ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

JOHN CAGE – AUGUSTO DE CAMPOS: UM DIÁLOGO

 

 

Daniel Lacerda

 

 

Que seria da música do século XX após os sons / silêncios de Anton Webern? Tendo atingido tal grau de rigor, clareza e concisão, que rumos restar-lhe-iam?  O grau de dificuldade imposto por tais questões acentua-se quando, prosseguindo em nossa investigação, sob a égide do Augusto de Campos dos ensaios Poesia Estrutura e Poema Ideograma, ambos datados de 1955, procuramos respondê-las vinculando à estrutura ideogrâmica a linguagem do compositor pós-weberniano sobre cuja poética, posteriormente, mais intensamente refletiu o autor do “poetamenos”: John Cage.

 

Em sua formação musical, Cage sofreu influxos de dois autores de verves absolutamente distintas: Henry Cowell e Arnold Schoenberg. Em “Henry Cowell: Sons de ‘Agora’”, Augusto de Campos traça um perfil do primeiro:      

É o  grande teórico dos clusters (cachos de sons), agregados sonoros produzidos no piano com emprego do antebraço, do punho ou da mão espalmada, uma prática inteiramente nova e depois dele adotada com freqüência pelos compositores modernos. Foi também um dos primeiros, senão o primeiro, a integrar às suas composições a produção de sons diretamente tocados na harpa do piano. (CAMPOS : 1997, p. 231)

 

Nada mais estranho, portanto, à límpida harmonia da série schoenbergiana – mais tarde, como vimos, purificada por Webern – do que esta aparente desarmonia, instaurada por Cowel em sua música.

 

Cowel  –  Schoenberg: extremos opostos, qual deles mais fortemente viria a interferir na poética de Cage? A resposta,  sugere-a um excerto de outro momento da ‘anticrítica em prosa porosa’ de Augusto de Campos, dedicado a Cage: “cage: chance: change” (CAMPOS : 1986) – literalmente, ‘cage: acaso: mudança’, tradução que não recupera a natureza anagramática  (CAGE / ChAncE; CAGE / ChAnGE; CHANcE; CHANgE) do original, alusão às operações ao acaso, levadas a cabo por Cage em sua obra, como veremos adiante. Eis o ‘retrato do artista quando jovem’ :

 

aluno de henry cowell e de schoenberg

            interessou-se desde cedo pelos instrumentos

            e sons indeterminados

            e pela música e filosofia orientais (...)

            (idem ibidem, p. 214)

 

‘Sons indeterminados’que, próximos do universo dos clusters cowellianos, não poderiam estar mais distantes da matemática dodecafônica schoenbergiana. Não causa espanto, pois, o fato de a relação de Cage com Schoenberg haver se mostrado pouco profícua:

 

            arnold schoenberg

            (que lhe dava aulas de graça

            sob  uma única condição: devotar a vida

            à música)

            recriminou um dia o seu descaso pela harmonia

            dizendo-lhe que para um músico

            isso era o mesmo que defrontar-se com um

            muro

            o jovem cage lhe respondeu:

            ‘nesse caso eu devotarei

            a minha vida

            a bater a cabeça nesse muro”

            (idem ibidem, págs. 214 e 215)  

 

Já a técnica dos clusters de Henry Cowell exerceria papel determinante na invenção do piano preparado,de Cage. No texto sobre Cowell, Augusto de Campos afirma:

Essa “despianização” do piano, ou a redefinição e reorientação de suas potencialidades no sentido de aproveitamento de suas qualidades percussivas e repercussivas, apenas vislumbrada nas Noces de Stravinski, seria objeto de uma coerente e concentrada perquirição por Henry Cowell e através dele chegaria a outro grande inventor da música contemporânea, o seu discípulo e conterrâneo (também californiano) John Cage, e a outras grandes invenções, como o “piano preparado”. (CAMPOS : 1997, p. 231)

 

 

Figura 6 - “mãos de cowel”

 

As experiências de John Cage, que levariam à invenção do piano preparado,  principiaram no final dos anos 30 quando, contratado como músico acompanhante para as aulas de dança moderna da Cornish School de Seattle, Washington, escreveu, atendendo a pedido de uma das alunas, Syvilla Fort, a música para uma peça intitulada “Bacanal”. Cage pretendia utilizar para o evento instrumentos de percussão. Influenciado por Edgar Varése, ele já vinha de uma experiência de compor para instrumentos percussivos, como atesta Augusto de Campos:

 

            first construction in metal (1937)

            escrita só para percussão metálica

            (gamelão, sinos, gongos, folhas de aço,

            cilindros de freio de atutomóvel, bigornas, etc.)

            onde aplica o princípio da tala hindu

            música medida:

            uma estrutura rítmica

            baseada na duração

            não das notas

            mas dos espaços do tempo

            (CAMPOS : 1986, p. 215)

 

