“Os poetas são malditos mas não são cegos, eles enxergam com os olhos dos anjos”. Essa frase luminosa revela algo da poética de Roberto Piva. Em certo sentido, Piva compartilha da tradição dos malditos (Sade, Lautréamont, Rimbaud, Baudelaire, poetas beatniks) tanto quanto da magia visionária e do êxtase xamânico (Mircea Eliade). Sua poesia é visionária na medida em que o poeta se faz vidente, buscando sempre o desregramento de todos os sentidos. E maldita porque nunca se conforma com as regras sociais, sendo justamente uma forma transgressiva de romper com a normalidade.
Poeta que vislumbra brechas e horizontes, Piva é criador de sonhos, visões e devaneios. As suas visões são originalíssimas. Como dizia o filósofo Gilles Deleuze, o artista é criador de perceptos e afectos. Ele cria blocos de percepção e de sensação que se erguem como monumentos gigantescos. E a originalidade de Piva, no meu ponto de vista, reside no fato de que sua poesia instaura perceptos e afectos na realidade mundana. A realidade se transmuta nos seus gestos. É nesse movimento de “mutação das formas” no plano das significações e dos símbolos que vejo a potência da poesia de Piva dentro do cenário da literatura brasileira contemporânea.
Como o próprio poeta declara num dos seus poemas do Ciclones:
a poesia mexe
com realidades não-humanas
do planeta
profecias
espíritos animais
vidência
estrela bailarina
lugares de poder
fogo do céu
Nos seus últimos livros Ciclones e Estranhos sinais de Saturno, pressentimos a força dos perceptos que se ancoram numa dimensão ecológico-existencial cujo domínio ultrapassa o mundo dos seres humanos. A poesia se torna presença totêmica, epifania de um ser sagrado que fala pelos orifícios dos vegetais e que escorre nas realidades não-humanas.
Jurema preta
Sou aluno
das árvores
alma elétrica
nas veredas mais secretas
Catimbó sonâmbulo
& seus palácios
meu crânio virando brasas
desfolhando meu coração
mananciais transfigurados
na
memória
A propósito dessas “realidades não-humanas”, podemos considerar os afectos como “devires não-humanos do homem” enquanto “os perceptos (entre eles a cidade) como paisagens não-humanas da natureza”. A arte busca a expressão dessas realidades por meio da criação de perceptos e afectos, enquanto a filosofia o faz por meio da criação de conceitos. No fundo, ambas comungam de um mesmo esforço de transcendência: são criadoras no sentido de uma gênese epistemológica –esse ato dificílimo de transfiguração do real. E o que vemos nas obras-de-arte são blocos de sensação e de percepção, os quais segundo Deleuze, se repetem de modo rítmico. São aqueles ritornelos que aparecem no canto dos pássaros e se repetem para constituir o seu próprio habitat. Ritornelo “é um jorro de traços, de cores e de sons, inseparáveis na medida em que se tornam expressivos...”. Desse modo, os pássaros são vistos como verdadeiros artistas. Um poema, uma dança e uma música são compostos por fragmentos rítmicos ou ritornelos que cristalizam agenciamentos existenciais. É nesse sentido que se diz que o artista cria um universo de afectos e perceptos. No caso específico de Piva, são aqueles perceptos criados a partir das imagens do Sonho e de uma Natureza convulsiva.
O poeta mobiliza “máquinas desejantes” – para usar uma expressão cara à filosofia deleuziana – e as conecta com outras máquinas num fluxo contínuo infinito. Costura um curto-circuito de fluxos, uma imensa usina de máquinas. Desde a máquina-ânus até a máquina-boca, passando pelo seu corpo, mas também atravessando outras esferas, costurando os objetos parciais de seu desejo. Toda máquina desejante corta, extrai e se conecta funcionando como uma produção. Nesse processo de sínteses e disjunções maquínicas, o que se verifica não é apenas a zona indefinida de uma região denominada inconsciente, mas a produção material do inconsciente. Essa mesma produção é social, libidinal e sígnica. Trata-se de uma mesma produção: a produção social, a produção dos desejos e a produção da linguagem.
