ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

JOSÉ AGRIPPINO DE PAULA E SEU ROMANCE PÓS-MODERNO PANAMÉRICA

 

Chiu Yi Chih

 

No dia 4 de julho de 2007 morre o grande escritor brasileiro José Agrippino de Paula. O bruxo do Embu como ficou conhecido – por se refugiar no Embu das Artes – era considerado artista inovador no campo do cinema, do teatro, e sobretudo, na literatura. Conhecido por alguns e ignorado por muitos, Agrippino de Paula, na concepção de Caetano Veloso, tornou-se uma figura fundamental e decisiva para o movimento tropicalista, visto como guru precursor de todas as ousadias libertárias de sua geração. Era um escritor pouco lido pela crítica, pessimamente divulgado e quase desaparecido no ambiente artístico. Contudo, no seu livro Verdade Tropical, Caetano já reconhece ser profundamente influenciado pela arte de Agrippino; ele nunca havia conhecido um homem tão inteligente e intelectualmente inventivo. Outro crítico e escritor de peso, Carlos Heitor Cony, também o reconhece no seu prefácio ao romance Lugar Público, na primeira edição do livro em 1965. Para Cony, o seu estilo literário representava um gesto radical de inovação no campo da prosa ficcional brasileira. O físico e intelectual Mário Schenberg afirmou no prefácio da primeira edição do PanAmérica que ele era “uma das personalidades mais poderosas e significativas da nova geração dos escritores brasileiros”[1].

 

Então, se Agrippino de Paula foi tão influente na sua época e ainda continua sendo uma referência artística, por que a crítica se posiciona de modo tão “reticente” em relação àquilo que o escritor inagurou na literatura brasileira? Se sabemos que ele foi tão determinante para a geração da tropicália e, de certo modo, para a literatura brasileira dita pós-moderna, por que ela finge desconhecer a sua obra? Meu objetivo aqui é apenas revelar uma das facetas de Agrippino: a sua criação literária, e especificamente, a importância do seu romance PanAmérica para a compreensão da sociedade contemporânea.   

Sem dúvida, Agrippino foi o que houve de mais “pós-moderno” no que diz respeito ao experimentalismo artístico naquele período da ditadura militar: no cinema, com Hitler Terceiro Mundo (1968), no teatro, com Rito do Amor Selvagem (1969), e na literatura, com PanAmérica, publicado em 1967, no mesmo ano de Alegria Alegria de Caetano, O Rei da Vela de Zé Celso e Terra em Transe de Glauber Rocha. Era o auge do tropicalismo. A cultura brasileira passava por grandes transformações. O mundo estava dividido em dois blocos econômico-políticos, a saber, o capitalismo liderado pelo império norte-americano e o comunismo subsidiado pela ex-União soviética. Nesse cenário político-cultural, ocorria uma série de mudanças significativas. Formas novas de percepção e sensibilidade estavam sendo promovidas pelo anarquismo hippie e contracultural. A arte popular e a arte erudita se mesclavam e fomentavam novas experimentações. Desse modo, o escritor fazia confluir várias linguagens na sua narrativa: cinema, história em quadrinhos, teatro, música, performance, artes plásticas, happenings e arte pop.

 

O guru do movimento tropicalista não deixava de ser um autor experimentalista. As referências literárias e artísticas trazidas por Agrippino de Paula possibilitaram novas experiências estéticas. Como sublinhou Caetano Veloso em seu prefácio ao PanAmérica, o escritor conseguiu criar na literatura brasileira contemporânea uma epopeia extremamente original, cujo narrador se revela um “não-herói”, “fragmentário” e “não-subjetivo”, um ser que submerge friamente nas catástrofes de um universo pós-moderno.[2]

De fato, não há nada comparável ao PanAmérica, livro de referência para toda geração dos anos 60. O romance é antevisão da nossa sociedade contemporânea, metáfora ampliada do caos e da fragmentação das subjetividades pós-modernas. PanAmérica se apropria dos ícones da cultura de massa e põe em discussão a questão da identidade do sujeito, os valores da sociedade de consumo e suas representações imaginárias. Trata-se de um romance épico cuja narrativa se constrói fundamentalmente nos ícones do imaginário coletivo. Ao lermos as primeiras linhas do romance, não conseguimos identificar o motivo psicológico que determina as ações das personagens, já que a sua densidade psicológica é quase apagada. As personagens são ícones famosos da época, artistas do cinema hollywoodiano e figuras representativas do cenário político internacional: Marilyn Monroe, Burt Lancaster, Marlon Brando, general francês Charles de Gaulle, Che Guevara etc. Elas simplesmente compõem o quadro da narrativa e estruturam o seu tecido com ações vigorosamente fantásticas.

