CINTILAÇÕES
DA SOMBRA: SOBRE UM LIVRO DE DUDA MACHADO
Vera
Lins
A partir daí - o mundo intacto - vai-se abrindo um espaço,
paisagem não preenchida,
habitada somente
por uma duração
para a qual acordamos
e, na qual, às vezes,
podemos existir.
("Duração da paisagem")
Em maio
de 68 falava-se de colocar a imaginação no poder. Um filósofo
como Guy Debord, num livro dos anos 60/70, publicado no Brasil
em 97, cita, tanto na própria forma em fragmentos como literalmente
no meio do livro, Novalis, um dos principais escritores do
primeiro romantismo alemão da virada do séc. XVIII. O livro
de Debord, A sociedade do espetáculo, critica a sociedade
contemporânea como pura exibição de uma racionalidade técnica,
em que a lei geral é a obediência ao desenrolar das coisas.
Atualizar as propostas do primeiro romantismo alemão possibilitaria
reverter esse estado ?
Duda Machado tem no seu livro, Margem de uma onda,
de 97, um poema "Fragmentos para Novalis", que recorta em
fragmentos, numerados, como os fragmentos filosóficos que
o poeta filósofo erigia como única forma possível de pensar,
arranhando uma totalidade não alcançável, a não ser pelo paradoxo.
O poeta brasileiro diz com ele o que pode ser considerado
uma poética: a idéia de uma semântica submersa que aflora,
"o caminho misterioso/ sob a consciência/ reconfigurado
pelo verbo/ em sequências de sons/ que repercutem", o que
está na própria idéia de nova música de um Schönberg.
O primeiros românticos, críticos do Esclarecimento alemão,
propunham um outro pensamento, uma poetização da vida. Há
em Novalis como em Schlegel, Schelling, e outros, um projeto
critico, uma valorização do pensamento como imaginação produtiva,
criadora do próprio eu e produtora de uma outra relação do
homem com o mundo. Com os olhos voltados para a Revolução
Francesa, vivendo sob o Estado prussiano, apostam numa transformação
radical através de uma reviravolta do espírito, que, para
eles, é imaginação, pensamento. Para Novalis, o homem que
pensa regressa à função original de seu ser, à meditação criadora,
ao ponto exato em que produzir e saber têm a mais estranha
relação, ao momento fecundo do prazer essencial e da auto
concepção interior. Assim todo ato de pensar é criação, o
que subverte também a relação sujeito/objeto do conhecimento.
O que diz com Novalis, Duda Machado no fragmento III: "A erva/a
fera/a pedra /podem ser diálogo," estabelecendo esse diálogo
na repeticão dos fonemas o, r, a, com suas variações
de lugar e combinação e no fragmento V: "Um substrato matemático/para
a imaginação: o desconhecido,/ cálculo potencial do conhecido".
O que continua num outro poema: "Condição": "conhecimento,
seja./ mas sempre tão recente/ que apenas se desprende/ do
não conhecimento", dando a ver isso pela último verso em que
o conhecimento se desprende do composto "não-conhecimento",
criando uma relação diferente: não se opõem conhecimento e
ignorância, mas conhecimento e não conhecimento.
No poema "Fragmentos para Novalis" nota-se uma leitura dos
Hinos à noite, de Os discípulos em Saïs, do Heinrich von
Ofterdingen e de Polen, pelo menos. Toda a poesia de Margem
de uma onda vai se fazer nessa tentativa de produzir uma
diferença. A poesia aqui se dá entre melancolia, ironia e
utopia . A melancolia, que é funda consciência do desastre
e de que algo poderia ter sido diferente, no entanto, guarda
certo horizonte utópico, um instante de diferença que pode
voltar e se atualizar, abrir espaço. O espaço é importante.
Tanto nas sugestões das artes plásticas - "Manhã piscina"
lembra os quadros de Hockney- , à cor e ao silêncio, que parecem
criar espaço como o móbile de Calder ("Fábula do vento e da
forma"), um arabesco movido pelo vento, como na referência
à paisagem, uma certa modulação do espaço da natureza. Arabescos
e paisagem são suas formas, "dispostas/ a absorver em si mesmas/o
que lhes resiste/ ou se mostra inalcançável."
Há para os primeiros românticos um conflito interno na linguagem
: enquanto meio de comunicação também comporta um âmbito irredutível,
não conceitual, reflexos daquela linguagem original que dão
a ela um caráter mágico, não instrumental. Guarda um jogo
de analogias com o mundo e a natureza que podem ser lidos
como um universo simbólico A linguagem da natureza é vista
como música, ritmo. Para Novalis, a linguagem deve voltar
a ser canto. Assim, se o mundo pela imaginação se torna uma
floresta de símbolos e ecos, o significado, no entanto, escapa.