O que é produzido é uma escrita “plurívoca”, “transdiscursiva” onde são evocados seres numinosos, espíritos ancestrais, criaturas do submundo. Evocação que também é uma epifania xamânica de todos seres visíveis e invisíveis. É sintomático que tal evocação seja uma forma de superar a “permanente falha mecânica na civilização que perdeu o Maravilhoso”. Uma espécie de auto-superação (Nietzsche), afirmação dos impulsos mais arcaicos, assumindo uma existência mais autêntica (Heidegger).
come o teu cogumelo
no coração do sagrado
fazendo sinais arcaicos
procura entre praias, montanhas
& mangues
a mutação das formas
Uma celebração da vida e da anarquia sob a máscara de Dionísio. Panteisticamente. Em sintonia com as diferenças, as singularidades e o universo pagão- paradisíaco.
Este paraíso é assim:
repleto de raças respiratórias.
Nuvens, periquitos, uvas negras
à beira do deboche.
Nesse aspecto, o ponto nevrálgico dessa poesia se encontra no fato de que ela transborda o universo humano e adentra as esferas extra-mundanas. Dionysos é sempre invocado como o signo do Outro e da Natureza. “Dionysos, na Grécia Antiga, era o Deus da vegetação, da orgia, do vinho, da anarquia. Para começar a falar em Ecologia, precisamos iniciar a gira invocando Dionysos, que traz a renovação da primavera e da vegetação.” Com a modernização e o capitalismo predatório, seria preciso criar um SINDICATO DA NATUREZA. Daí por que diante da catástrofe natural os “rios” venham a se revoltar exigindo os seus direitos no delírio do poeta:
Chapéus do irmão Ciclone
Os rios revoltados saberão
vingar-se
Oh Paracelso
Oh Dino Campana
Oh Xangô
da minha janela da lua
vejo cidades que
sufocam no cimento
rosas de barbitúricos explodindo
nas sacadas
garotos de bicicleta dissertando
sobre a vida dos deuses
É como se o eu poético, num espasmo dionisíaco, se consubstanciasse com rios, plantas, serpentes, relâmpagos, anjos, orixás, ovnis, garotos andróginos e uma imensa variedade de seres polimórficos. A sua identidade, assumindo dimensões múltiplas, se dispersa em infinitas diferenças. Renasce em vários rostos. Revela seres e espaços dissonantes de energia. Como feiticeiro xamã, sobe aos céus e desce aos infernos para trazer curas, ensinamentos e forças revigoradas aos homens.
rico de asas
o menino xamã
incorpora o gavião
escuta a luz do monte
fica nu & deita impassível na Terra
é dele o tambor feito de Tíbias
& a estrela mais límpida na
cabeça
É visível um universo ilimitado de devires (devir vegetal, devir animal, devir menino, etc). São tantos devires inundando o espaço do seu poema, tantos ritornelos inesperados.
Terra elétrica
Mitra Sol invictus
nos corredores energéticos
nas gavetas de orgônio
fonte primordial da leveza
do mundo laranja azul
nos estádios extraterrestres
onde se aplaude Richard Wagner
& Nelson Cavaquinho
equilibrando o furor & o amor
a dança da tartaruga verde
a desmunhecada mortal do Leopardo
o peixe palhaço
o garoto borracheiro voando
pra Lua
os escorpiões mastigam as calçadas
escalando os séculos os elefantes
levantam as nuvens
no seu vôo alquímico para a Eternidade
o Gavião de Penacho
Frequentemente saboreamos também a fusão do eu poético com um elemento da natureza, um animal de poder xamânico:
eu sou o cavalo de Exu
ebó
do meu coração
despachado
na encruzilhada dos cometas
O eu poético sempre permanece aberto aos caminhos do êxtase, à embriaguez dionisíaca, aos encantos de seu universo erótico. É que para Piva a poesia sempre teve a missão de expandir as janelas de nosso olhar. “Poesia”, como ele próprio afirma, “é uma forma de conhecimento que vê através de objetos opacos, como uma viagem de LSD e estados mediúnicos de levitação.”
