ALGUMAS
PALAVRAS SOBRE SIMONE HOMEM DE MELLO
Contador Borges
Em Périplos, de Simone Homem de Mello,
a poesia atinge aquele ponto em que o indizível repentinamente
se torna legível por suas fulgurações de margem. Legibilidade,
aliás, conquistada a fórceps, no claro-escuro, no embate com
a língua, com os sentidos, entre mortos e feridos, no limite
daquilo que, afinal, interessa ao poema, ou seja, a emancipação
da forma pela matéria, e da matéria pela forma.
E aqui o tour de force se faz pela
estratégia do fragmento montado e remontado à maneira prosaica,
uma lição de recortes de narrativas díspares captadas pela
poeta no lugar-nenhum da linguagem, como que mobilizando ilhas
de uma geografia infinita. Livremente, mas sob as necessárias
redes ou amarras, a autora enfeixa micro-eventos ou peripécias
em que o sentido se produz à deriva, como um achado denso
em meio ao jogo das palavras, entre ilusão e realidade consumada.
Assim, este livro é feito de "histórias
quase / trêmulas de um medo / tão irredutível noite". E quando
menos se espera surge a ponta do iceberg, o acontecimento
que nos fere os olhos, como quem "Pausado fala / do mergulho
suicida / sobre a pedra a seco". Prevalece, então, na leitura,
a máxima de que o "inter-dito", o "contra-dito", ou o "dizer
nada" (para aqueles ainda não familiarizados com as exigências
e idiossincrasias do poema moderno), são, no fundo, partes
de uma mesma singularidade, o melhor caminho para se "dizer
tudo". Eis o que confere à escrita de Simone Homem de Mello
a dignidade de um estilo, ou mais que isso, a astúcia de uma
enunciação poética tão intensa quanto precisa, porque o que
ela faz, no fundo, é descrever a forma no momento em que se
volta para si mesma, se quebra e se pluraliza, se comenta
e se ironiza, a forma que pensa ser outra coisa além do que
é, imantando a matéria das palavras, simulando o elemento
real "como se fosse / circundá-lo com seu hálito". A forma
pode tudo. E só pode por ser capaz de nadificar-se, reduzir-se
ao ínfimo do ínfimo, para agigantar-se em seguida e extrapolar
seus limites, do visível ao invisível.
Não é isso que confere originalidade ao
périplo? Não é isso que nos salta aos olhos plenamente no
"auto-mar" da travessia poética? Afinal, "De uma voz / tão
audível / nada turva / lapida em matéria / líquida a travessia".
Mas, para onde vamos? Eis a pista na seqüência do poema, em
que o "Remetente / de senhas / (palavras-passe) / antecipa
/ a cada estreito / o que ainda / indesvendável". O que se
antecipa nos é dado pela senha na leitura, não no início,
mas ao longo da viagem. E para onde?
Ora, a razão do périplo é fazer da viagem
um fim em si mesmo, entre calmaria e tormenta. Não importa
o destino, mas a própria viagem. Recorrendo ao mito: que Ulisses
jamais retorne à Ítaca, que Penélope refaça para sempre o
tecido dos dias e das noites, para que a poesia viva de seu
ato libertário, mergulhada em suas águas, de odisséia em odisséia,
para que ela cumpra seu intento em fundar o sonho pela letra.
Por isso os sentidos proliferam gerando seres outros, por
vezes extraordinários, indômitos, porque sua moeda-corrente
é "a pérola/ do mais puro oriente", e "seu lustre/ escoa da
gravura e faz-se alva/ além de qualquer azul".
Eis o sentido do percurso, sem evasivas,
o fluxo das palavras à contraluz de toda comunicação possível,
melhor dizendo, de todo o infernal ruído que dia e noite nos
atormenta o coração e a mente.
É porque a poesia renova os signos e seus
usos, e refaz no limbo a língua adâmica (as palavras da tribo),
que as palavras assomam neste espaço e se aglutinam, renovando
as maneiras de sentir o tempo e as coisas, como o modo de
exprimi-los para a sensibilidade do presente. É nesse momento
que ouvimos "aquele marulho / camuflado / de folhagem eólia",
ou seja, ouvimos o que jamais ouvimos, o que só um poema em
efervescência concebe em seu amálgama inusitado de sons e
imagens. Assim percorremos o périplo, do lugar nenhum ao todo-pleno.
Entramos de sola no horizonte de efeitos da atopia.
A a-topia, é esse gesto que parece substituir
ao de utopia em nosso tempo; ou seja: o poema se afirma
à deriva com os sentidos em suspensão extática, mas conservando
no íntimo o desejo de fundar pela palavra o novo tempo, a
nova ética, o novo homem, restaurando a velha língua em voz
própria, tornando-a "quase" outra língua.
"A poesia, diz Jean Cocteau, é uma língua
à parte que os poetas podem falar sem medo de serem compreendidos,
pois os povos têm o costume de achar que esta língua é uma
certa maneira de empregar a deles". Quanto mais singular a
poesia, menos subordinada aos poderes da língua e da ideologia
ela se torna, e, em conseqüência, mais ela contribui para
restituir ao idioma sua capacidade de produzir idéias, sentimentos,
sensações, por meio desses agentes da beleza, os poemas. Generalizando:
quanto mais incompreendido for, e mais despercebido passar
o poeta pela logosfera dominante, melhor será sentido por
seus pares. Daí ser preciso deflagrar o tiro à queima-roupa,
ou como diz Homem de Mello, "girando o tambor / de uma roleta
russa, / viciada no tiro certeiro." A mirada aqui, ou, o achado
poético, é o instante em que o olhar se glorifica pela nobreza
da palavra, demarcando enfim seu território à maneira de um
felino, com sangue e urina, isto é, semeando os signos com
a alma viva, em potência máxima.
Com efeito, se este Périplos nos
ofusca a vista não é por excesso do dizer, mas por economia
elíptica, pela operação enxuta de um gesto claramente contido
(mas nem por isso menos ousado ou atrevido) em seu entrecortar-se,
entremear-se, na linguagem, na ponta extrema do estilhaço
ou fragmento, com seu tino de vidro cortante ao sabor do que
continuamente se reinventa, e que exige além das contas de
nossos olhos e ouvidos.
E assim nosso gesto extremo será recolher
no íntimo o poema e seu movimento, como quem se aproxima de
surpresa para ouvir a sereia de Ulisses nos repetindo que
"Perfurou, / com olhos / argutos, / 'o rombo/ no tecido/ do
espaço' - e entreluziu." Gesto que comprova o quanto embarcamos
de corpo e alma na viagem. Continuar ouvindo e vendo o que
normalmente não percebemos, saber por dentro que o idioma
é um patrimônio que se encontra por ser refeito, contra tudo
e contra todos, para exprimir o que somos (e a que viemos)
através dos tempos.
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Contador Borges, poeta,
tradutor e ensaísta, publicou dois livros de poesia pela Iluminuras:
Agelolatria e O reino da pele.
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