A poesia do português Jorge Melícias é, no mínimo, maldita, é, no mínimo, bendita... Como a frase de Maiakovski que abre o livro “a luz dos pulmões”, o poeta canta com as próprias vértebras... “hoje executarei os meus versos na flauta das minhas próprias vértebras”. Gostaria, neste ensaio, de abrir a análise remetendo a um conto não muito conhecido, um conto de Horror do séc. XIX, de Georges Rodenbach, chamado “O amigo dos espelhos”.
Basicamente, neste conto, um personagem tenta se livrar do seu mal se arremetendo contra um espelho. Tudo principia quando o personagem que mantém uma estranha relação com os espelhos acaba definhando para uma dada loucura. Ele começa a ter inclusões imaginárias com as mulheres de dentro dos espelhos que coleciona. Primeiramente, o protagonista fugia dos espelhos, dos reflexos, das vitrines das ruas, mas, quando desvela a possibilidade de salvação dentro deles, vislumbra mulheres que o seduzem. Mulheres que se olharam naqueles espelhos de outros séculos, que o despistam e se esquivam sedutoramente ou convidam o protagonista a um mundo maldito e bendito de dentro dos espelhos. Este, no jogo amigo/inimigo, onde seus monólogos o impeliam a uma sedução carnal ante as mulheres imaginárias, termina confrontando-se com o horror, qual uma paisagem sangrenta descrita em um poema de Melícias. O personagem se lança contra um espelho de sua própria casa, já resumida a uma caverna espelhada, um antiquário de cristais raros. Veja-se o final do conto:
Um dia acrescentou “o clima deve ser agradável dentro do espelho. Uma hora dessas preciso entrar lá.” Os que cuidavam dele não deram ouvidos. Estavam acostumados àqueles solilóquios misteriosos. E ninguém desconfiava daquele doente tão manso, tão dócil e que só parecia louco porque tinha belos sonhos...
Certa manhã, encontraram-no ensangüentado, diante da lareira de seu quarto, arquejando, com o crânio aberto... À noite, arremetera contra o espelho para entrar nele de fato, abordar as mulheres que seguia havia tanto tempo, misturar-se a uma multidão em que cada um se parecia com ele, afinal! (RODENBACH, 2005, p.411)
O que acho interessante, e para mim aproxima o contemporâneo poeta português Jorge Melícias e Georges Rodenbach, vem a ser o enigma da representação feminina, nesse processo composicional. As mulheres na poética de Melícias aparecem, quem sabe, como monstros “lentamente apodrecendo”, diz ele, ou fantasmas...
Elas são o sítio da memória,
a casa como um pulmão lento.
Mansas mulheres que velam indeclináveis
Estão elas velando os filhos, atrás dos espelhos, atrás dos vidros, pensando apenas neles e na sedução da morte. “Atrás dos vidros ondulam as mulheres.” Igual modo, estas mulheres imaginárias do conto de Rodenbach, com certa atração inevitável que nos leva, fatalmente, ao horror. Para alcançar a beleza feminina é preciso atrair-se para dentro do espelho, antes de mais nada, ensangüentar-se arquejando com os miolos em exposição. É preciso, como na tragédia de Sófocles, “Édipo Rei”, cegar os olhos diante do espelho que lhe mostrava o óbvio que não via porque (dirá Foucault em uma conferência no Rio de Janeiro), Édipo sabia demais, tinha muito saber e poder, seu erro fora o excesso e não a falta.
Tal como, de um modo um pouco diferente, tenho sustentado que a dimensão do trágico, em Melícias, ocorre de uma obsessão pela exuberância. Há um excesso de espelhos profundos na poesia desde poeta, o que faz revermos imagens, representações, desenhos, reflexos de pavor e beleza, em reiteradas metáforas.
O momento mesmo em que o horror se instala no corpo ao nos notarmos penetrados por cacos doloridos, este momento é o da leitura. Abnegamos, assim, essas mulheres de sua posição celestial de musas. A dor não nos deixa vê-las mais assim, como maçãs cujo toque delicia o corpo, e profana e sublima... Estamos diante da interdição do espelho. A pele cristalina do espelho. Ao mesmo tempo a transgressão já foi consumada. Não podemos entrar no espelho, não podemos mais celebrar o fruto, apenas o limite, a própria interdição do belo, como conceito tradicional, bem como de qualquer forma de superioridade, qualquer artefato que, sentimentalmente, ponha-se como soberba, elevação ou acesso.
