ARQUIPÉLAGOS REVISTOS:
UMA LEITURA DA REVISTA OROBORO
Cristiano Moreira
Chegou o momento de cessar de identificar a história com uma concepção vulgar do tempo como processo contínuo linear e infinito e, por isso mesmo, de tomar consciência do fato de que categorias histórica e categorias temporais não são necessariamente a mesma coisa. Não é tarefa, mas sim condição preliminar das tarefas que a revista se propõe, chegar a uma nova situação das relações entre história e tempo, ou seja, alcançar, antes de mais nada, uma nova e mais originária experiência da história e do tempo.
Giorgio Agamben
Uma das características mais importantes do rizoma talvez seja a de ter sempre inúmeras entradas; a toca, neste sentido, é um rizoma animal, e comporta às vezes uma nítida distinção ente linha de fuga como corredor de deslocamento e os estratos de reserva ou de habitação.
Gilles Deleuze
Este texto tem como objetivo investigar de que forma as revistas de poesia constituem arquivos e qual sua relação com o tempo, com a história e historiografia. De que forma estas revistas, e aqui prioritariamente trabalharemos com a revista Oroboro editada em Curitiba, elaboram suas escolhas, que estéticas priorizam e quais rotas poderemos traçar nesta cartografia, para uma navegação entre arquipélagos que são estas texturas. Como as revistas possuem muito material, transitaremos, como diz Deleuze, por algumas 'tocas' a serem reveladas no decorrer do trabalho. Tocas estas que figuram como linhas e fronteiras criadas não só nas revistas, mas antes nas próprias cidades. Inevitavelmente esta mudança topológica afeta o movimento das artes pois a mudança é produto da velocidade do mundo moderno[1]. A este respeito, vale lembrar o pensamento de Paul Virilio, escrevendo que “a velocidade, como idéia pura e sem conteúdo, emerge do mar, como Afrodite, e quando Marinetti exclama que o universo enriqueceu-se de uma beleza nova, a beleza da velocidade, e contrapõe o carro de corrida à Vitória de Samotrácia, ele esquece de que se trata, na realidade, de uma mesma estética, a do engenho de transporte”[2]
O escritor francês analisa a sociedade moderna como uma sociedade dromológica - do gr. Dromos, que exprime a idéia de corrida, movimento - num de seus ensaios diz que “de fato, o valor estratégico do não-lugar da velocidade suplantou definitivamente o do lugar, e a questão da posse do tempo renovou a da posse territorial.” Assim podemos pensar uma poética contemporânea do não-lugar, uma poética encontrada nas revistas que acompanham este movimento, nos levando a pensar em uma transição de uma a-topia, à um rizoma resultante, na cidade, de uma proliferação de fronteiras, de dicções. Na cidade moderna o tempo é o tempo da fábrica, do fim, da fortuna – produzir, acumular para viver um futuro melhor – a mecânica moderna eleva o movimento retilíneo e uniforme ao lugar de ordem, substituindo a concepção do tempo circular dos gregos. A revista Oroboro, este palíndromo que tem em sua etimologia um limite, (do gr. óros), figura nestes tempos como uma fronteira ainda capaz de re-articular estes tempos, o cíclico e o linear, operando assim, em seu círculo de leituras e escolhas editoriais, uma forma real de anacronismo. Creio que as anotações de Agamben em Programa para uma revista, esclareçam alguns pontos de interesse deste artigo; alguns locais em que a revista cresce para causar uma interrupção na corrente das informações-pílulas a que a cidade nos empurra:
“A revista, cujo programa é aqui apresentado, faz uma reivindicação de autoridade na medida exata em que se torna consciente da própria situação. Somente na medida em que se atém a uma tal consciência ela pode aspirar, sem arrogância – num tempo que perdeu todo critério que não seja 'aquilo de que falam os jornais', e isto justamente quando 'aquilo de que falam os jornais' não tem mais nada a ver com a realidade -, a encontrar em si mesma o critério da própria atualidade. O ponto de vista que ela deseja adotar é, com efeito, tão radical e originalmente histórico que ela pode facilmente renunciar a qualquer perspectiva cronológica e incluir, aliás, ente os seus próprios deveres, uma 'destruição' da historiografia literária: o lugar que ela escolhe como morada virtual não é nem uma continuidade nem um novo início, mas uma interrupção e uma quebra, e é a experiência desta quebra como evento histórico originário que constitui precisamente o fundamento de sua atualidade.[3]
A cidade exige e cria variações, as revistas tentam criar deslocamentos para algumas variações criadas pelos poderes que dirigem as cidades, nem sempre são eficazes estes métodos, mas sempre movimentam algum pensamento. Ao passarmos a um período cuja velocidade atinge todos os corpos, estes são obrigados a criar formas de se tornarem imunes ao atrito, ao choque da voluta cultural. O que quero dizer aqui, é que a verdade de um gesto é tão maciça quanto um poço de areia movediça; os gestos apontam para novas formas de vida e as revistas para novos arquivos. Ao criarem estas formas de vida, esquivam-se do poder soberano que os acomete pela força das leis. As revistas, algumas delas, operam uma quebra na continuidade da lei, quebram o evento histórico e produz outra possibilidade historiográfica, além daquela distribuída pelos mecanismos de transmissão que “não transmitem nem ensinam nada”, como alerta Gorgio Agamben[4]. A linha de fuga encontrada pelos artistas foi desenhada para cumprir um programa de detonação e implosão das noções seguras de entendimento. Estes novos territórios combatem a decadência do Sentido cristalizado; vão para linha de frente deste combate, criam-se vanguardas.