 

O curioso é que a narrativa de teor fantástico se desenrola em alta velocidade, assemelhando-se a um mundo virtual, um videogame surrealista repleto de acidentes e imagens disparatadas. Destilam-se assim, nesse universo virtual, “personas” esvaziadas de subjetividade, espetáculos “gratuitos”, violências banalizadas que eclodem e ecoam um certo realismo antipsicologizante. Tal universo de fantasia parece ser, ao mesmo tempo, tão irreal e verdadeiro quanto a dura e crua realidade. Em outras palavras, não sabemos se é mais real o próprio mundo das imagens, ou se é mais absurda a nossa própria realidade. Embora sejam aparentemente reais e concretas, no fundo, as suas personagens se reportam às figuras fantasmáticas do inconsciente coletivo: elas representam o inconsciente maquínico da produção social, os desejos e os sonhos de todo indivíduo consumidor. Nesse quadro fantástico, não são mais possíveis a vida e a psicologia das personagens. Assim, à primeira vista, não observamos indivíduos com seus dramas particulares, e sim ícones midiatizados pelos mass media.

 

O protagonista do romance, que é o diretor de uma filmagem hollywoodiana, desliza de uma ação a outra de modo inteiramente alucinado. Preocupado com a atuação de Burt Lancaster como Anjo do Senhor logo no início de seu filme, ele se lança à uma espécie de automatismo mecânico. Ignoramos a identidade do narrador, a sua motivação psicológica. Tudo o que faz é dirigir o filme e dar as instruções para os atores. Entretanto, todas as suas ações soam despropositadas e “ilógicas”.

 

Eu gritei irritado com Burt dizendo que eu pretendia colocar o seu dublê na cena da fuga dos judeus, mas que é ele que havia insistido para ser ele mesmo o Anjo do Senhor. Burt continuou falando de cima do caminhão dizendo que ele nunca havia usado dublê em nenhuma produção, mesmo nas cenas de perigo. Eu saltei para a carroçaria do caminhão ao lado de Burt e gritei para o motorista, batendo na capota: “Estúdio F!” O motorista deu a partida rápido e o caminhão tomou o rumo do estúdio F (p.14)[3].

 

O narrador-personagem, que relata os eventos em primeira pessoa do singular e age de modo paranoico, parece a todo momento mudar de cenário; fragmentado como as próprias imagens televisivas contemporâneas, o seu corpo migra alucinadamente de um espaço a outro, como se a sua identidade fosse a própria imagem metafórica da fragmentação. As ações se enovelam numa velocidade atordoante, como ocorre num filme de ação: abrupto, entrecortado e descontínuo. Mal termina o diálogo com Burt Lancaster, o narrador-personagem já se desloca para outro espaço para iniciar uma nova ação.

 

Diante do imenso pátio do estúdio F estava a multidão de extras sentados um ao lado dos outros conversando entre si. Os três assistentes de direção correram para mim e disseram que estavam instruindo a multidão de extras a respeito da filmagem por meio dos alto-falantes. Eu avistei no meio da multidão vestido de longas túnicas Cary Grant, com sua imensa barba de patriarca e cabeleira branca (p.15).

 

Após a instrução dada aos assistentes de direção, o narrador simplesmente se atira para um outro lugar. Esse deslocamento pelos espaços é constante no romance todo.

 

Eu me despedi de Cary Grant e fiz sinal para o caminhão, saltei para cima e disse: “Estúdio H!” Burt fez um sinal para mim mostrando os fios de nylon que o prendiam ao helicóptero, o caminhão passou perto de Burt e eu gritei: “Eu volto!”, e o caminhão tomou o rumo do estúdio H zunindo entre as duas ruas onde estavam espalhados os extras vestidos de soldados egípcios e de judeus (p.15).