Não é mais um mundo como em Dante, que ao se abrir se revela
o cosmos ptolomaico, mas um universo infinito, em que o desconhecido
tensiona com o irrepresentável. Lugar do não nomeável, ou
difícil de nomear, que se tenta nomear aqui como margem de
uma onda, que lembra algo rarefeito como espuma, em tensão
com o informe, o negativo, o desfazer-se. E a palavra margem
aparece em outros momentos tentando dizer isso que é difícil
de dizer, como margem da obra ("Fragmentos para Novalis").
A imaginação torna as coisas infinitas. Além do chiste, manifestação
de uma razão incandescente, elementos importantes da linguagem
para os românticos seriam: o paradoxo, a ironia, a alegoria
que não diferenciam do símbolo e o fragmento como forma critica.
O mais importante do romantismo como concepção de linguagem
é que o pensamento pela poesia, pela ficção ou na forma filosófica
do fragmento traz à tona possibilidades, latentes na natureza,
de construção de outras realidades possíveis, além daquela
já estabelecida. Por isso faz sentido hoje sua palavra de
ordem: "romantizar". O mundo deve ser romantizado, isso é
potencializado. Diz Novalis :
Acusamos o poeta de exagero, achamos que basta perdoar-lhes
um pouco a imprópria e metafórica linguagem; sem aprofundar
o assunto contentamo-nos em atribuir a sua fantasia aquela
natureza magnífica capaz de ver e escutar muitas coisas que
os outros não vêem nem escutam e que a seu gosto e capricho,
presa de amável delírio, trata o mundo real. Na verdade parece-me
que assim mesmo os poetas exageram com excessiva timidez;
só entendem obscuramente o prestígio de uma tal linguagem
e dão se a brincar com a fantasia como um filho com a varinha
de condão do pai. Não sabem quantas nem quais forças lhes
estão subordinadas, quantos universos devem submeter-se a
sua vontade.
Paul Celan tem uma passagem na "Carta a Hans Bender" em que
afirma: "Vivemos sob céus sombrios, e existem poucos seres
humanos. Talvez por isso existam também tão poucos poemas".
A indústria cultural, hoje, veicula um imaginário capitalista
domesticado e grosseiro que impõe mediocridade, o que aumenta
a resistência à capacidade de pensar, diluindo a poesia e
a arte em formas adaptadas, palatáveis. Uma política da poesia
se faria numa outra escuta da linguagem, numa produção de
formas que, inassimiláveis pela cultura do espetáculo, preservassem
a possibilidade de um outro futuro e indicassem a nossa vida
um outro ritmo que o imposto pela dominação da técnica e da
mercadoria. Hoje, para enxergar outras possibilidades no real
é preciso alto grau de vidência. Dizer ainda "é possível"
vai ficando cada vez mais difícil e só se dá deixando visível
esse fundo cinzento, sombrio, de angústia e desespero: "Pode-se
até mesmo /dizer esperança/, mas conseqüente/ já que deixa
visível/ a decepção de qual/ provém e depende."( "De um instante
a outro").
A poesia nasce de uma consciência infeliz no sentido de Marcuse,
de uma recusa. E ao mesmo tempo é o lugar onde um outro real
pode aparecer. Se há uma falência de sistemas explicativos,
o quadro é desesperador. É preciso buscar, no entanto, outra
profundidade no exercício de uma negatividade. Buscar com
a memória, que é imaginação, "uma paisagem perdida entre informe
e ruína". Em "Resumo quase perfeito", se apresenta a queda
precipitada no vazio, um suicídio de uma janela. O topos da
ilha é substituído pela cidade deserta . No que parece uma
conversa com Baudelaire, que trazia à cena poética, no início
da modernidade, a cidade, a multidão e o convite à viagem,
em "Giro", a fuga à Ilha de Citera virou pacote de viagem
- sonho de milhões, que esvaziam a cidade de uma intervenção
humana, estamos no deserto dos homens, também já do poeta
francês .