Como o espaço físico do teatro não permitia a utilização do arsenal percussivo requerido, o compositor tentara utilizar a linha-de-doze-notas schoenbergeana (sua música, na verdade, oscilara, em suas peças de até então, entre o método de doze-notas e as composições para percussão)  a qual, no entanto, não lhe parecera adequada. Foi quando, sob o signo de Cowell, ocorreu-lhe algo inusitado. Em “How the Piano Came to be Prepared” (“Como o Piano Veio a Ser Preparado”) , incluído em sua coletânea de escritos “Empty Words” (“Palavras Vazias”), afirma o compositor: “Decidi que o que estava errado não era eu, mas o piano. Resolvi alterá-lo.” (CAGE : 1978) Uma das composições de Henry Cowell que John Cage mais admirava era “The Banshee”, sobre a qual Augusto de Campos faz a seguinte análise:

Uma tensão subliminar entre voz e som parece animar a impressionante The Banshee (c. 1925), que alude à criatura fantástica do fabulário irlandês, o espírito anunciador da morte: “gemidos” quase-humanos e timbres pré-eletrônicos brotam das cordas esfregadas longitudinalmente ou beliscadas, segundo várias técnicas, conjugadas à compressão silenciosa dos pedais do piano (por um segundo executante) (CAMPOS : 1998, p. 234)

 

Esse ‘segundo executante’ era, não raro, o próprio Cage. Fulcro de seu contato com Cowell, enquanto aluno e assistente de execução musical, portanto, deu-se a gesta cageana do piano preparado. É do compositor o relato que descreve, pari passu, o processo da invenção:

 

Tendo decidido alterar o som do piano, a fim de criar uma música adequada ao Bacanal de Syvilla Fort, fui à cozinha, apanhei um prato de torta, trouxe-o à sala de estar e coloquei-o sob as cordas do piano. Toquei umas poucas notas. Os sons do piano haviam se alterado, mas a prato balançou ao redor, devido às vibrações e, passado um tempo, alguns dos sons que haviam sido alterados não mais permanceciam. Tentei algo menor: pregos por entre as cordas. Eles escorregavam por toda a extensão delas. Ocorreu-me que parafusos ou porcas permaneceriam em suas posições. Eles permaneceram. E eu fiquei fascinado ao notar que, por meio de uma única preparação, dois sons podiam ser produzidos. Um era ressonante e aberto, o outro silente e brando. O silente era ouvido sempre que o pedal leve era usado. Escrevi o Bacanal rapidamente, com a excitação que a descoberta contínua provera. (CAGE : 1981, págs. 7 e 8)

 

Um depoimento de Cage, de 1937, transcrito por Augusto de Campos em seu ensaio, prevê uma alteração nos valores musicais determinantes até então:

 

            ‘enquanto no passado o ponto de discórdia

            estava entre a dissonância e a consonância

            no futuro próximo ele estará

            entre o ruído

            e os assim chamados sons musicais’

            (CAMPOS : 1986, p. 215)

 

Coteje-se o dizer de Cage com um depoimento de Robert Craft via Augusto de Campos –  “João Webern” –  acerca do maestro Anton Webern e sua relação com o ruído:

 

            “ernst krenek disse que quando webern conduzia

            uma sinfonia de haydn

            ele a fazia soar de tal modo que a gente sentia

            que a tinha escutado pela primeira vez,

            webern parece ter sido

            um maestro extremamente sensível,

            fanaticamente rigoroso, mas paciente.

            seu horror físico

            do ruído fazia-o relutante até de começar a ensaiar,

            por saber de antemão

            que o barulho, a aspereza, a má entonação, a expressão

            falsa e a articulação errada seriam uma tortura”   (robert craft)

            (CAMPOS : 1974, p. 318)

 

Como, pois, conciliar a poética deste que, pelo ruído nutria ‘horror físico’, filtrando, entre silêncios, somente cachos de sons do timbre mais puro,com a daquele que afirmara ser a dualidade ‘ruídos / sons musicais’ o futuro da música, a ponto de, colocando objetos por entre as cordas de seu piano preparado, ‘despianizá-lo’, contrapondo, já ali, ruídos e sons em suas peças ? Augusto de Campos :

 

            webern deu à música erudita

            a dimensão física da música popular.

            o difícil no fácil.

            non multa sed multum.

            bagatelas.

            infra-segundos de superinformação.

            sabedoria que se perdeu com os pósteros

            esses chatos maravilhosos

            de stockhausen a cage.

            (idem ibidem, p. 316)

 

 Já em “cage. chance. change.”, dizendo ser o ‘piano preparado’ cagiano “(...) uma livre / ‘klangfarbenmelodie’ (melodia-de-timbres) / que associa webern ao gamelão indonésio”, Campos afirma estar no diálogo Webern – Cage a chave para uma adequada leitura do futuro da música no século XX :

 

            de certa forma

            cage

            antecipou-se facticamente aos europeus

            na compreensão do fenômeno webern :

            no choque de silêncios

            entre WEBERN e CAGE

  • o europeu e o americano –

está capsulado

todo o futuro dilema da música

entre ordem e caos

(CAMPOS : 1986, p. 216)

           

Webern: a ordem. Cage: o caos. Daí o “profilograma n. 2” – “HOM´CAGE TO WEBERN” (figura 6) – no qual Campos contrapõe os perfis dos dois músicos.