Nada pode frutificar nas veias vitais de sua criação. O tempo é abstrato, e não existe mais o andamento natural das coisas, o caráter cíclico da vida, a frutificação periódica... Afinal, sua poesia induz a um estado meditativo, quem sabe, a audição compartilhada de uma “longa blasfêmia”, mas onde, ao mesmo tempo, a beleza está “como um dínamo infrene”. Ou seja, a concepção de belo – em toda sua obra e mais especificamente, por exemplo, na obra “uma estaca levantada na cegueira” - é o que se movimenta, ainda em uma estranha circularidade, uma dada maquinação na eterna blasfêmia, o belo adiantando-se ao horror, à morte, à infertilidade infinita.
Como diz a professora Graça Capinha, da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, ao falar da representação feminina no autor:
De facto, quando passamos à leitura destes poemas de Melícias, este estar “simplesmente adiantado uma estação” traz-nos não a celebração da plenitude do fruto, mas antes a consciência da impossibilidade e do limite que essa plenitude significa. O poeta norte-americano Wallace Stevens chamava-lhe a “esterilidade da coisa fértil” (“the barrenness of the fertile thing”), falando do momento em que a planta e o fruto já não podem dar mais de si: o momento de máxima maturação, em que se atinge o limite da forma, e a que se seguirá, inevitavelmente, a queda do fruto, a morte. É essa a verdade que o estar “simplesmente adiantado uma estação” nos traz e todos os poemas de iniciação ao remorso parecem elaborar variações sobre este tema.
Há uma ruralidade que funde a terra e o mar, que nos devolve à matéria e ao corpo, mas que nos encerra definitivamente dentro destes, como se a mera repetição do ciclo − criativo e procriativo − nada acrescentasse ao mundo. A força telúrica da criação encerra-se na morte, no limite, na impossibilidade: “A mulher borda/ violentamente/ o ventre contra o chão./ É este o centro do círculo da loucura/ e a luz está toda nos dedos (…) os frutos estão fechados como pedras” (27). A terra, a mulher, a luz nos dedos, ao dar a vida, dão também a morte; e a loucura, “uma mão/ cheia de sal/ voltada para dentro” (19), não traz a possibilidade da expansão noutras ordens − nem sequer noutras ordens da linguagem. Ela não surge como possibilidade para o poema, mas como o perigo potencial que significará o fim do fogo e da construção que, neste livro, se repetem, qual imagem do centro do círculo, como metáforas da escrita. (CAPINHA, 2007, p. 47)
Como entenderemos a escolha da sacralização do horror, em Melícias? A esterilidade, talvez a única escolha possível? Para isso, teríamos que pensar qual o significado, o desempenho, desses temas do autor, na sociedade atual. O que tais patologias do sublime, pelo autor matizadas, sob metáforas de dor, tortura e medo, podem significar hoje...
Recorro a Jean Baudrillard, escritor e filósofo francês falecido em 2007, que no clássico livro “A transparência do mal. Ensaio sobre os fenômenos extremos”, nos fala de um determinado “teorema da parte maldita” nos dias de hoje. Ele compara sociologicamente o corpo urbano com o corpo biológico, que quanto mais elimina os germes e parasitos que lhe são considerados negativos, mais ocorre a potencialização do horror, ou de uma fraqueza do próprio corpo, uma vulnerabilidade do excesso de limpeza que promove o surgimento de afecções como a metástase e o câncer. O risco viral de anticorpos que devoram a fragilidade do próprio corpo, por exemplo. É assim que Baudrillard patenteia a conseqüência terrível, a lei violada, a que estamos submetidos irredutivelmente quando tentamos, de algum modo, nos livrar do mal, expurgar a estranheza do corpo. Para ele, a complexificação do mal que vivemos hoje é sintoma anômalo do próprio sistema, da desestabilização de valores da hipermodernidade, assim digamos.