 

Nesse contexto onde todos os seres se superficializam e se banalizam, nenhuma personagem é capaz de formar uma ideia crítica a respeito do mundo. Todos parecem agir de maneira mecanizada. É como se tais personagens alegóricas do romance, que abastecem a indústria do entretenimento e atendem aos anseios da coletividade,agissem única e exclusivamente em função de produzir espetáculos e catalisar o sonho das multidões.A sua presença obsessiva emoldura aquilo que chamanos de “sociedade do espetáculo”: são figuras universalizantes que encarnam o desejo coletivo. Ora, uma passagem do PanAmérica expõe a confluência do desejo da personagem e o das massas anônimas, onde já se opera o fenômeno do jogo das representações.

 

Marilyn subiu sorrindo e o seu biquíni tinha escorregado entre as pernas e ela mostrava as nádegas reluzentes e o triângulo de pêlos molhados. Eu falei para ela que nós iríamos comprar aquela casa, e que a piscina era ótima e o jardim muito amplo. Marilyn concordou comigo e começou a subir orgulhosamente a escada de concreto que levava aos trampolins. No momento em que ela subia e eu a acompanhava conversando a respeito da casa, todos os atores, atrizes, garçons e convidados olharam para o seu corpo lindo e firme que brilhava à luz do sol. O biquíni de Marilyn Monroe estava caído entre as pernas e as suas nádegas firmes, o triângulo de pêlos molhados, e o seu corpo jovem subia as escadas de concreto e refletia a luz do sol. E o seu profundo orgulho e desprezo por aqueles que a admiravam de baixo se transmitia para mim, e eu e ela continuávamos subindo as escadas conversando a respeito da casa que nós iríamos comprar, e eu me sentia seguro e Marilyn Monroe era a mulher que eu desejava profundamente para mim, e que todos desejavam e ela me pertencia (p.59).

 

Nesse trecho, como se observa, o protagonista se deslumbra com Marilyn Monroe. A subjetividade do narrador – incluindo os seus desejos mais íntimos – se torna passível de ser moldada e colonizada pela imagem da estrela hollywoodiana. De certo modo, a passagem é emblemática, porque reflete o processo de modernização pelo qual o Brasil estava passando naquele período. Nossa cultura multifacetada estava sendo determinada pela cultura norte-americana. No campo dos costumes e das ideias, no domínio econômico, na política e na cultura em geral, tudo parecia ser moldado pelo imperialismo norte-americano via Hollywood. É nesse contexto político-cultural que se desenvolvia a cultura de massa através da invasão maciça de produtos importados como televisores, automóveis, eletrodomésticos, ou seja, todo um conjunto de valores e bens de consumo que constituíam o estilo americano de vida (american way of life). É por esta razão que toda narrativa se constrói num grande “playground” lúdico, delirante e infantil, sem deixar de ser uma crítica velada ao capitalismo norte-americano. A sua crítica é ambígua. Em nenhum momento da narrativa, o narrador explicita julgamentos morais, expondo discursos, opiniões ou pontos de vista ideológicos. Ele nos conduz na narrativa e nos “ilude” através da infantilidade surrealista que transparece nas ações e nos eventos narrados.

 

Eu e Marilyn descemos uma pequena escada e, quando pisamos o último degrau, um filhote de leão que estava estendido na grama me mordeu o calcanhar. O filhote de leão permanecia com os dentes presos ao meu calcanhar e ele não prendia forte com os dentes. Eu pensei que eu não deveria retirar o filhote de leão, porque ele poderia chamar os leões com um pequeno urro. Mas o filhote de leão parecia brincar comigo, e continuava com os dentes presos levemente ao calcanhar do meu sapato enquanto rolava o corpo na grama (p.48)

 