No Paranóia, não é por acaso que se produzem imagens surrealistas onde a justaposição de realidades distintas suscitava um efeito quase hipnótico. Mas havia sempre nessa escritura uma consubstanciação epifânica, uma aderência ao mundo vital. Uma espécie de imersão fenomenológica nas entranhas do mundo onde os limites entre o sujeito e a realidade se apagam. Assim, por exemplo, no poema Stenamina boat:
Eu queria ser um anjo de Piero della Francesca
Beatriz esfaqueada num beco escuro
Dante tocando piano ao crepúsculo
eu penso na vida sou reclamado pela contemplação
olho desconsolado o contorno das coisas copulando no caos
Eu reclamo uma lenda instantânea para o meu Mar Morto
Tempo e Espaço pousam no meu antebraço como um ídolo
há um osso carregando uma dentadura
Eu vejo Lautréamont num sonho nas escadas de Santa Cecília
ele me espera no largo do Arouche no ombro de um santuário
hoje pela manhã as árvores estavam em Coma
meu amor cuspia brasas nas bundas dos loucos
havia tinteiros medalhas esqueletos vidrados flocos dálias
explodindo no cu ensanguentado dos órfãos
meninos visionários arcanjos de subúrbio entranhas em êxtase alfinetados
nos mictórios atômicos
minha loucura atinge a extensão de uma alameda
as árvores lançam panfletos contra o céu cinza
A composição de imagens nunca é “gratuita”. A natureza e a paisagem urbana como territórios existenciais produzem uma subjetividade convulsiva. O eu se dilata nas fendas da alteridade. Nunca nos encontramos diante de uma identidade fixa e imutável. Há um transe, uma troca esquizofrênica entre o sujeito e o espaço (Paranóia) e uma síntese fragmentada entre os tempos/espaços (Piazzas). Como bem observou o crítico Cláudio Willer, “Paranóia é voltado para o presente, para a descrição, desocultação e desmistificação de um mundo circundante, tarefa esta iluminada pela evocação de Mário de Andrade, Jorge de Lima, Lautréamont e Garcia Lorca. Piazzas é intemporal, a memória, e recuperação do passado, a descrição visionária do presente, a invocação do futuro confundem-se, misturam-se ao se alternarem nestes textos com estrutura de colagem.” Se, em Paranóia, vemos uma subjetividade em confronto/ contradição com o mundo circundante, em Piazzas, vemo-la atravessar vários tempos e espaços simultâneos buscando a síntese, a superação das contradições. Essa busca da síntese passa por um tom mais lírico, intimista e coloquial:
Piazza VII
O equilíbrio (embora meu)
é um pouco teu como esta luz ao nível da maré
que tu divides benfeitor fascinando meu olho de fogo
justo
é a vibração impossível de domar agora na potência do
vazio celeste
dizem que urras
desmaias & tens visões
rolando sobre tua boca dilatada as auroras feitas de
Presa
A subjetividade atravessa as fronteiras do tempo e do espaço. No Ciclones, ela adquire cores contemplativas, integrando-se ao mundo selvagem:
Incorporando o jaguar
na escada do vento
o sonho
folha que cura
pequeno exu que
dança extático
o garoto ataca planícies
em debandada
é o coração do jaguar
na ponta de fogo
do diamante
deus rapinante
piratas que
gritam no horizonte
amando sobre a
terra nua
garras à mostra
no fundo azul da
floresta
amigo de todos os deuses
Nesse sentido, a poesia de Piva é repleta de ritornelos de animais, hermafroditas, belos garotos e paisagens epifânicas que dançam compondo uma sequência de contrastes e analogias. Isso cria um agenciamento existencial onde os sons, as cores e as imagens se justapõem constituindo relações de contraponto, formando compostos de sensações.
Mas esses ritornelos existenciais erigidos não se fecham, não se enclausuram. Conjugam a casa e o universo, o território e os estratos desterritorializados. Abrem-se para outros universos. Já podemos perceber esse plano de composição no Paranóia cujo ritmo se assemelha a um imenso fio caudaloso que avança e recua em plena paisagem industrial. Ali se percebe a autoprodução de um inconsciente à deriva. Aquilo que Deleuze denominou produção desejante, processo esquizofrênico – que não deve ser confundido com a doença mental – processo estreitamente associado à nossa sociedade capitalista. Essa autoprodução do inconsciente se deve muito à escritura surrealista.