 

Figura 7 – “ Profilograma Cage Webern” (CAMPOS : 2000)

 

 

Na verdade, a atitude cagiana – incorporação da indeterminação à música – pode ser lida como uma resposta àquilo que, para ele, seria um excesso de determinação imposto por alguns compositores pós-webernianos europeus, notadamente Pierre Boulez e Karlheinz Stockhausen. Teria sido o seu ‘piano preparado’ o meio por ele encontrado para ‘bater a cabeça contra o muro’ da pré-determinação. Nos anos 50, os rumos tomados pela música de Cage acentuariam ainda mais esta oposição ao serialismo pós-Webern. É quando o compositor desenvolve, a partir do clássico livro de oráculos chinês, o I Ching, a sua teoria da indeterminação.  A partir de então, passa a compor, segundo Augusto de Campos (CAMPOS: 1986), “mediante operações de acaso” , colocando em xeque a própria noção de composição musical :

            lançamento de dados ou moedas

            imperfeições do papel manuscrito

            passaram a ser usados em suas composições

            que vão da indeterminação

            à música totalmente ocasional. música?

            (idem ibidem, págs. 217 e 218)

 

É deste período uma das mais deliberadamente indeterminadas (anti)obras da lavra cagiana:  4`33``:

 

            em 4` 33``

            um pianista entra no palco

            toma a postura de quem vai tocar

            e não toca nada

            a música é feita pela tosse

            o riso e os protestos do público

            incapaz de curtir quatro minutos e alguns segundos de

            silêncio

            (idem ibidem, p. 218)

 

De acordo com Campos, o silêncio sempre norteara a música de John Cage, “e nesse sentido ninguém entendeu melhor webern do que ele” (idem ibidem). Mas existiria, de fato, o silêncio? Para pô-lo à prova, o compositor chegaria ao extremo de adentrar uma câmara à prova de som, onde ouvira dois sons:

            um agudo

            outro grave

            o agudo era o seu sistema nervoso

            o grave o seu sangue em circulação 

            (idem ibidem, p. 218)

 

Mas, as operações ao acaso – chance operations – cagianas, embora, como já se viu, opostas à pré-determinação de Boulez e  Stockhausen, não deixariam de ter influência sobre as poéticas de ambos os serialistas europeus, nos anos 50. Em seu ensaio “A Arte no Horizonte do Provável”, Haroldo de Campos afirma que, em “Klavierstücke XI”, (1956), Karlheinz Stockhausen “se propusera o problema da introdução do acaso no bojo de sua obra” (CAMPOS: 1977, p. 20). A peça compõe-se de 19 grupos de sons, que podem ser abordados pelo intérprete a partir do ponto que lhe convier – ‘o intérprete olhará a folha sem intenção preconcebida e iniciará a execução da peça pelo primeiro grupo com que deparar seu olhar...’  (idem ibidem, p. 21), diz o compositor, em depoimento citado por Campos. Refletindo sobre a composição, em ensaio sobre a poética stockhausiana, Augusto de Campos afirma:   

As peças para piano (‘Klavierstücke’), as mais difíceis e indigestas, com seu ápice na 11a (1956), arquipélago-móbile de ilhas sonoras, uma resposta às provocações da indeterminação de Cage (na partitura, uma única folha de 53 x 93 cm, 19 grupos de notas distribuídos irregularmente ensejam a escolha aleatória do desenvolvimento e alguns parâmetros sonoros por parte do intérprete), composição que, no dizer de Kyle Gann, faz o piano emular o sintetizador. (…) (Stockhausen, Multimúsico; Folha de São Paulo, suplemento Mais; p. 17)

 

Já a “Troisième Sonate” (“Terceira Sonata”), de Pierre Boulez, por nós anteriormente citada – Capítulo 2 – é composta de cinco formantes, quais sejam: Antífona, Tropo, Constelação, Estrofe e Seqüência. Ao intérprete, é concedida a liberdade de estabelecer a ordem de execução de quatro dos formantes, devendo estar o mais longo e mais importante deles – a Constelação– ao centro. Sobre este eixocentral da obra, diz A.Boucourechliev, citado por Haroldo de Campos: “duas redes de trajetórias que devem ser executadas alternativamente (são assinaladas com tintas de cores diferentes) propõem ao intérprete conjuntos de estruturas dentre os quais ele escolherá seu percurso guiado pela própria notação. O antes e o depois perdem aí seu sentido tradicional; a leitura não é linear, mas diagonal, vertical, em giro” (CAMPOS : 1977, p. 20)

 

Haroldo de Campos chama, com propriedade, a atenção para o fato de o compositor, ao lançar mão do uso de cores para orientação da execução do formante pelo intérprete, usar de expediente similar àquele utilizado por Augusto de Campos na série de poemas “poetamenos”. Lembra ainda que “poemas dessa série, então ainda inéditos, despertaram o interesse de Boulez para com a poesia concreta brasileira” (idem ibidem). 