Os quadros se encadeiam numa forma descontínua. Cada quadro traz um sentido fugidio, incompleto, mas, apesar disso, cada bloco de imagem se entrecruza com um outro num mesmo fluxo temporal. Há – digamos – uma descontinuidade na própria continuidade dos eventos. Do ponto de vista narrativo, todos os fatos se sucedem no aqui e agora[4]. O fluxo narrativo faz com que todas as imagens se encadeiem numa única sequência textual, atráves da alternância de verbos no pretérito perfeito e imperfeito, o que suscita a percepção de um único continuum que se arrasta e perdura infinitamente. Como se o tempo presente – o da ação – se efetuasse permanentemente sob um fundo espesso e indiviso. Acrescenta-se a esse fato a ausência estilística dos parágrafos, o que só acentua o ritmo das imagens e a verossimilhança da sua construção alegórica. Assim, quem estiver lendo e vendo esse fluxo de fragmentações, perceberá que a realidade construída pela linguagem ficcional se processa num tempo instantâneo, ao mesmo tempo que numa espécie de correnteza de imagens e informações simultaneamente conectadas. É como se estivéssemos vendo as cenas da novela das oito associadas à propaganda comercial e outras inúmeras imagens caóticas comprimidas num mesmo fluxo informacional. Veja-se como o narrador-personagem constrói a sequencialidade das imagens. 

 

Eu segurei a pequena cabeça do filhote de leão e o afastei colocando-o na grama. Eu e Marilyn Monroe nos afastamos rindo e pisando na grama do parque dos leões e vimos no mar os pequenos barcos puxados por golfinhos. Eu entrei num dos barquinhos e Marilyn Monroe entrou no outro. O golfinho saltou na água puxando o barco, que deslizava no mar ao lado das torres de concreto. Outro golfinho puxou o barquinho de Marilyn Monroe e eu e ela gritávamos de alegria no mar (p.49).

 

Num ritmo semelhante à velocidade dos videoclips atuais, comparecem em cena personagens do cinema hollywoodiano, a fim de produzir uma atmosfera mágica artificializante – exatamente como ocorre nos nossos programas de auditório, propagandas comerciais e filmes de entretenimento.

 

Eu desci do palco, enquanto os operários, o cenógrafo e o diretor trabalhavam com rapidez e habilidade na montagem do cenário. Instantes depois o cenário estava montado, e era o interior de uma casa agradável e simples. Os atores entraram no cenário e começaram a representar uma família americana classe-média. Eu sorria com a cena que transcorria no palco e me sentia feliz. Os atores representavam uma família feliz, e eu via na porta da casa um vaso de flores, e eu me sentia feliz de ver aquela família classe-média americana, o pai conversando com a filha, o filho conversando com a mãe e os irmãos. A harmonia e felicidade da cena se transmitiam para mim, e eu sorria imaginando que eu futuramente poderia formar uma família exatamente igual àquela (p.34-35).

 

A cena transcrita acima projeta personagens que remetem ao próprio universo da ficção: operários, cenógrafo, diretor e atores. Há algo de cômico nessa cena: o narrador observa a própria ficcionalidade do real, a “montagem ficcional” de uma família americana classe-média. Ele narra os eventos como se fosse “reais”, mas, no fundo, nós, que somos leitores, sabemos que tudo é uma ficção. No entanto, acompanhamos a narrativa pelos olhos do narrador, e por isso, acreditamos que é também uma realidade. Assim, suprime-se a distância entre o universo relatado e a construção imaginária do narrador, entre aquilo que sucede e aquilo que se opera no mundo fictício do narrador. Disso temos exemplos excelentes na prosa de Virginia Woolf, Clarice Lispector e James Joyce, a saber, o uso do monólogo interior que capta o fluxo da consciência. No caso de Agrippino, não há essa profundeza interior a ser revelada na narrativa. Ao contrário, o narrador – sem nenhuma densidade psicológica – avança num fluxo desmedido, e todos eventos fantásticos se encadeiam na trama. É isso que dá verossimilhança à sua narrativa fantástica, e um grau de “verdade” ao processo de constituição lógica de um sujeito fragmentado. Porque justamente há uma reinvenção do foco narrativo através da qual se impulsiona a tessitura ficcional ao ponto máximo de sua surrealidade, uma vez que o escritor opera com o paralelismo sintático e com o discurso indireto, tornando a sua narrativa uma espécie de aventura silogística e, ao mesmo tempo, esquizofrênica. 