A energia da parte maldita, a violência da parte maldita é a do princípio do Mal. Sob a transparência do consenso, a opacidade do mal, sua tenacidade, obsessão, irredutibilidade, energia inversa sempre ativa no desajuste das coisas, na virilidade, na aceleração, no embalo dos efeitos, na ultrapassagem das causas, no excesso e no paradoxo, na estranheza radical, nos atratores estranhos, nos encadeamentos inarticulados.
O princípio do Mal não é moral; é um princípio de desequilíbrio e de vertigem, princípio de estranheza, princípio de sedução, princípio de incompatibilidade, de antagonismo e de irredutibilidade. Não é um princípio de morte; bem ao contrário, é princípio vital de desligação. Desde o paraíso, ao qual seu acontecimento pôs fim, é o princípio do conhecimento. Já fomos expulsos por delito de conhecimento, vamos ao menos retirar disso todos os benefícios. (BAUDRILLARD, 1998, p. 114)
Se a poesia de Melícias é uma poesia do mal, uma enfermidade, o é por ser um fenômeno extremo do próprio fazer poético, nos dias de hoje. A partir de hoje, não devemos descartá-la da memória coletiva, sob pena de redundar e potencializar o mal. Se tememos uma poesia que traduz a negatividade e o medo como sentimentos primordiais, notemos que estamos hoje, para Baudrillard, testemunhando e vivendo o ápice de uma sociedade neurótica que teme a parte maldita como nunca.
A parte maldita está em tudo e Melícias como poeta é também sintoma da parte maldita, eu diria. Uma sociedade que sacrificou, pela profilaxia do temor e das tecnologias incessantes, o equilíbrio natural que o mal representava de algum modo. E, agora, encontramo-nos sob os chamados “fenômenos extremos”, ab-reações, como o terrorismo, a Aids, o craque, os vírus eletrônicos, os acidentes aéreos, a transexualidade, as epidemias, o câncer, as violências hediondas, o excesso de informações malignas nos jornais, a reiteração da perversidade em vários domínios, etc...
Neste mundo patológico, onde simplesmente “ser o que já se é” vem a ser medonho, horrível, naturalmente apavorante, onde a própria beleza de cada um, como um padrão físico corporal, vê-se de imediato arruinada pelo imperativo estético oscilante da artificialidade - oriunda da mídia, das agências de moda, dos esteticistas, da geração verde, dos padrões e inovações técnicas dos cirurgiões plásticos, etc - enfim, a poesia de Jorge Melícias, nesse tempo flagelante no que diz respeito à interioridade, assume uma representação com relação à Parte maldita, de que trata Baudrillard. Será consciente, tal gesto? Será um modo de enfrentar escrituralmente a profilaxia pós-moderna da própria poesia? Melícias proporia uma recuperação das defesas naturais da poesia contra o mal, por meio justamente de um enfrentamento do pathos, por meio de uma nova estabilização contemporânea com a dimensão do mal... (Difícil estar 100% certo). O que podemos arriscar precisar é que esta poesia apresenta uma justa dignidade, no tempo em que vivemos.
Ela mesma vem a se constituir como uma espécie de ab-reação, aberração bendita, contra o imaginário tradicional do belo que, o mais das vezes, exclui o horror, o caos e a catástrofe da imanência do sublime. Imaginário este que se encontra cada vez mais esvaziado do antigo sentido, devido os inúmeros turbilhões e barbarismos que vamos vivendo na hipermodernidade.
Até mesmo a mais simples representação de encantamento instabiliza-se. Homens condenados à solidão extrema e, com as mulheres, à consciência de uma morte que ronda, que se avizinha, que está à nuca... Ou seja, a beleza não é estática e sim uma beleza inexpressiva, putrefata sob o silêncio, beleza que seca em direção à certeza do silêncio que se manifesta, pouco a pouco, como qualquer coisa digna de constante vigília. Assim, observo o amor feminino tornado uma dedicação noturna, sombria.
Há sempre um homem só
como uma torre de sal.
Em redor da mesa as mulheres
que amam
vão lentamente apodrecendo.
Por vezes guincham
e as pedras que seguram nas mãos
abrem-se como têmporas.
Mas a maior parte da noite
vigiam em silêncio
para terem a certeza de que morrem.