Em meados dos anos 60, Piva e seu círculo de amigos – Cláudio Willer, Décio Bar, Sérgio de Lima, entre outros –, estavam profundamente mergulhados nas pesquisas do surrealismo e da poesia beat norte-americana. Esses dois últimos movimentos foram fundamentais para a renovação da arte. O surrealismo nos trazia a liberdade no plano da criação artística através do exercício desimpedido da imaginação. Não separava a criação artística da vida transgressora. E os beatniks influenciados também pelo surrealismo e pelas vanguardas modernistas acabaram atualizando esse mesmo princípio, criando inúmeras obras revolucionárias. Piva absorveu essa vitalidade renovando nosso modo de ver e fazer poesia. Radical como era na vida e na poesia, ele bebeu dessas fontes. Compreendeu tanto quanto Baudelaire, Rimbaud, Lautréamont e André Breton a importância do exercício da imaginação.
Num dos versos de seu poema Visão 1961 o nosso autor escrevia: minha imaginação gritava no perpétuo impulso dos corpos encerrados pela Noite. Essa proclamação atônita e lúcida já coloca Piva não só no nível dos grandes nomes da literatura brasileira como também nos grandes nomes da literatura universal; o poeta nunca esteve tão próximo dos surrealistas e do seu precursor, o famoso Conde de Lautréamont. No início do seu Poema Submerso lemos:
Eu era um pouco da tua voz violenta, Maldoror,
quando os cílios do anjo verde enrugavam as
chaminés da rua onde eu caminhava...
Tais referências aos surrealistas e ao Lautréamont nos colocam diante de um novo cenário. Piva nos aponta para algo que já estava em curso na literatura moderna: o uso dos versos livres, a oralidade na estruturação poética, a desrealização do mundo tal como vemos na poesia de Apollinaire, Garcia Lorca e Paul Éluard. Entretanto, particularmente, há na poética piviana imagens verdadeiramente assombrosas. Suas imagens são surrealistas não porque pertençam a algum movimento surrealista, mas porque suscitam o mesmo sentimento de terror que assombra os néofitos do candomblé ou os iniciados do xamanismo.
É evidente que não podemos menosprezar a importância do surrealismo na obra piviana. No início do século quando o surrealismo surgiu no horizonte das artes e da literatura, alguns artistas do movimento modernista já o vinham assimilando: Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade são exemplos claros dessa assimilação. Contudo, mesmo entre os modernistas, pairava uma certa suspeita em relação ao surrealismo, uma vez que as obras surrealistas lhes pareciam produtos de uma mera arbitrariedade, ora surgidos da inspiração ora nascidos de um irracionalismo total. Seria interessantíssimo observar o quanto artistas plásticos como Flávio de Carvalho e Maria Martins abriram nossos olhos no sentido de uma percepção mais radical e ampliada. E, desse modo, não podemos esquecer o fato de que Murilo Mendes e Jorge de Lima redescobriram o surrealismo que já estava presente no nosso imaginário barroco religioso; a meu ver, estes últimos foram poetas que não só trilharam os caminhos do modernismo, mas, fundamentalmente, espíritos, que na sua singularidade, souberam dar forma genuína ao universo amplo da “brasilidade”, renovando as estruturas obsoletas e limitadas de concepção poética.
Piva se situa nessa linhagem. É revelador que justamente Jorge de Lima tenha sido para Piva este “grande alucinado querido e estranho professor do Caos”. Vejam, por exemplo, o poema “Jorge de Lima, panfletário do Caos” no seu livro Paranóia.