 

É o que acontece quando se suprime num só tempo o intervalo entre a representação ficcional operada pelo narrador e a nossa própria representação. Ou seja, a narrativa procede a uma metalinguagem do próprio processo de ficcionalização e o que vemos é o entrecruzamento de três planos: o plano da ação encenada, o plano da narração ficcional e o plano da leitura-recepção. O magnífico de toda essa operacionalização – que é constante no livro – é que essas três camadas se costuram magistralmente na tessitura narrativa. Ocorre, portanto, a interrelação dialética entre o imaginário do leitor, ou seja, aquela representação imaginária que acontece no momento da leitura, o imaginário ficcional criado pelo narrador e o imaginário da representação inscrito na própria narrativa. Tal interrelação aparentemente discreta esconde o caráter “fantástico” dos eventos. Estamos assim diante de um mundo fantasticamente possível. O leitor tem a sensação de oscilar continuamente entre os limites do real e do ficcional. Todavia, a narrativa é conduzida com a máxima naturalidade. O realismo mágico dos eventos se conjuga com a voz do narrador. Não só os registros do real e do ficcional se embaralham, confundindo assim a percepção do que é verdadeiramente real, como todas as imagens sequenciadas se aglomeram, produzindo, nesse caso, um único agenciamento perceptivo. Somos, do ponto de vista metalinguístico, espectadores de uma sociedade midiatizada pela imagem. Somos “imagens” e construímos “imagens” para preencher esse mundo oco e cinzento. Mas são imagens resultantes do próprio processo econômico-social. Guiados por este processo esquizofrênico, tornamo-nos produtos, pacotes adornados, mini-caixas de autorepresentações. Isso porque, em primeiro lugar, o eu se representa para si mesmo; em segundo lugar, ele se representa para um outro, e, em terceiro lugar, se imagina pertencente a um espetáculo coletivo. O indivíduo se transforma em reflexo catatônico –  imagem do outro. É tudo muito excessivo, saturado imageticamente.

 

Do ponto de vista conceitual, isso significa que o romance PanAmérica pode ser considerado como uma metáfora dos processos de alienação na sociedade contemporânea. O que está em questão é a pluralidade de imagens compartilhadas socialmente, administradas e organizadas sob um sistema de valores capitalistas, um painel alegórico de personas, desejos, ações e imagens da sociedade de consumo. No texto de Agrippino, confluem-se vertiginosamente as micronarrativas de tais imagens, deixando-nos assim a impressão de vermos um filme-mosaico, uma montagem cinematográfica, montagem esta realizada pelo próprio narrador-diretor fascinado pela espetacularização. O signo do “espetáculo” percorre e atravessa as intermitências da narração. Ora, é nesse ritmo cinemático e veloz que o narrador-personagem extrapola não somente os limites do imaginário individual – alcançando a esfera do imaginário coletivo – como transpassa os limites espaço-temporais. A repetição obstinada do pronome de primeira pessoa (Eu), ao invés de demarcar a esfera da interioridade e o campo emotivo de uma experiência vivida, desencadeia uma dispersão, uma fragmentação identitária. Desse modo, o eu se dispersa, se fragmenta. Ao invés de ser um sujeito autônomo constituinte de suas próprias experiências, ele acaba sendo constituído por elas. Não se autodetermina, mas é determinado pelo ritmo das circunstâncias. É um ser que age à revelia, hedonisticamente. Abrevia uma dada ação e, sob o influxo de uma outra necessidade, é arrastado para uma cena inusitada. A categoria do sujeito enquanto princípio de identidade é relativizada, e consequentemente, o que resta dessa desconstrução do eu é apenas um pedaço, uma imagem dentre as outras imagens. É nesse turbilhão de fragmentos aparentemente desconectados entre si que se descontrói o sujeito da narrativa. Nesse caso, é como se o narrador, perturbado pela sucessividade ilógica de um tempo voraz, quisesse também registrar as imagens, enfeixando-as num único formato, tornando-se assim, ele próprio, um olho cinematográfico ou, até mesmo, o próprio filme que dirige. 