Ao contrário de Stockhausen, portanto, estabelece Boulez, em sua incursão pela ‘operação ao acaso’, restrições à liberdade do intérprete da ‘Sonate’. Seria a sua, antes, uma ‘operação ao acaso controlado’: “no nível da colocação em jogo das próprias estruturas, penso que se pode desde logo absorver o acaso, instaurando feixes de possibilidades estabelecidos de antemão” (idem ibidem), diz o compositor, em um artigo intitulado “Aléa”, o qual, aliás, afirma Augusto de Campos (CAMPOS : 1998) acabaria por causar a ira de Cage, inconformado com a limitação à indeterminação, teorizada e levada a cabo por Boulez. Campos, porém, relativiza a controvérsia entre os dois autores. Segundo ele, àquela altura de suas obras, muitos eram os elos entre suas estéticas: “São numerosos os pontos em comum entre os compositores, à época – ambos cultivavam a impessoalidade da obra, ambos se utilizavam de tabelas e ‘quadrados mágicos’ para organizarem suas obras, ambos queriam se livrar de toda ‘memória’ musical, ambos, a partir de Webern, pareciam chegar a uma espécie de móbile de explosões sonoras rodeadas de silêncios.” (idem ibidem, p. 154)

O relacionamento dos músicos –  que até então incluía uma assídua correspondência, mais tarde coligida em livro,  sobre a qual Campos reflete em seu ensaio – não resistiria, no entanto, às futuras divergências musicais.

Eles tomariam rumos diferentes, e é difícil imaginar que alguém com uma personalidade musical tão definida como Boulez devesse sucumbir ao ímpeto progressivamente anárquico das idéias de Cage apenas em nome de uma boa amizade. Eles, de fato, se interfluenciaram. Mas o que era liberdade para Cage parecia, em seu limite, facilidade a Boulez, e o que era rigor para este afigurava-se limitado para aquele. Nada a fazer.

(idem ibidem, págs. 154 e 155)   

 

Cage perseveraria em compor sob o signo do acaso e da indeterminação. Em 1952, o compositor havia formulado “Imaginary Landscape” (“Paisagem Imaginária”), sua primeira obra para ‘música de fita’ – ‘tape music’ .  Seguir-se-iam a peça para dois pianos “34` 46` 776``” e “Williams Mix” , para magnetofones ligados a alto-falantes; ambas as obras “incluíam ruídos, gravações em fitas magnéticas / e inesperadas intervenções dos executantes” (CAMPOS : 1986, p. 219).  Uma inusual “Ária” , composta para soprano, contendo “ uma curiosíssima notação / em curvas coloridas e interrompidas / que deixam livre à intérprete / a escolha de quaisquer estilos (...) além de toda a sorte de ruídos (choro de bebê, ganido, gemido voluptuoso, etc (...)” (idem ibidem, p. 219) cerraria a produção cagiana na década de 50.

No início dos anos 60, o compositor se declararia enfadado de fazer música. Diz Augusto de Campos:

 

            depois de ter levado a música

            ao limite da entropia

            e ao silêncio

            cage parecia ter perdido o interesse em compor

            (idem ibidem, p. 221)

 

 

Assim, em 1961, surge seu primeiro livro. Nome: “Silence” (“Silêncio”). Seguir-se-iam:  1967: “A Year From Monday” (“De Segunda a um Ano”) – o único, até aqui, com tradução para o português – ;  1973: “M”;  1979: “Empty Words” (“Palavras Vazias”); 1982: “X”. A eles somar-se-iam as seis conferências pronunciadas na Universidade de Harvard – “I-VI - The Charles Norton Lectures” – , em 1988 e 1989, as quais, segundo o parecer de Augusto de Campos (Pós-Cage; p. 147) “muito mais do que as não-conferências de e.e.cummings (poeta admirado por Cage) refogem (...) a quaisquer modelos ou antimodelos conhecidosda espécie, a não ser os dele próprio” (CAMPOS : 1997, p. 147).   

 

O enfado pela música – que mais tarde revelar-se-ia apenas fugaz, muito provavelmente causado, como quer Campos, pelo ‘limite da entropia’ e pelo grau de ‘silêncio’ atingidos por suas últimas obras dos anos 50  –  levaria Cage a migrar de código sem, no entanto, abrir mão da inventividade que permeara sua linguagem musical. Assim, quanto à temática, seus livros são assim definidos pelo autor de “poetamenos”:

 

            os livros de cage

            são

            inovadores e imprevisíveis

            como a sua música

            em todos eles

            há uma mistura

            aparentemente disparatada de eventos

            cage não fala só de música

            mas de ecologia  política  zen-budismo

            cogumelos  economia  e  acontecimentos triviais

            extraindo poesia de tudo e de nada

            (CAMPOS : 1986, p. 222)

 

Já no que tange à forma e à grafia, Campos diz que os escritos cageanos remetem ao inusitado de suas partituras:

 

            os textos se apresentam

            em disposições gráficas personalíssimas

            indo desde o uso de uma IBM com grande

            variedade de tipos

            até a combinação de numerosas

            famílias de letraset

            dos signos desenhados para indicar

            pausas e ruídos

            como a respiração e a tosse

            até as tonalidades reticulares das letras

            (idem ibidem, p. 223)