Quase um século nos separa das principais vanguardas do século vinte; pouco mais de cinqüenta anos da última vanguarda brasileira com caráter de grupo de formação ou seja, possuíam manifesto, plano piloto ou algum tipo de prática que os uniam aliados as táticas de guerrilha utilizadas em suas batalhas. Mas que batalhas eram travadas pelas vanguardas? Que tipo de material utilizaram para que os territórios fossem ocupados? Antes das respostas, ler o que escreveu o crítico americano Clement Greenberg[5].
Greenberg aponta para a vanguarda como uma movimentação intelectual burguesa em resposta ao tipo de arte como as “canções do Tim Pan Alley”[6] que estava sendo produzida e consumida como mercadoria enquanto, na mesma sociedade, produzia-se um poema como The Waste Land. As sociedades produzem simultaneamente diversos tipos de arte e para o crítico americano as vanguardas foram motivadas por uma “consciência superior da história.” [7] Escreve ele que “esta crítica não confrontou nossa sociedade atual com utopias atemporais”. No entanto, chama a atenção o fato de que as vanguardas para este crítico quase rejeitam as tradições antepassadas, ele é cauteloso ao continuar seu texto com uma adversativa: “mas examinou com sobriedade, em termos da história e de causa e efeito, os antecedentes, justificativas e funções das formas que se encontraram no cerne de todas as sociedades”.[8] Greenberg escreveu este texto em 1939, ou seja, pouco depois das teses de Benjamin sobre a história, escritas em 1936 e ainda distante dos debates sobre o fim da história ou pós-história escritos por Lutz Niethammer e Francis Fukuyama em 1989 e debatidos ainda hoje por Giorgio Agamben por exemplo.
Para Giorgio Agamben, que desenvolve e acompanha o debate sobre uma nova concepção de tempo e de história, a sociedade contemporânea se volta ao passado com intuito não de negação, de desejo de parricídio como já foi equivocadamente pensado. O que Agamben ilumina com seu pensamento, é que este olhar órfico não busca o desejo de morte e ruptura, mas sim uma lei, uma verdade para que se dê continuidade. Ainda assim alerta que, diante deste desejo, vivemos em um momento ímpar “talvez época alguma tenha jamais sido tão obcecada pelo passado e tão incapaz de encontrar um relacionamento vital com ele”[9]. A necessidade da vanguarda não como linha de avanço, como lança apontado ao futuro, mas como movimento de “esforço extremo para encontrar o passado”[10]O declínio das vanguardas como eram, é marco de mudança de paradigma diante do tempo. Não mais um tempo circular ou linear infinito,-como ao que se refere Octavio Paz em Los hijos del limo- um tempo de agoras estratificados, dobrados. O traço que resta desta procura nos leva às portas de um arquivo deixado ao fim da edição da revista; neste arquivo, o trânsito, a rua de mão dupla entre passado e presente.