O horror aparece na colagem do jornal - a linguagem da comunicação
é violência pura em "Fim-de-semana". Em "Urubu-abaixo" a paisagem
é do terror, nada de pitoresco, mas uma funda consciência
do desastre, que se dá no anagrama carniça, criança: "overdose
de dezenas/de dúzias/desova/desossam/desencarnam/ subterrâneos
jardins de infância/de quem mais carniça que criança". O progressismo
acabou: há consciência de uma fabricação massiva da miséria
humana, como diz Agamben, que vê o campo de concentração como
o lugar inaugural da modernidade. Comentando o livro de Débord,
Giorgio Agamben se pergunta como fica o pensamento na sociedade
do espetáculo, pois é claro que o espetáculo é a linguagem,
a comunicabilidade mesma ou o ser lingüístico do homem hoje.
O que Merleau-Ponty chama de modular no vazio aparece aqui
: uma modulação capaz de afinar o entendimento, deixando-se
ir a uma onda extrema. Esse lugar é quase impossível, mas
factível, poesia como "dobra de memória", feita só "da presença
de ser possível". Faz-se aqui um percurso de pensamento A
idéia de livro aparece ironicamente em Almanaque I e II. Lembra
o livro do mundo (uma natureza decifrada na linguagem, no
diálogo "além de qualquer tentativa de fuga ou domínio") e
o livro de Mallarmé que aparece em "Brinde": os dois poetas
se encontram na condição do exílio e da ambigüidade. Como
em "Leitura do cristal": Todo cristal propõe/ essa memória
obscura (paisagem perdida/entre informe e ruína)/ou a fenda
de seus prismas.", haveria algo a buscar entre o informe e
a ruína que passa pela memória . Para Rancière não há nenhum
vestígio de uma filosofia na poesia, mas ela é necessária,
inclusa e latente na maneira específica como o pensamento
tem lugar no poema. como a Idéia se inscreve em forma de poema,
aquém das formas ordinárias do pensamento discursivo. Perguntas
se fazem presentes como em "Meridiano": "acordar é raro/breve/um
cochilo, piscar de olhos/por onde irrompe/o entrevisto espanto/do
que somos/ acordar é um sonho". Alguns poemas tentam narrar
como em "Roteiro de uma noite", recuperar essa experiência
feita de memória , como diz em "Só depois", imaginação que
recolhe o que poderia ter sido e o que foi. "Trevo" lembra
a flor azul de Novalis que aparece no sonho e impulsiona a
narrativa em "Heinrich von Ofterdingen". Uma poética é apresentada
no poema com o título de "Fábula do vento da forma" Reaparece
nas ressonâncias de "a flor futuro/ o fruto/inscrito no vento",
uma concepção de tempo que junta esse passado não realizado
com um futuro no presente, um tempo e uma história ("um remoto
sobrado no interior") benjaminianos.
A poesia desobjetiva, vai contra o objetividade da ciência
(a natureza se intromete em "Traço e movimento": "camadas
de terra/raízes/pedras/entre o radar /e seu objeto"), contra
uma racionalidade capitalista que subsume tudo à economia
e desorienta a História.
Embora a ênfase esteja no sujeito, quando se quer "uma aliança
entre o mesmo e o surpreendente", o que lembra o fragmento
158 de Pólen: "Está apenas na fraqueza de nossos órgãos que
não nos vemos em um mundo feérico", nessa poesia o eu apaga
seus rastros como diz do artista, em "Espécime" : este animal/-que
artista-/só dá o salto/depois de desfazer/seu próprio rastro".
Pede-se hoje mais que a ironia e a paródia, procedimentos
das vanguardas modernistas. Em "Vida nova", talvez referência
ao livro de Dante, insinua-se uma ultrapassagem: "Sim. "A
ironia domina a vida"/E a forma não pode desmenti-la./Mas
não faz falta uma perspectiva/Que domine também a ironia?"
Mais que puros procedimentos estéticos a arte e a poesia articulam
uma ética como um regulativo utópico. E se afrontam todos
as ameaças da imposição de sentidos fixos e acabados como
em "Devoração da paisagem" : "De algum lugar,/distante das
retinas,/ a fera irrompe/ e de pronto/ a paisagem se contrai./
Já é presa,/repasto de significados/com que a fera/ realimenta
sua fome".
A paisagem, modulada num espaço aberto pelo silêncio e o rigor
da ausência, refaz sentidos recuperando possibilidades que
não vingaram: "Atravessar a obscuridade aclara / do rigor
da ausência surge o sentido/ o que foi se renova e revém sob
luz rara/ viver inclui o que poderia ter sido". E a partir
desse lugar, margem, algo diferente se esboça, cintila, por
um instante, um agora.
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(1)Os discípulos em Saïs. Trad. Luís Bruhein. Lisboa: Hiena,
1989.
(2)Agamben, G. Moyens sans fin. Paris: Payot/Rivages, 1995.
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