 

 

Embora o seu primeiro livro só tenha sido publicado em 1961, Cage já há muito produzia textos: “há mais de vinte anos venho escrevendo artigos e dando palestras”, diz o autor, na apresentação de “Silence” (CAGE: 1961). E muitos destes artigos e destas palestras ajudam a esclarecer aspectos fundamentais de sua música. Assim, em um fragmento de “The Future of Music :  Credo” (“O Futuro da Música : Credo”),  ensaio de abertura de sua obra inaugural, escrito em 1937 – ano, como já vimos, de “First Construction in Metal” (“Primeira Construção em Metal”), sua primeira composição para instrumentos de percussão  – lê-se:   

    

            ACREDITO  QUE O USO DE RUÍDOS

Onde quer que estejamos, o que ouvimos são basicamente ruídos. Quando os ignoramos, nos perturbam. Quando os ouvimos, os achamos fascinantes. O som de um caminhão a cinqüenta milhas por hora. Estático entre estações. Chuva. Queremos capturar e controlar esses sons, usá-los, não como efeitos sonoros, mas como instrumentos musicais. Todo estúdio de cinema tem uma biblioteca de “efeitos sonoros” gravados em filme. Com um fonógrafo cinematográfico é agora possível controlar a amplitude e a freqüência de qualquer um desses sons e dar-lhe ritmos, aquém ou além do alcance de nossa imaginação. Dados quatro fonógrafos cinematográficos, podemos compor e executar um quarteto para motor explosivo, vento, batimentos cardíacos e deslisamento de terra.

                                                                                  PARA FAZER MÚSICA

Se esta palavra –  “música” –  é sagrada e reservada aos instrumentos dos séculos dezoito e dezenove, podemos substitui-la por um termo mais significativo: organização de sons.

VAI PROSSEGUIR E CRESCER ATÉ ATINGIRMOS UMA MÚSICA PRODUZIDA COM O AUXÍLIO DE INSTRUMENTOS ELÉTRICOS (...)

 

            (idem ibidem, p. 3)

 

Um  parágrafo em caixa alta – manchete de jornal? – atuando como entrepausa no corpo do texto principal: fazendo uso desta disposição gráfica inusual, Cage reflete sobre a incorporação de não-instrumentos, ou anti-instrumentosmotor explosivo, vento, batimentos cardíacos e deslisamento de terra – na produção de sua ‘organização de sons’. Cotejado com suas peças para instrumentos de percussão e com suas primeiras experiências em torno do ‘piano preparado’ –  “Bacanal”, lembremos, é de 1938 –  esse excerto poético-crítico adquire caráter quase didático. Assim outros escritos de Cage, como “Experimental Music” (“Música Experimental”) e “Composition” (“Composição”) – em “Silence” –  , além do já citado “How the Piano Came to be Prepared” (“Como o Piano Veio a ser Preparado”) – em “Empty Words” (“Palavras Vazias”). Desta forma, talvez possamos dizer que o Cage  poeta-crítico é o melhor leitor do Cage organizador-de-sons. 

 

Mas linguagens alheias também foram objetos de suas reflexões. Entre elas, releva citar, pela influição que sob sua arte exerceram, a de Erik Satie e a de Charles Ives. “Erik Satie” (1958) é um diálogo imaginário de Cage com o compositor francês –  de acordo com Augusto de Campos, “o dessacralizador por excelência da música erudita” (CAMPOS : 1998). Frases de Satie em itálico, à direita da página, se intercalam com as de Cage, em fonte regular, à esquerda. Cage – que, aliás, já havia declarado, em outro momento, serem as influências de Webern e Satie mais decisivas para a arte da música do que a de Beethoven (idem ibidem) –  abre o texto lamentando o fato de ter de escrever sobre a música satiana:

Há poucos dias atrás, choveu. Eu deveria estar fora, colhendo cogumelos. Mas aqui estou eu, tendo que escrever sobre Satie. Em um momento de descuido eu disse que o faria.  Por que, em nome dos céus, as pessoas não lêem os livros sobre ele que estão disponíveis, tocam a música que está publicada? Então eu, por mim mesmo, poderia voltar aos campos e gastar meu tempo proveitosamente. (CAGE: 1961, p. 76)

 

De fato, a música e o pensamento de Satie parecem muito mais próximos do universo de Cage do que a austera  estrutura dodecafônica de Schoenberg, por exemplo. A exemplo do compositor norte-americano que, em meados do século XX, responde ao cerebralismo europeu com a indeterminação de suas ‘chance operations’,  Satie, ao final do  XIX e nas primeiras décadas do XX,  contrapõe ao impressionismo de Claude Debussy – os “Noturnos” debussyanos são de 1899 – micro-peças perpassadas de paródias, cujos títulos, segundo Augusto de Campos, “criticam (...), em poéticos disparates, a nomenclatura deliquescente de matiz impressionista” (idem ibidem). Entre esses títulos, alguns, mencionados por Campos:“Peças Frias (Três Árias pra Fazer Corre e Três Danças de Viés), 1897;  Prelúdios Flácidos para um Cão, 1912, Três Valsas Distintas do Afeto Enfadado, 1914(...)” (idem ibidem, p. 76).