 

O que se produz então é um espaço multidimensional. Micronarrativas que transbordam todo espaço cartesiano e linear com o qual estávamos habituados. Agrippino prenuncia a literatura da web, a arte daqueles que buscam navegar nas fronteiras. Toda a arte que vai desde a música sampleada, a vídeo-instalação, a poesia experimental até a performance contemporânea com as suas diversas modalidades. O princípio de realidade que rege e domina a razão discursiva é substituído, ou pelo menos, anulado pelo princípio de prazer. Esse hedonismo pop, de certa maneira, é constituído por um conjunto de performances lúdicas. Por exemplo, a cena do general Charles de Gaulle no estúdio de Hollywood:

 

O General Charles de Gaulle visitava o estúdio falando com um outro francês, cercado de deputados, fotógrafos e repórteres. O general falava em francês para a multidão de extras, atores e técnicos e soltava risos largos e graves. De Gaulle abriu caminho entre a multidão de extras e sentou no seu triciclo movido por uma alavanca. Era um carrinho de criança movido por uma corrente ligada à alavanca (p.56).  

 

Essas performances lúdicas são esquizofrenias erguidas sobre o caos do nosso capitalismo. Sem pudor, agimos de modo tão alucinado como indivíduos hipermodernos (Gilles Lipovetsky) à beira do nosso próprio naufrágio. Como o personagem atleta Di Maggio que se agiganta numa cena apocalíptica.

 

As trombetas e os tambores tocaram e apareceu no túnel Joe Di Maggio sendo levado num palanque por dez negros eunucos de saiote dourado. A multidão se levantou e todos cantaram o hino da chegada de Di Maggio. O herói Di Maggio, de capacete dourado, brilhava ao sol e o atleta agitou a sua foice de prata e a sua capa de seda vermelha...O rosto de Di Maggio estava vermelho como um anúncio luminoso e de seus olhos saíam pequenas faíscas. A multidão se encontrava paralisada nas arquibancadas e todos pressentiam que iriam ser esquartejados. Di Maggio deu um segundo grito potente e terrível saltando para cima e agitando a foice. Di Maggio partiu veloz contra a multidão de espectadores, que fugia em pânico. Di Maggio degolou os quarenta guardas que ocupavam o alambrado com um só movimento de foice, e depois partiu esquartejando os espectadores. Saltavam cabeças, pernas, braços, corpos para todos os lados e aqueles que não eram esquartejados pela foice eram esmagados pelos pés de Di Maggio (p.86).

 

Agrippino trabalha essencialmente com a fragmentação do enredo, a colagem e a simultaneidade das percepções. É esta a experiência da desconstrução narrativa, a qual não se refere senão à desconstrução da própria subjetividade. A proliferação da sociedade de espetáculo, o reality show, a standardização dos costumes, dos desejos e dos meios de comunicação é apenas o sintoma-limite de um processo de esquizofrenização. Nesse sentido, o romance PanAmérica é desconstrutivista, visto que o texto se apresenta sem pausas e parágrafos, eivado de lianas e constelações que nos atormentam, como nos atormenta a máxima e excessiva produção das imagens midiáticas. São flashes surrealisticamente criados e abruptamente interrompidos, desfile de imagens oníricas, simulacros aterradores. Pois, essa narrativa fantástica, e ao mesmo tempo, extremamente burilada, quebra os eixos, suprime a abordagem psicologizante. Anuncia nosso mundo de imagens instantâneas, sempre deleuziano como já dizia Michel Foucault a respeito do século XXI.

 

A literatura de Agrippino se sintoniza com esta valorização crescente dos blogs, dos diários virtuais e facebooks na literatura contemporânea. E, de certo modo, essa é a narrativa contemporânea do século XXI, a qual, por sua vez, é visceralmente saturada da dança frenética dos simulacros midiáticos. O romance permite-nos, desse modo, múltiplas formas de leitura, e “minha leitura” é apenas uma visão, uma leitura dentre outras. É possível ver ali uma crítica não-discursiva, uma crítica performática – se podemos nos exprimir assim –simulada nos termos de uma narrativa desconstrutivista. Assim, Agrippino de Paula rompe com a linearidade do discurso ficcional, e sobretudo, com aquela do discurso pretensamente ideológico e politizante encontrada em certas obras literárias.