Nas conhecidas teses sobre a história, Benjamin diz que “a história é objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo homogênio e vazio, mas um tempo saturado de 'agoras'”[11]A sucessão de agoras da modernidade, os encadeamentos de pontos entre o antes e o depois, torna-se na era moderna pura cronologia. Benjamin ainda escreva na tese XV, que a verdadeira revolução não é somente aquela que busca mudar o mundo, mas sobretudo interferir na concepção de tempo, Benjamin observa sintomaticamente o incidente no qual em vários bairros de paris, na mesma hora, pessoas dispararam tiros contra os relógios das torres; uma investida contra o continuum da história..
Agamben diz que os sutis fios que seguram o sentido para o homem da multidão é a “idéia, em si desprovida de qualquer fundamento racional, de um progresso contínuo e infinito”[12]. Assim poderemos pensar a revista Oroboro como parte desse processo contínuo e infinito. Uma revista que, assim como outras, permanece à espreita do tempo, pronta para saltar a qualquer momento, para ser iluminada por um instante outro, ou melhor, grafado na carta de navegação as possibilidades do uso de um anacronismo. Susana Scramim em seu recente livro[13], lembra que no tempo presente, as obras que são lidas sob esta óptica do presente, esclarece dizendo que “o tempo presente é um 'agora' das obras nos efeitos que produz nos tempos do 'agora' de outras obras, bem como da duração e da absorvição desses efeitos, isto é, da absorvição dos afectos que ela produz.” Sabemos que este afecto a que se refere Scramim deriva da concepção leibniziana, de um atrito de um corpo sobre outro, um afetar, o que move o desejo, arma o bote. Talvez a distância que temos desta revista não seja suficiente para podermos analisar seu efeito sobre a literatura deste 'agora'. Em todo caso, vamos apontar algumas eleições feitas pelos editores da revista Oroboro na tentativa de seguir algum caminho mesmo sabendo de antemão que se bifurcará inevitavelmente.
A potência sonora em Oroboro
Como uma recapitulação ontogenética da revista, tomaremos as poéticas que priorizam o som, não somente a melopéia, mas sobretudo o som ritual das poéticas ancestrais pesquisadas principalmente por Jerome Rothemberg. Rotehemberg desenvolveu sua pesquisa a partir da poesia étnica -ou etnopoesia como denominou o pesquisador em 1967- ou aquela oriunda dos rituais xamãnicos. Para que serve uma tradição tão antiga nos tempos modernos? Rothemberg responde dizendo que a “etnopoética refere-se a uma tentativa de investigar numa escala transcultural o alcance das possibilidades da poesia que não só haviam sido imaginadas como praticadas por outros seres humanos”[14].
A revista Medusa - editada por Ricardo Corona, Rodrigo Garcia Lopes, Ademir Assumpção e Eliana Borges, foi antecessora da Oroboro, editada desta vez, somente por Ricardo Corona e Eliana Borges – nos mostra a gênese da pesquisa sobre poesia étnica que tornou-se uma constante no trabalho do poeta Ricardo Corona e é sintomática, se observarmos outras presenças durante a edição de Oroboro. Rodrigo Garcia Lopes no texto já referido sobre Rothemberg, ajusta a visão anacrônica deste tipo de eleição para a revista, escreve o poeta
O que ele [Rothemberg] mostra, em seu trabalho, é que essas formas poéticas 'exóticas' também possuem estruturas complexas e surpreendentes. Rothemberg prova que o que é chamado de 'primitivo', nas manifestações poéticas ancestrais, é quase tão complexo quanto um poema 'collage', um poema concreto ou um espetáculo multimídia. A visão poética se dilata, fica mais rica. Começamos a pensar sobre o passado & presente como simultâneos[15]
Do que fala Rodrigo Garcia Lopes senão de anacronismos? Este tempo simultâneo é o mesmo do qual falamos acima a partir dos novos conceitos de história. Opera, a revista, uma atualização de uma sonoridade possível, dos cantos sem registros ou de raros registros[16] que são re-editados pela revista. Oroboro depois de Medusa, continua atualizando estes arquivos sonoros, desta vez, com o que há de performático no nosso século.