Foi no dia 31 de dezembro de 1961 que te compreendi Jorge de Lima
Enquanto eu caminhava pelas praças agitadas pela melancolia present
na minha memória devorada pelo azul
eu soube decifrar os teus jogos noturnos
indisfarçável entre as flores
uníssonos em tua cabeça de praat e plantas ampliadas
como teus olhos crescem na paisagem Jorge de Lima e como tua boca
palpita nos bulevares oxidados pela névoa
uma constelação de cinza esboroa-se na contemplação inconsútil
de tua túnica
e um milhão de vagalumes trazendo estranhas tatuagens no ventre
se despedaçam contra os ninhos da Eternidade
é neste momento de fermento e agonia que te invoco grande alucinado
querido e estranho professor do Caos sabendo que teu nome deve
estar como um talismã nos lábios de todos os meninos
No poema o poeta diz que soube decifrar os teus jogos noturnos. Soa como uma espécie de “iluminação mística” à la Rimbaud, uma lúcida compreensão da própria magia poética, ao mesmo tempo que de uma consciência da tradição literária. O poeta se imagina visceralmente dentro das mesmas ondas libertárias. Tudo se passa como se nascesse um vínculo, uma matriz, uma espécie de devaneio inconsciente, onde o eu lírico experimenta o mesmo impulso visionário de Jorge de Lima. E, quando lemos que tua boca palpita nos bulevares oxidados pela névoa é nítida a imagem do próprio Jorge de Lima fundindo-se na paisagem, como se este compartilhasse do mesmo estado visionário, do mesmo “momento de fermento e agonia” em que se encontrava o poeta.
Piva se atira de modo visceral à existência e, em cada instante, penetra numa zona obscura da poesia. Como lagarto na sua caminhada pelo deserto, encontrando aqui e ali rastros perdidos, imagens e fragmentos destroçados, o poeta assume um papel de profeta maldito pós-moderno. Basta retomar aquilo que Piva disse no posfácio à primeira edição de Piazzas: “Em todos os meus escritos procurei, de uma forma blasfematória (Paranóia), ou numa contemplação além do bem e do mal (Piazzas) a la Nietzsche, explicitar minha revolta e ajudar muitos a superar esta Tristeza Bíblica de todos nós, absortos num Paraíso Desumanizado, reprimido aqui e agora.” Cláudio Willer no prefácio que escreveu para a 20edição de Piazzas observa:
“Nunca alguém antes havia ousado escrever poesia desse jeito, romper tão radicalmente com uma tradição de cultivo de uma escritura acadêmica, cerebral, assexuada e amedrontada frente à vida, tradição esta infelizmente ainda longe de ser totalmente superada.”
Nesse aspecto, é relevante perceber o quanto sua escrita insubordinada, avessa ao cartesianismo de certos cérebros bem comportados, subverte a sintaxe gramatical, a lógica discursiva, a roupagem adornada de alguns versos líricos e a disposição espacial de poemas feitos sob convenção métrica. Isso se vê claramente no poema Piazza I do seu livro Piazzas:
Uma tarde
é suficiente para ficar louco
ou ir ao Museu ver Bosch
uma tarde de inverno
onde garòfani milk-shake e Claude
obcecado com anjos
ou vastos motores que giram com
uma graça seráfica
tocar o banjo da Lembrança
sem o Amor encontrado provado sonhado
& longos viveiros municipais
sem procurar compreender
imaginar
a medula sem olhos
ou pássaros virgens
aconteceu que eu revi
a simples torre mortal do Sonho
não com dedos reais & cilíndricos
Du Barry Byron Marquesa de Santos
Swift Jarry com barulho
de sinos nas minhas noite de bárbaro
os carros de fogo
os trapézios de mercúrio
suas mãos escrevendo & pescando
ninfas escatológicas
pequenos canhões do sangue & os grandes olhos abertos
para algum milagre da Sorte
O que se vê são imagens tecidas num fluxo descomunal, num ritmo permeado de variações abruptas e disjuntivas. Relevo crivado de máquinas: “vastos motores que giram com uma graça seráfica”. De revelações: “a simples torre mortal do Sonho”. De sobreposições: “os carros de fogo/os trapézios de mercúrio”. E, sobretudo, de imagens surrealistas: “suas mãos escrevendo & pescando ninfas escatológicas”. Em última instância, o que se revê – acontecimento da ordem do indizível –é algo que ultrapassa o próprio entendimento. Aquilo que Deleuze concebia como “o impensável, o não-pensado” em Diferença e Repetição, que nos invade e nos arrasta de tal modo que somos tragados pelo mundo das multiplicidades e das diferenças, que não são senão as potências caóticas que rompem as cadeias significantes, as proposições lógicas, os silogismos, enfim, todo o encadeamento unívoco de nosso pensar.