 

No mundo capitalista e controlado onde imperam a espetacularização, o individualismo e o consumismo, pouco tempo há para a verdadeira comunicação, o que torna cada vez mais difícil o diálogo entre as subjetividades enclausuradas. As distâncias, os locais, as diferenças e os compromissos individuais nos apartam cada vez mais do convívio humano. Daí a necessidade de compensações fabricadas para aliviar a dor de nossas neuroses e esquizofrenias, a obsessão por ídolos e imagens lúdicas. É como se os seres humanos começassem a imitar esquizofrenicamente os seus ídolos hipostasiados em altares e simulacros. Nesse terreno de “liberdade” propiciado pelo progresso civilizatório, os indivíduos agem hedonisticamente satifazendo os seus impulsos infantis e regressivos. Os fluxos do desejo escorrem livremente de um ponto a outro sem interferência de uma instância repressiva. O sujeito, nesse caso, passa por uma intensa “esquizofrenia”, que também é um extravasar, um romper com os limites – daí a imagética sequenciada num continuum temporal ininterrupto cuja substância nos recorda a dimensão do sonho. E, talvez, PanAmérica não seja uma crítica ao capitalismo no sentido comum do termo, porque, nesse caso, não seria obra de arte, mas um tratado ou um mero manifesto ideológico. Ora, o que se pode pressentir nas cenas desse sonho esquizofrênico é a utopia do desejo, a utopia de tudo aquilo que escapa ao processo do controle capitalista. Ou seja, se o capitalismo carrega uma tendência paranoica e institui as suas territorialidades imperialistas sobre os corpos dos indivíduos, colonizando os seus desejos, podemos encontrar o seu limite oposto no modo como o próprio capitalismo se esquizofreniza. O capitalismo reprime, refreia, territorializa, mas também engendra o seu caos, se desterritorializa. Ele é ordem e desordem em um só tempo.

 

Quando se diz que a esquizofrenia é a nossa doença, a doença do nosso tempo, não se está dizendo apenas que a vida moderna enlouquece. Não se trata de modo de vida, mas de processo de produção...De fato, queremos dizer que o capitalismo, no seu processo de produção, produz uma formidável carga esquizofrênica sobre a qual ele faz incidir todo o peso da sua repressão, mas que não deixa de se reproduzir como limite do processo[5].

 

Se, no processo de territorialização, somos devorados pela paranoia, no movimento de desterritorialização somos levados a um estado de espírito genuinamente “esquizofrênico” e catalisador de novas experiências artísticas. É, portanto, nesse território que aflora o limite máximo do capitalismo, a saber, os fluxos de desterritorialização onde as identidades, esgarçadas e livres, flutuam livremente. Nesse ponto, PanAmérica é um pacto com Mefistófeles, com todas as delícias e crueldades inerentes ao processo-esquizo: a fragmentação da subjetividade, a dispersão do desejo, o caos do próprio capitalismo. Mais do que uma crítica ao imperialismo capitalista norte-americano, PanAmérica assimila positiva e antropofagicamente a cultura pop e as suas inovações artísticas. O livro precisa ser redescoberto pelas novas gerações. Sabe-se que ele foi tão fundamental para os tropicalistas e escritores outsiders que até hoje não há nenhum romance que lhe supere. É possível também, com a sua leitura, redimensionar as contradições atávicas de nosso país subdesenvolvido, destacando as facetas de nosso ser brasileiro: infantil, lúdico, esquizofrênico, delirante, “dionisíaco”, “multiétnico”, já que PanAmérica é como uma epopeia, uma Ilíada: leque multifacetado, mito às avessas, utopia do Eros, sonho impossível de todo ser .

 

 

NOTAS

 

[1] José Agrippino de Paula, Panamérica, Editora Papagaio, 2001, p.11 (30edição).

[2] José Agrippino de Paula, Panamérica, Editora Papagaio,p.2001.

[3] José Agrippino de Paula, Panamérica, Editora Papagaio, 2001.

[4] É como se PanAmérica nos dissesse que a única realidade que existe é o tempo do presente, condicionado pela fruição hedonista, espetacularização dos seres e dos objetos, consumismo e diversão.

[5] Gilles Deleuze & Félix Guattari, O Anti-Édipo, Editora 34, 2010, p.52.

 

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Chiu Yi Chih é mestre em filosofia pela Universidade de São Paulo, escritor, professor de filosofia e performer.

 

 

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