O ato é o que ocorre sempre no tempo, escreve Paolo Virno. A potência é o tempo originário onde surge por exemplo os cantos Katadjak dos esquimós. Naquele momento estes cantos guardavam uma aura. O tempo cronológico não extingue aquela linguagem, antes a deixa suspensa à espera de um ato, por exemplo re-edição. Potência e ato estão sempre circundando um por vir. Citando Paolo Virno, entenderemos que
potencia y acto son la matriz del devenir porque su relación, que se identifica com su diferencia, es, em sí misma, uma relación (o uma diferencia) temporal. Potencia es aquello que no está todavía em acto (pero puede estarlo); actual es aquello que ya no está más em potencia (pera há estado). Estepar exibe la articulación de anterior y posterior, precedente y sucessivo, pasado y presente.[17]
Estes movimentos de recordações do presente são impulsionados pela linguagem após um momento de angústia que é o pensamento, a procura da língua para preencher o vazio, a morte. Citando Agamben ainda mais uma vez, encontramos a etimologia do verbo pensar
Em nossa língua, a palavra pensamento tem por origem o significado de angústia, de ímpeto ansioso, que se encontra ainda na expressão familiar: stare in pensiero (estar atormentado). O verbo latino pendere, de onde deriva a palavra nas línguas romanas, significa estar suspenso. Agostinho utiliza-o neste sentido para caracterizar o processo do conhecimento: “O desejo que há na procura procede de quem busca e, de alguma maneira, permanece suspenso (pendet quodammodo), até repousar na união com o objeto enfim encontrado.[18]
Recuando um pouco mais, encontramos este movimento também na etimologia da palavra trovador, do francês trouver, procurar. Assim os poetas publicados constituem a busca da revista por um corpus que seja composto não com uma padronização de estilos ou dicção, é exatamente esta impossibilidade, como característica da poesia brasileira contemporânea, reivindicada pela revista. No entanto, encontramos escritores reunidos na Oroboro, compondo um arquivo que poderia ser denominado, espécies minoritárias. O que interessa por hora, é este movimento de ondas que vagam desde a idade média até a eletropoesiacústica, som das vozes que sucedem pensamento, [que segundo Agamben, não pensam a linguagem] mas que unidos fundem-se em versos como os de Jean-Joseph Rabearivelo (1901-1937): “Palavras para o canto, dizes, palavras para o canto,/oh língua de meus mortos,/palavras para o canto, para designar/ as idéias que o espírito desde tempos remotos / e que enfim,nascem e crescem/ tendo vocábulos por cueiros...”[19]
O som na Oroboro soa desde outros confins (dos xavantes, apaches, esquimós) e são executados, ainda que não através de performances na urbe como as de Chacal, Corona ou Ricardo Aleixo, mas em poetas como o acima citado ou ainda prosadores que fazem de sua escritura um arranjo sonoro, ainda que alguns optem pela gagueira, a falta do dito. Afirmando isto, poderíamos dizer que o vínculo anacrônico da revista se dá através da reedição de poetas do passado juntamente com poetas de hoje. Na revista, a publicação destes poetas, ocupam outro status, o de atualização da linguagem que outrora publicada, permanecia na constelação do passado geral; atualizado pela nova publicação, re-ordenada, aparece impulsionada pela rememoração. Outro modus operandi comum nas revistas é o exercício da tradução.
A revista Oroboro publica em seu curso poetas/performers como Edwin Torres, Ricardo Aleixo, Michel Melamed, além da própria produção do editor Ricardo Corona que, através do selo Medusa publica em 2001 o cd Ladrão de Fogo, logo após lança o pocket show TÁVIVALETRA, e em 2007 pela Iluminuras o cd Sonorizador. Este último elaborado com elementos e referências teóricas como as paisagens sonoras de Murray Schaffer, Giovanni Fontana da Itália, com o que o poeta chama de eletropoesiacústica. No livro que acompanha o cd, lemos que
A poesia, aqui, diga-se, feita para voz, está na capacidade de se relacionar com outra linguagem, mas consciente de que a sua migração é para outro sentido, para o 'ouvido pensante' (Murray Schaffer), de par com a justa definição de que 'a poesia é a permanente hesitação entre o som e o sentido' (Paul Valéry). Sonorizador é todo feito de idéias-sons. Se música é resultante de organização do som, interessou-me antes a organicidade dos sons. E os sons que nos cercam não são caóticos ou menos musicais do que aqueles que compõem uma sinfonia. Mattew Herbert, da música eletrônica, ao falar sobre isso, fez uma interessante comparação: 'os carros vão passando de acordo com as mudanças nos faróis do trânsito, que foram programadas e os telefones tocam mais em alguns momentos do dia que em outros[20]
Esse trecho nos faz voltar ao que diz Paul Virilio sobre a velocidade em nossa sociedade. A deflagração do consumo foi movimento da velocidade; a guerra, suas máquinas, foram tão ágeis que já estão introjetadas no modus vivendi da população global; as empresas capitalistas passam aos seus subordinados as metas a serem atingidas através de teleconferências de Tókio a Nova York. O que temos então com a poesia sonorizada é um aproveitamento desse ruído que os homens fazem em sua espécie de animalidade. A serpente Oroboro segue como um ritornelo, dando voltas, mesmo tendo chegado ao fim de sua publicação. Pelo menos por hora, pois ela fecha com o número 8, que sabemos, assemelha-se ao símbolo do infinito. Como aquele personagem da Colônia Penal, submete-se a revista, à pena das leituras anacrônicas.