O que é encontrado são os demônios, potências do salto, do intervalo, do intensivo ou do instante, e que só preenchem a diferença com o diferente; eles são os porta-signos.
A diferença como modo de potência é, segundo Deleuze, aquela força incorporal que resulta do embate concreto entre corpos, ações e paixões. É algo que escapa à lógica da representação, que se evade para fora das grades conceituais, não sendo possível de ser capturado como objeto de representação. É também, a meu ver, aquele mundo de imagens que Louis Aragon dizia a respeito da poesia surrealista:
O vício chamado Surrealismo é o emprego desregrado e passional do estupefaciente imagem, ou melhor, da provocação sem controle da imagem por ela mesma e por aquilo que ela traz consigo no domínio da representação de perturbações imprevisíveis e de metamorfoses.
A escrita automática inventada pelos surrealistas, utilizando-se da imagem e de uma lógica não-discursiva, já se atualizava na poesia moderna de modo bastante vigoroso. Piva, atento a essas fulgurações surrealistas, sobretudo da poesia de Murilo Mendes e de Jorge de Lima, estava buscando novas transformações no ritmo, na imagem e na estruturação do poema. Assim, seguindo o fluxo das imagens do inconsciente e captando as transformações urbanas de sua cidade, o poeta vai tecendo uma trama poética não só a partir de suas referências literárias como por meio de sua vida, de seu corpo e de suas visões apoteóticas. Seus poemas reverberam luzes alucinadas numa sintaxe agramatical. A imagem no seu movimento livre conduz o leitor.
A transgressão aparece em todos os níveis, seja estilhaçando o código linguístico oficial, seja rasgando as vísceras de seu próprio corpo angustiado. Essa transgressão poética absorve as pestilências de um estado delirante. Antonin Artaud descrevia no seu O Teatro e a Peste esse estado esquizofrênico e turbulento. A peste é esse estado diferencial em que o corpo é afetado por signos, lutas, rompimentos e cataclismas. Nessa “mudança de percepção”, desvela-se uma força impávida que, no plano da encenação, suscitaria um jogo teatral extremamente incomum. “O espírito acredita no que vê e faz aquilo em que acredita: esse é o segredo do fascínio.” Ou seja, é um estado visionário na sua plena desordem orgânica:
A peste se apodera das imagens adormecidas, da desordem latente e as impulsiona de repente até o ponto dos gestos mais extremos; do mesmo modo o teatro se apossa de gestos e os exaspera...
Só que esse estado intensivo e desordenado não é unívoco, mas cheio de variações ininterruptas, quedas e cromatismos. É passando por potências, estados, afectos e forças imagéticas que o eu poético se torna vários eus larvares, absorvendo sucessivas fronteiras, atravessando inúmeros desvios e rotações numa espécie de delírio consciente. Eis então que se manifesta uma subjetividade larvar constituída por sínteses, contrações e disjunções. A linguagem é incendiada. O ser é levado ao confronto com o seu fluxo de sensações e torna-se semelhante àquele Eu Rachado (Deleuze):
Meus pés sonham suspensos no Abismo
minhas cicatrizes se rasgam na pança cristalina
eu não tenho senão dois olhos vidrados e sou um órfão
havia um fluxo de flores doentes nos subúrbios
eu queria plantar um taco de sonooker numa estrela fixa
na porta do bar eu estou confuso como sempre mas as galerias do
meu crânio não odeiam mais a batucada dos ossos.
No plano da semiose, da produção de novos signos e significantes, há uma revolução: as constantes fonológicas, semânticas, sintáticas da língua são desviadas para a criação de uma nova linguagem. Isso porque a linguagem, para Piva, se constitui como um campo de singularidades virtuais, signos que nunca se submetem ao princípio lógico da contradição. A linguagem piviana, ao invés de derivar de um fundamento gramatical ou de reportar-se a uma constante universal, assume a sua disparidade, a sua agramaticalidade, ao mesmo tempo que transpira a consciência do seu momento histórico-social, radicalizando também o caminho da tradição surrealista brasileira já trilhado por Murilo Mendes em Poesia em Pânico, O Visionário e As metamorforses e por Jorge de Lima em Invenção de Orfeu.