É interessante pensar em como emerge uma concepção de beleza intimamente penetrada pelo tema do extermínio, da morte. É que a morte, para o poeta, está associada tanto a algo temeroso, quanto a uma admissível beleza. Em especial no livro de 98, “Iniciação ao Remorso”, vislumbramos a morte ao lado dos temas da loucura e da cegueira, mas não raro uma cegueira “preciosa e absoluta” que renuncia a tudo, a Deus, ao dia, sempre como uma geometria exuberante – poesia noturna, uma espécie de arquitetura gótica, quem sabe. E a morte aparece, com freqüência, por estar associada ao belo, lado a lado com o elemento do feminino. “Em redor da cama as mulheres/ bordam a morte devagar”. O homem dobrado sobre a mesa com a morte na nuca, a título de exemplo, é o pressentimento caseiro da presença afirmativa e perigosa das mulheres como esses fantasmas, o que gera o desejo de apagar o fogo, fogo que não pode apagar a não ser no encontro com a desilusão do espelho, do silêncio.
O homem está dobrado sobre a mesa,
as palmas das mãos presas ao tampo,
a morte na nuca.
Em redor as mulheres delimitam a casa,
são os pulsos da casa,
e há um silêncio como uma pedra rasgada.
Mas hão-de apagar-se as mulheres
primeiro que o fogo.
As mulheres, no poema de “a luz nos pulmões”, representam as figuras das mulheres de casa, na cena da rotina, do casamento, onde o homem está condenado ao hábito, me parece. Como diz Bataille, ao trabalhar o casamento no lugar do erotismo: “o casamento é, antes de tudo, o quadro da sexualidade lícita” (BATAILLE, 2004, p.171). O ato da carne já foi consumado, no casamento, é quando os lugares de cada um já estão predispostos. O que se tem, em Melícias, é uma dada tortura psicológica ante o que se sobrou do erotismo, após a percepção da interdição. O choque com o espelho, um resto de fogo faiscante (disrupção) que se deve apagar juntamente com a própria representação sedutora das mulheres, quer seja, as funções delegadas a cada um. Assim, o poeta as condena à esterilidade extrema.
O “eu-lírico”, no poema acima, dobrou-se abandonado da esfera da família patriarcal. Não tem o pulso da casa... As palmas de suas mãos presas no tampo da mesa, sob o “silêncio de pedra rasgada”, reivindicando mortalmente seu lugar impossível. Exatamente como o professor Immanuel Rath do velho filme “O Anjo Azul” (Der Blaue Engel) de Josef Von Sternberg (um clássico do expressionismo alemão), que morre, desenganado do amor fantasioso que sustentava, segurando o tampo da mesa exatamente do mesmo modo. É inviável conviver com a “alma gêmea”, pois o que vejo no espelho, no momento do horror, é a mim mesmo com o crânio arrebentado (Rodenbach). A morte está na nuca. Nesse sentido, um “transbordar para dentro” ocorre em termos imagéticos.
Jorge Melícias deve e deverá ser acusado por muitos moralistas, imagino, como mais um poeta maldito, um escritor que almeja consagrar uma já velha diferença potencializando temas malditos como um estranho marketing ou mera reversão do belo romântico. Mais que isso, que se tornar implacavelmente um propagador de temas malditos, e de reatualizar temas de horror que já existem desde o séc. XIX - na literatura norte-americana, francesa ou belga, como as ficções de Edgar Allan Poe ou Georges Rodenbach, por exemplo - mais do que isso tudo, o que importa é Jorge Melícias ser um poeta em extrema sintonia com o seu tempo. Um poeta cuja expressão do sublime nos tem convidado a rever certos confins, certas interpretações.
* Boa parte deste ensaio consta no livro “A Poesia do Excesso. Rumo às Vísceras de Jorge Melícias”, lançado pela Toda Palavra, 2011.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
BAUDRILLARD, Jean. A transparência do Mal. Ensaio sobre os fenômenos extremos. Campinas: Papirus Editora, 1998.
BATAILLE, Georges. A Parte Maldita. Rio de Janeiro: Imago, 1999.
RODENBACH, Georges. O amigo dos Espelhos. In: Contos de Horror do séc. XIX (escolhidos por Alberto Manguel). São Paulo: Cia das Letras, 2005.
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