Vazamentos, túneis, esquecimentos
Como documentos não datados, mas dobrados, revistas de poesia aparecem como arquivos de uma produção que o mercado não absorve. São, em sua maioria, editadas fora das instituições. Raymond Williams alerta para a situação das instituições estabelecidas no âmbito do mercado. Por isso, por ser manufatura, não cabe o que fica fora do planejamento de lucros. Não arcam com muitos riscos, principalmente o de publicar novos poetas. Cabe então às revistas criarem um espaço para estas produções, servem como arcas, arquivos. A palavra arquivo como encontramos em Derrida, serve para designar o topos, a casa – Arkheion-; “arkhê , designa ao mesmo tempo o começo e o comando”[21], por isso Jacques Derrida chama a atenção ao princípios da natureza e da lei, a physis e o nomos. Se nos ativermos ao último princípio, poderemos pensar as revistas como este lugar onde a lei é ditada pelos editores que, juntamente com o corpo editorial, fazem as escolhas e conseqüentemente as recusas. O arquivo é consignação, ele reúne, mas também separa, esquece. O arquivo é uma economia em duplo sentido, com o mercado e com a óikonomia, a residência dos textos; entre as relações de mercado e as subjetividades; entre agenciamentos de corpos, de rotas, mapa que guarda informações a serem resgatadas em uma navegação futura, num mergulho de escafandrista.
Há entre estes arquipélagos alguns destroços de naufrágios recolhidos pelas revistas. Pensemos que muitos dos publicados em revistas são náufragos no mercado e, como diria Agamben, que este tipo escritura “já é um resto de naufrágio, já foi varrido do mapa; mas, como resto de naufrágio, não teme as correntes e pode até mesmo mandar sinais”[22]. Como um documento, uma memória para um outro arconte, um código morse. O arconte como sabemos é aquele que possui o poder de ler os arquivos, de rememorar, de elevar ao lençol do tempo. Como a memória, o arquivo não possui uma classificação hierárquica, ao contrário de uma biblioteca, por exemplo. Nestes casos, “os limites, as fronteiras, as distinções terão sido sacudidas por um sismo que não poupa nenhum conceito classificatório e nenhuma organização do arquivo. A ordem não está mais garantida”[23] Nas revistas de poesia e pontualmente na Oroboro, encontramos uma malha [ou desordem] como princípios para eleições de colaboradores; parece que a opção é publicar aqueles que fazem um uso da língua que não esteja em parelha com a grande literatura. Sem aprofundar, poderíamos dizer que estas escolhas se orientam pelo conceito que Deleuze-Guattari sugeriram como o de literatura menor. Poderíamos ainda dizer que para encontrar essa forma de escrever, movimenta o escritor em um campo onde as micro-políticas cercam o sujeito; desse modo é importante essa dessubjetivação para tornar enunciação de agenciamentos coletivos. Só assim esse deserto a que se refere Deleuze-Guattari se aproxima do confim, da zona limítrofe necessária à literatura que queira tropeçar para distrair a grande ‘fala’, o grande Sentido das grandes literaturas. No confim o olhar vê a miragem da língua. Topos onde as fronteiras são flexíveis, borradas, espiraladas, em movimentos de territorializações e desterritorializações casando vertigem a quem esteja com as retinas soldadas no grande turbilhão das imagens do capitalismo. Nesse movimento espiral podemos ver a literatura menos se erguendo com ciclone, “máquina coletiva de expressão.”[24]
Ora se publica Paul Celan, ora Franklin Alves Dassie. Publica-se Wilson Bueno que encontramos na revista Coyote. Vemos nas páginas da revista, textos de Georges Bataille e Evandro Affonso Ferreira, autores que cultivam uma literatura menor. Reeditar poetas de gerações anteriores nas revistas é uma forma de recordar ou tentar um testemunho acerca da voz de um período. Por outro lado esta poética esta minada de rememorações. Poderíamos pensar que este gesto comum aos poetas, além de exercício de tradução já referido, por exemplo, marca um gesto de reocupação de um espaço tomado pela modernidade, pela cidade pelas fronteiras que se enlaçam para gerar a vertigem do ponto cardeal, uma desorientação. A poesia contemporânea deve assumir o risco de não saber onde ir, nomadizar o que está em torno, leitores.