 

Outro ponto de contato entre Cage e Satie: também este produziria textos entre-códigos, perpassados de iconicidade, matiz da inventividade de sua criação musical (criticado por Debussy, segundo o qual sua música padeceria de um maior apuro formal, Satie responderia-lhe enviando suas “Peças em Forma de Pêra”. . . )

 

Os escritos satianos são assim definidos por Augusto de Campos: “O riso de Satie escoou para os seus Escritos (...). Peças curtas e fragmentárias (como as suas músicas), tendendo ao aforismo: anotações, pseudoestudos, peseudoconferências, quase-poemas, desenhos, anúncios-poemas – um material que demanda, como Esportes e Divertimentos, reprodução fac-similar, pois o design caligráfico é parte integrante da criação.” (idem ibidem, p. 76)

 

Já “Duas Proposições Sobre Ives”  (“Two Statements on Ives”) é resultado de uma intervenção de Cage durante uma aula de poesia na Universidade de Wesleyan, em 1966. O texto omite a pontuação, utilizando, em seu lugar, espaços em branco, remetendo à fala antes que à escrita. Segundo o autor, em nota introdutória à composição, “(...) os hum e mm e outros ruídos (...), assim como as inflexões e as mudanças de volume, deviam ser representadas graficamente.” (CAGE : 1985, p. 36). Assim, triângulos simbolizam as respirações, rabiscos os ruídos e círculos descendentes os goles de saliva. A leitura do ensaio revela que a presença de “aspectos do folk americano e material popular” (idem, p. 43) na música de Charles Ives  fôra o elemento responsável pela rejeição do primeiro John Cage – o das composições para percussão e ‘piano preparado’ –  à música do autor de “Like a Sick Eagle”. Mais tarde, porém, o Cage da indeterminação e das ‘operações ao acaso’  viria a devotar ‘ouvidos novos’ a Ives – “HAPPY NEW EARS”, para fazer uso de título de artigo do próprio autor.

Dois pensamentos de Charles Ives, por Cage citados em seu ensaio, merecem destaque: “(...) As fontes sonoras vêm de diferentes pontos no espaço(idem ibidem); (...)  alguém sentado /  numa varanda / numa cadeira de balanço / fumando um cachimbo /  olhando a /  paisagem que se estende na distância /   imagina que  / quando essa pessoa /  que é qualquer um /  está sentada lá /   sem fazer nada /   está ouvindo sua própria sinfonia (...)” (ibem ibidem, págs. 42 e 43)

 

Perpassadas por uma atmosfera zen-budista, ambas essas divisas, que Cage coloca como fontes propulsoras da sua inflexão em relação à música de Ives (ainda que deixando claro que suas restrições ao que ele chama de “afetuosos, tocantes e sentimentais (...) aspectos americanos de sua música” (idem ibidem, p. 36) não se atenuariam) , absolutamente não surpreenderiam se encontradas em meio aos escritos do próprio autor de “Silence”. Quanto a possíveis paralelos entre as poéticas dos dois compositores, talvez possam ser detectados pontos em comum – ainda que Cage houvesse sentenciado, em sua “History of Experimental Music in the United States” (“História da Música Experimental nos Estados Unidos”) não serem as peças de Ives senão meras “curiosidades do passado” (CAGE : 1961). É o que o demonstra uma leitura mais detida sobre a linguagem ivesiana, como a que a ela dedica Augusto de Campos em “Ives Salve a América” (CAMPOS: 1974).

 

Para Campos, a exemplo da de Satie, também sob a música de Ives – e, complementaríamos nós, a de Cage –  pervaga uma “atitude dessacralizadora” (CAMPOS : 1974, p. 278). Assim, sua “Segunda Sinfonia” (1897-1902) compreende “citações ivesaniadas” , sério-jocosas, de Brahms (“Primeira e Terceira Sinfonias”), Beethoven (“Quinta Sinfonia”) e Wagner (“Tristão” e “Valquírias”), além de Bach, Brückner e Dvorak (“Sinfonia Novo Mundo”), justapostas a hinos e canções populares norte-americanos. Diante de uma gesta de tal teor paródico –  “Música sobre Música. Brahms, Beethoven, Wagner repassados, mastigados, ‘deglutidos’ e confrontados com a música de massa pré-industrial e pré-consumista do coral e do coreto (...)” (idem ibidem, p. 278) – parece-nos que a crítica de Cage à abordagem ivesiana do ‘folk americano’ – ‘afetuosos, tocantes e sentimentais’ –  mereceria ser revista, pois há aqui muito da irreverência da verve colagística que preside a própria arte cagiana.