A construção imagética transborda os limites da página e do verso regular. Nasce um ritmo jorrado, veloz e poderoso. Nos versos do Paranóia somos atirados nesse fluxo contínuo de imagens que aparentemente não se conectam entre si. Contudo, o leitor perceberá que, mesmo nessa ilogicidade, persiste um sentido subterrâneo, uma voz atormentada, uma imagem viva da própria subjetividade em constante deriva, náusea e transmutação. Vemos essa variabilidade infinita no poema Visão 1961 onde o poeta produz imagens ininterruptamente. O poema no seu todo transvasa, exprimindo a própria potência da imaginação tão cara à poesia moderna. Traz consigo versos livres e sem pontuação alinhavados num ritmo alucinante:
as mentes ficaram sonhando penduradas nos esqueletos de fósforo
invocando as coxas do primeiro amor brilhando como uma
flor de saliva
o frio dos lábios verdes deixou uma marca azul-clara debaixo do pálido
maxilar ainda desesperadamente fechado sobre o seu mágico vazio
marchas nômades através da vida noturna fazendo desaparecer o perfume
das velas e dos violinos que brota dos túmulos sob as nuvens de
chuva
fagulha de lua partida precipitava nos becos frenéticos onde
cafetinas magras ajoelhadas no tapete tocando o trombone de vidro
da Loucura repartiam lascas de hóstias invisíveis (...)
Encontramos assim tanto uma semelhança estrutural com a poesia dos surrealistas como com a dos beatniks. Piva se apropria da “imaginação em liberdade”, tanto como da linguagem falada, e nesse sentido, a sua obra se estende a outros horizontes. No poema A Piedade podemos ouvira prosódia saindo da garganta do poeta:
as senhoras católicas são piedosas
os comunistas são piedosos
os comerciantes são piedosos
só eu não sou piedoso
se eu fosse piedoso meu sexo seria dócil e só se ergueria aos
sábados à noite
eu seria um bom filho meus colegas me chamariam cu-de-ferro e me
fariam perguntas por que navio bóia? Por que prego afunda?
Essa coloquialidade oral associada à irreverência, ao erotismo e à virulência transgressiva aparecerá nos Abra os olhos & diga ah, Coxas, 20 poemas com brócoli, Quizumba, Ciclones e Estranhos sinais de Saturno. Vejamos o poema VI dos 20 poemas com brócoli:
o cacique tomava chá com seu corpo pintado.
o pajé dançava com a casca do
gambá.
você brincava com meu caralho.
Macunaíma & Alice no país da
Cobra Grande.
mesma estrutura narra-ação &
barroco elétrico pinçando
estilhaços de visões.
palmeiras de cobre.
meu cu como bandeira
do navio pirata.
a lua começa a cantar.
Irreverência, paradoxo e humor que só se acentuam no Estranhos sinais de Saturno. O poeta se depara com um vasto cortejo de personagens poéticos, míticos e fabulosos. Como já dissemos anteriormente, a subjetividade poética se infinitiza, assumindo identidades múltiplas. A beleza de seus poemas é criada a partir desse movimento centrífugo.
Tubarão Vodu cabeça de Martelo
Voando no ombro pederasta de Whitman
abraço a garganta loira do ANDRÓGINO
PRIMORDIAL
o URUBU-REI louco de ciúmes engoliu inteiro
O HERMAFRODITA DE JADE
quando o sol sem luz soprou seu planador
orgiástico no aeroporto
na décima oitava chicotada punitiva
o Marquês de Sade se irrita com meteoros
no dilúvio de girassóis revolucionários
& seus relâmpagos
Como pudemos ver em vários poemas, Piva cria perceptos imprevisíveis. Suscita tremores na superfície da linguagem. Combina humor, surrealismo, transgressão, Eros, êxtase & delírio. Nunca é demais insistir que a poesia necessita da expansão dos limites, da energia do mito, do rito dionisíaco, do sonho, da potência da natureza e da palavra. Não é sem razão que a voz poética assume então a sua multiplicidade esquizóide, constelando fluxos de desejo a ponto de dizer:
Eu sou o beijo do Urânio
de Al Capone
Eu sou uma metralhadora em
estado de graça
Eu sou a pomba-gira do Absoluto
Notas
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