São bem conhecidos dois personagens de escritores que também fizeram um uso menor da língua: Beckett e Borges. Estes referidos elementos são Molloy e Irineu Funnes. O primeiro encontramos em Molloy livro de Samuel Beckett [parte da triologia do pós -guerra][25] é um perfeito desmemoriado, não sabe para onde vai,ou melhor, sabe mas não tem rota. Sua incapacidade de lembrar abre um espaço de potência; a fraqueza de seu pensamento o leva a percorrer caminhos formados por suas próprias desterritorializações, seus diálogos internos chegam ao ponto de gerar um alter-ego: Moram.
O personagem - se é que podemos assim denominar - de Beckett é o contrário de Funes que não esquecia sequer uma folha que caísse de uma árvore, mesmo que fosse invenção sua. Este último está nas Ficções de Borges. Funes tinha o HD cheio e, sem espaço, não era capaz de narrar qualquer experiência. A história de Funes nos mostra como é ineficaz toda espécie de arquivamento ou classificação sem pensar no esquecimento. A importância do esquecimento, do tropeço para a narrativa é axial. Somente no vazio da memória crescem as ramagens da narrativa. O vazio dá a idéia de potência, de espera pela atualização. Todo ato está vinculado ao tempo, ao momento em que o gesto se inscreve inicialmente como sucessão, um por vir. Talvez por isso Derrida já tenha dito que o arquivo está sempre penhorado ao futuro. Talvez aqui a tensão entre as revistas, o que cada uma delas deixará em aberto, como elas dialogam em suas diferenças.
O poeta é, portanto, um arconte destes arquivos, a leitura dessas revistas por eles próprios geram a mobilidade, o trânsito de autores entre uma ou outra revista sugere um processo de bifurcações. A revista de poesia pode ser uma espécie de raiz pivotante, axial para problematizar cânones, mas também rizomática por apresentar pontos de encontro de seguimentaridades, como o poema Momento de Simetria de Arturo Carrero[26], publicado na Oroboro Nº 4, uma constelação que pode ser lida a partir de qualquer ponto, assim como o acaso, como a memória.
A revista, assim, está mais para mapa, carta náutica, do que para uma árvore. Pensar nas revistas exige pensar em vários territórios ligados por tocas, rizomas conectados, escandidos. “qualquer ponto do rizoma pode ser conectado a qualquer outro e de sê-lo”[27] nos diz Deleuze-Guattari. A idéia de rizoma e de arquivo se ajustam ou aproximam da memória por contar com múltiplas entradas e saídas, memória desorganizada pela estratificação, platôs; as revistas podem ser lidas a partir de qualquer número. Este gesto reitera a idéia de anacronismo, por ser efeitos de agoras outros sobre outros agoras do presente.
NOTAS
[1] VIRILIO, Paul. Velocidade e Política. São Paulo: Estação Liberdade,1997,P. 55.
[22] AGAMBEN. Giorgio. Programa para uma revista. In. Infância e História. Belo Horizonte: UFMG, 2005, p. 163.
Referências Bibliográficas
BECKETT,Samuel. Molloy. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1987
BORGES, Jorge Luis. Ficções. Rio de Janeiro: Globo, 2000.
Medusa – Revista de Poesia e Arte. Curitiba: ano um, número cinco, junho-julho de 1999.
SCRAMIM, Susana. Literatura do Presente – História e anacronismos dos textos. Chapecó: Argos, 2007.
VIRILIO, Paul. Velocidade e Política. São Paulo: Estação Liberdade, 1997.
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Cristiano Moreira (1973) nasceu em Itajaí S.C, publicou o livro de poemas rebojo (Florianópolis: Bernúncia, 2005), é assessor cultural e mestrando em teoria da literatura na Universidade Federal de Santa Catarina. É editor da Papa-Terra, selo pelo qual será lançado seu outro livro de poemas O Calafate Míope. |