 

Em outro extremo de Ives, em outro Ives-limite, ouve-se o silêncio. O silêncio de Webern e de Cage. Trata-se de “The Unanswered Question (A Cosmic Landscape)” (“A Pergunta Sem Resposta (Uma Paisagem Cósmica)”)  (1908). Sobre a estrutura da peça, Augusto de Campos comenta:

 

Uma melodia-pergunta é formulada por um pistão (ou oboé) e respondida por um quarteto de sopro (4 flautas ou 2 flautas + oboé + clarineta) contra um fundo de cordas (quarteto ou orquestra) em surdina, que devem ficar fora do palco, à distância dos outros instrumentos. Por seis vezes o pistão entoa a pergunta, num tempo lento. Ao seu encontro, como que por acaso, vêm as respostas do conjunto de sopro, em tempos progressivamente mais rápidos. Por último, é proferida mais uma vez a melodia-pergunta, que permanece irrespondida.

(CAMPOS : 1974, p. 280)

 

Abordando questões de espacialização – “as distâncias entre o instrumento solista e os dois grupos sonoros que agem como blocos separados um do outro”(idem ibidem, p. 280) –  é  a presença do acaso – “a relação entre a pergunta, as respostas e os desencontros delas entre si(idem ibidem, p. 280) – que remete de imediato a Cage. Mas é na inclusão de silêncios que o diálogo de Ives com o autor de “4` 33``” mais intensamente se verifica: “esta é uma composição semântica, um verdadeiro poema sem palavras, onde os sintagmas sônicos adquirem a qualidade de signos com um denotatum  que coincide, isomorficamente, com a própria informação, nos seus três planos: solo (pergunta), cordas (silêncio), conjunto de sopro (resposta)”(idem ibidem, p. 280) A pergunta do pistão – “segundo o autor, a ‘perene indagação da existência’(idem ibidem, p. 280)– repete-se inúmeras vezes, sempre de forma absolutamente clara. Já as respostas dos instrumentos de sopro soam  “cada vez mais entrópicas ou desordenadas”

(idem ibidem). Na medida em que a peça avança, elas diminuem em número,  até atingirem o silêncio, “sobrando, em suspenso, a pergunta que sugere uma forma irresolvida, aberta.”  (idem ibidem, p. 280)

 

Para Campos, é o Mallarmé de “Un Coup de Dés” o único paralelo possível, no plano literário, à aventura de Ives: “The Unanswered Question, na modéstia da sua duração, que gira em torno dos 5 minutos (duração média das composições de Webern), é, na verdade, o ‘Lance de Dados’ ivesiano. A cosmogonia sintético-ideogrâmica de Mallarmé é o único paradigma literário que nos evoca a densa ‘passagem cósmica’ do compositor norte-americano.” (idem ibidem, p. 280)

 

E – via Webern – o Cage dos anos 50 seria um possível paradigma musical, uma réplica provável à “Pergunta Sem Resposta”de Charles Ives.    

 

Mas, retomemos nossa visada sincrônica sobre a poética cagiana. O silêncio de cinco anos de sua música seria quebrado por HPSCHD (Harpsichord), obra inovadora quanto ao seus meios e possibilidades de recepção. Augusto de Campos assim a define:

 

            em HPSCHD (harpsichord)

            para cravos e computadores

            composta em1967-69 em colaboração com lejaren hiller

            teipes de sons eletrônicos microtonais produzidos em computador

            são combinados a citações de vários compositores

            e às valsas para cravo compostas aos lance de dados

            atribuídas a mozart

            tudo articulado por uma programação de computadores

            com sistema numérico derivado do modelo digital do i ching

            certos trechos da composição

            foram gravados no canal da direita

            outros no canal da esquerda

            outros em ambos

            de modo que o ouvinte pode alterar a programação

            (aumentando, diminuindo ou eliminando algumas partes)

            se acionar os botões do seu amplificador

            (CAMPOS : 1986, p. 220)

 

Seguir-se-iam “Cheap Imitation” (“Imitação Barata”), de 1969, diálogo com Satie, através de uma leitura para piano, com intervenções de operações ao acaso, da peça “Socrate” , de autoria do compositor francês; a ‘multimidiática’  “Musicircus” (1971), além de “Bird Cage” (1972). Em 1976, mais uma das obras-limite de Cage: “Renga with Apartament House”. Augusto de Campos:

 

            composta em homenagem ao bicentenário

            da independência norte-americana

            misturando orquestra

            solos vocais e instrumentos

            melodias populares hinos protestantes cantos

            de peles-vermelhas

            acompanhados da projeção de 361 desenhos

            extraídos dos “diários” de thoreau (...)

            (idem ibidem, p. 225)

 

O “Finnegans Wake”, de James Joyce, também interessou a Cage que, ainda em 1942,  musicara um excerto da obra: “The Wonderful Widow of 18 Springs”  (“A Maravilhosa Viúva de 18 Primaveras”). Mais tarde, em 1981, o compositor “escavou sons e ruídos” (idem ibidem) em seu “Roaratorio, An Irish Circus on Finnegans Wake”.

 

Dois têm sido os vieses interpretativos pelos quais a crítica cagiana tem enveredado na tentativa de definir sua arte –  tarefa, a julgar pela abrangência de seu arco, aqui apenas palidamente exposto, e pelas aparentes contradições que o cercam, extremamente árdua: há o Cage Zen-budista e há o Cage Dadá.

