeiro amor, então, está mais próximo do perigo mortal
do que da segurança sem poesia. Afinal, o criminoso é, à
sua maneira, um poeta, e tem a oferecer o pão da fantasia, da
emoção. O tio satânico não pode ocultar a que veio, o Mal
tem a orgulhosa ingenuidade de revelar-se, o criminoso tem a
paixão de confessar o crime, que o eleva aos próprios olhos,
lhe propicia uma excitação ímpar (a confissão pode ser uma
forma sublimada de exibicionismo) e a vaidade o leva à perdição.
Ao
fim, no funeral do tio, o monstro assassino de viúvas é
louvado como um benfeitor da comunidade. O benfeitor e o
criminoso, nessa América dos anos 40 vista por Hitch, são,
no fundo, a mesma coisa: estrela de uma sociedade secretamente
devotada ao crime e apaixonada não pela normalidade, mas pela
exceção.
Através
do crime a solidão ama. Para esses solitários nunca foi possível
amar senão torturando, esfaqueando, estrangulando, para
obrigar o mundo opaco e hostil a abrir-se numa receptividade tão
necessária, tão vital, que não há outro meio senão o de
comprá-la a sangue.
*
Chico Lopes é programador e comentarista de filmes do Instituto
Moreira Salles de Poços de Caldas e escritor (Nó de sombras, contos). Amar
através do crime faz parte de um livro seu de ensaios
- Amar e morrer no cinema
- ainda inédito.
*
Leia também
um ensaio
do autor sobre Blade Runner.
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