A ÉTICA DA POESIA DE ALBERTO GIRRI
Daniel de Oliveira Gomes
Pretendo falar brevemente sobre Alberto Girri (1919-1991), famoso poeta e tradutor, peculiarmente marcado pelo surrealismo, mas muito pouco lido no Brasil. A poesia de Girri é adjetivada por Aldo Pellegrini como "poesia sin concessiones, descarnada, acre y penetrante (...)", e por Enrique Pezzoni de "aterrador equilibrio entre dos vacios (...)". Portanto, um fazer poético que se retorna, torneia-se, à imaterialidade, um equilíbrio entre dois vazios, eis a tautologia intangível de Girri.
Influenciada por um superabundante inventário que vai da poética popular tangueira, das milongas, às notas de Dante, Nabokov, Whitman, Stevens, Eliot, Williams... o que temos é uma poesia a ser degustada como um vinho argentino encorpado, maduro, porém em cuja garrafa não cabem rótulos ou rolhas... Uma poesia mesclada que muitas vezes não é compreendida, cheia de imagens inacessíveis e solitárias, desde seu primeiro livro “Playa sola”. Um poeta da safra de 40 que se entregou ao abandono da imagem, servindo-se, como ele mesmo dizia, da intuição estética para expressar um pacto ético com seu próprio modo de observar o mundo. Ele fala, numa entrevista, que toda palavra é inevitavelmente desprestigiada, e se nobilita por ter, desde muito jovem, a higiene de livrar-se das necessidades supérfluas e ter aceitado, tal como o escultor Marcel Duchamp, a tautologia da vida, a repetição pela arte, como uma religião.
Quando Girri remete a Duchamp, é preciso relembrar o que o escultor francês declarou sobre o seu "portagarrafas": “Existe, yo lo encontré y ese es su único modo de existência”. Essa defesa tautológica (isto = isto) foi uma declaração importante que, de certo modo, dizia que o artista plástico podia, para além de dispor sua obra num lugar, sair do perfil de um mediador entre a verdade e o expectador, e assim desafiava o abrigo do museu, das salas de exposições, apontando uma política de relações de poder preexistente nos espaços. Eis a ética de Duchamp que agrada a Girri, ao meu ver. Alegava que a obra era obra porque foi possível a achar, a arremessar para seu modo de ser, e entrava em cena a questão de não apenas o que afinal de contas vinha a ser uma obra, mas, justamente, o "modo de ser", a "ética de ser". É preciso entender que tal tautologia duchampiana (e também de Alberto Girri) é uma maneira de obscurecer uma noção canônica de "obra", fazer conviver o obscuro com o luminoso, subverter o mito que nos conduz a um julgamento. E essa tautologia é uma delicada ambivalência que não condiz meramente com um fugaz solipsismo. Estamos diante de um movimento de preciso distanciamento para se presentificar algo, mas que, no entanto, é caminho para a retomada da ausência, ou seja, a lição filosófica de uma impossibilidade da apreensão segura de toda e qualquer procedência. De algum modo, circulamos na velha adega da desesperança de Kierkegaard: a que é um tropeçar obrigatório para qualquer dos caminhos a seguir. Sucede, deste modo, uma degustação vertiginosa, um arabesco ao sem fim. Os poemas de Girri são uma espécie de “ready made”, são imagens deslocadas, versos-esculturas que assumem um sentido ético no gosto do abandono, no tom de exercício, de infinitude desenhada espacial e temporalmente. Como disse uma vez o autor: “supongo que no seria abusivo agregar que de alguna manera todo poema tiene carácter de ejercicio”, ao falar dos versos de “El dibujo como poema”:
Suelto corcovear, la mano
y lo tangible, hurgando:
flores, gatos,
cabezas, arabescos, arboledas,
que la mano, mano y mano mental,
abstrae, del espacio
lo real em trazos, ideas visibles,
modelos al abrigo del languidecer
en carnes, rasgos,
colores, savias:
flores, gatos,
cabezas, arabescos, arboledas (...)
Octavio Paz, também influenciado pelo surrealismo, falará sobre os poemas de Alberto Girri e o qualificará na operação de confundir imagens, gostos, a obscuridade com o luminoso, por exemplo. Explicará, Paz, que Girri possui a magia como um exercício espiritual, que visa alcançar certo estado de graça, de poesia.
Girri participava assiduamente de rodas e cafés literários com expoentes como Manuel Mujica Láinez, Silvina Ocampo, todos poetas a quem o argentino Jorge Luis Borges considerou seus "superiores". Se investigarmos algumas idéias de Girri sobre o campo da poesia, veremos que ele pensava a poesia como, além de uma realização estética e verbal, como um meio de conhecimento, de juízo. De modo que, dizia ele, “ lo que el poema enuncia es un juicio de carácter ético.” Girri cita como exemplo Baudelaire, cuja poesia não é apenas uma fábula imaginada do mundo, mas o modo mesmo como Baudelaire julga esse mundo onde vive, sua concepção de mundo. Assim, entendemos as palavras de Alberto Girri: “Sin conciencia ética, el poeta no es más que un rimador, un estafador de palavras y sentimientos, un seductor barato”.
Como vemos, Girri associa o sujeito-poeta a uma necessidade de "consciência ética". Essa ethica está no pólo oposto à sedução barata. Borges, de igual modo, não anula as "obrigações" que sustenta um escritor como cidadão. Entretanto, Girri, em sua fala, é distinto de Borges, em cujas poesias também constam temáticas ontológicas. Borges afirmava que a função essencial do escritor é escrever, o que deveria de o fazer com toda seriedade, mas suas obrigações éticas estariam no plano pessoal, ao nível de cidadão, como qualquer outro. Poderíamos, quem sabe, cair no sofisma de deduzir precocemente que, enquanto o ultraísmo borgiano (próprio de uma vontade de fortalecer uma preocupação social sabidamente distinta da escola de Boedo) coloca em grau de importância maior a relação estética entre o escritor e seu texto, Girri, por outro lado, valorizaria a postura do sujeito-poeta cuja consciência ética sobre o mundo se superpõe à estética.
Aparentemente, Girri, com esse discurso de um "juicio sobre el mundo", pode vir a lembrar a reivindicação sartriana do autor que "transpira" moralmente aquilo que está ao seu entorno. No entanto, acredito que Girri está longe de uma concepção humanista do mundo que o poeta sensível não deve omitir na qualidade de porta-voz cultural. Sartre foi um estudioso da filosofia de Kierkegaard, porém sabe-se que a contribuição kiekegaardiana foi igualmente chave para a construção da hermenêutica heidggeriana, que por sua vez faz, de outro modo, circular toda uma metralhadora pós-histórica de novos pensamentos, vínculos intelectuais que, sustentando uma profunda e nova desesperança com a metafísica, desfamiliarizam a figura do poeta de seu compromisso de representação histórico-cultural. Sem, evidentemente, querer por definitivo buscar uma (ou a) "origem" filosófica das questões pós-históricas (o que seria voltar ao esquema histórico mais pueril), pode-se ressaltar a reflexão de Kierkegaard como uma pilha de valores para a direção de todo um jogo hermenêutico mais contemporâneo.
Girri, na fala supracitada que toma a questão da sedução, da estética versus ética, está, então, pisando muito menos no terreno sartriano que no campo existencial kierkegaardiano operado contra o sistema racionalista de Hegel. Alberto Girri fala em determinada entrevista sobre o que dizia Kierkegaard acerca da ética: “esa es la parte más humana de la poesia porque, como dijera Kierkegaard, si hay algo que enseña al hombre el sentido de riesgo, ese algo es la ética, que enseña a jugarse el todo por el todo”.
Gostaria de finalizar este ensaio com um poema de Girri, um poema que ele mesmo define como apresentação de “un vivir y verse vivir simultáneos; la situación paradojal de la realidad y de los objetos de la realidad”. O poema chama-se “El poema como idea de la poesia”, e acredito que vai atiçar os leitores a investigar mais sobre a ética deste artista, para quem toda realidade é, paradoxalmente, um suporte e também um efeito plural de sentido de uma percepção criativa:
Que la finalidad
sea provocar el sentimiento
de las palabras,
y alcanzar
el desafío de la expresión,
perseguir objetos
que se ajustan al sentimiento,
hundirse en objetos
hasta la emoción adecuada,
está probado,
y tanto, probado y probado,
como no lo está
el que en esos tránsitos
la tendencia madre sea
por dónde va la inspiración,
«si en frío o en caliente»,
y no lo está
que haya que seguir a Homero
entre las Musas, su rogar que lo asistan,
y a Platón
saludando hermosos versos
más en mediocres pero iluminados
que en sagaces y hábiles exclusivamente
al amparo de sus propias fuerzas,
y a Dante, el reclamar
la intervención de dioses
acaso sin creer en ellos:
O buono Apollo, all'ultimo lavoro
fammi del tuo valor...
Pero tampoco ninguna
terminante prueba hacia lo opuesto,
que el poema
se conduzca en la mente como un
experimento en una ciencia natural,
y que la aptitud
combinatoria de la mente sea
la solo inspiración reconocible.
(de "El motivo es el poema", Sudamericana 1976)
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
KIERKEGAARD, Soren Aabye. "O desespero humano" in Os Pensadores, trad. Carlos Drifo, Maria José Marinho, Adolfo Casais Monteiro, São Paulo: Abril Cultural, 1979
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Daniel de Oliveira Gomes é professor adjunto A na Universidade Estadual do Centro-Oeste, UNICENTRO - Paraná. Mestre e doutor em Literatura pela UFSC. Fez parte de seu doutoramento em Paris, sob vínculo institucional da Université Charle-de-Gaulle Lille III –Sciences Humaines, Lettres et Arts. Atualmente pertence à fundação do Grupo de Estudos Blanchotianos e do pensamento do fora, da UNB. Endereço eletrônico: setepratas@hotmail.com. |