 

No que diz respeito à interferência da ideologia zen-budista em sua arte, pode-se toma-la como um fato. Mas um fato que teria implicações estéticas bem determinadas. Ou, cagianamente, poderíamos dizer indeterminadas.  “Cage traduziu o misticismo zen para o pragmatismo americano”, afirmou Décio Pignatari (PIGNATARI : 1998, p. 99). De fato, essa parece ser a chave para a compreensão da questão: a filosofia e a mística orientais traduzidas para a linguagem da cultura utilitária norte-americana.

 

Em “Zen e Ocidente”, Umberto Eco afirma ser o Zen “uma especificação do budismo que mergulha suas raízes nos séculos e que influenciou profundamente as culturas chinesa e japonesa”(ECO : 1988). Mas quais os seus fundamentos básicos?

 

Avalizada por sua venerável idade, essa doutrina vinha ensinar-nos que o universo, o todo, é mutável, indefinível, fugaz, paradoxal; que a ordem dos eventos é uma ilusão de nossa inteligência esclerosante, que toda tentativa para defini-la e fixá-la em leis está condenada ao fracasso . . .  Mas que justamente na plena consciência e aceitação desta alegre condição está a extrema sabedoria, a iluminação definitiva; e que a crise eterna do homem não surge porque ele deve definir o mundo e não o consegue, mas porque quer defini-lo e não deve.

(idem ibidem, p. 206)

 

No Oriente, o alcance da influência Zen atingiria as mais variadas técnicas: da esgrima e do tiro com arco até a pintura, passando pela arquitetura, pelas cerimônias do chá e das flores e pela poesia. Já no Ocidente, Eco reflete sobre a interferência da doutrina oriental, a partir dos anos 50, em vários segmentos de sua arte e de sua cultura – beat generation, pintura informal, psicanálise e filosofia (Jung, Heidegger e Wittgenstein) – para, em seguida, afirmar: 

 

Mas onde a influência Zen se fez sentir de maneira mais sensível e paradoxal foi na vanguarda musical norte-americana. Referimo-nos em especial a John Cage, a figura mais discutida da música norte-americana (sem dúvida, a mais paradoxal de toda a música contemporânea), o músico com que muitos compositores pós-webernianos e eletrônicos estão frequentemente em polêmica, sem poder subtrair-se à sua fascinação e ao inevitável magistério de seu exemplo.

(idem ibidem, p. 211 e 212)

 

E chamando-o “profeta da desorganização musical” e “sumo sacerdote do acaso” (idem ibidem,p. 212) declara o semioticista italiano que, antes do que um músico de vanguarda, Cage,  “deve ser encarado como o mais inopinado dos mestres Zen” (idem ibidem, p. 212), guardando sua música  “muitas e exatas afinidades com a técnica do  e das representações do teatro Kabuki, ainda que somente nas longuíssimas pausas alternadas com movimentos musicais absolutamente pontuais” (idem ibidem, p. 214).

 

Instância exemplar da ascendência Zen-budista sobre Cage seria a introdução à sua  “Conferência na Juilliard”, aonde narram-se trechos de uma palestra de Daisetz Teitaro Suzuki – segundo Umberto Eco, “um ancião que dedicou sua vida à divulgação dessa doutrina no Ocidente, escrevendo uma série de volumes e qualificando-se como a máxima autoridade no assunto” (idem ibidem, p. 205):

 

            Numa conferência         sobre Zen-budismo        no inverno passado,      o dr. Suzuki      disse:               “Antes de estudar Zen,                             homens são homens    e

            montanhas          são                 montanhas.      .                      Enquanto se estuda Zen

            as coisas          se tornam      confusas              :                      não se sabe     ex-

            atamente       o que          é       o que     e        qual         é         qual                .

            Depois de         estudar            Zen,      homens são homens  e     montanhas são          montanhas .”                                                                                         Depois da      conferência       foi feita                       a          pergunta            :                                     “Dr.              Suzuki,                         qual é         a    diferença entre             homens são homens             e                      montanhas        são       montanhas        antes de estudar                       Zen       e                      homens são homens      e          montanhas        são montanhas    depois            de estudar     Zen?”                                          Suzuki  respondeu                        :

            “A mesma coisa            ,                                              só         um pouco          como    se                               você                                    tivesse os         pés               um tanto fora do chão.”  (...)

            (CAGE : 1982, págs. 95 e 96)

 

Já para o exame da face neo-dadaísta de Cage examinemos o que de Dadá diz, em seu “DADA, Art and Antiart” (“Dadá, Arte e Antiarte”), Hans Richter, um dos membros mais atuantes do movimento:

Dadá não só não tinha nenhum programa, era contra todos os programas. O único programa de Dadá era não ter programa . . . e, naquele momento da história, era justamente isto que dava ao movimento seu poder explosivo para desdobrar-se em todas as direções, livre das amarras estéticas ou sociais. Esta liberdade absoluta de preconceitos era algo bem novo na história da arte. A fraqueza da natureza humana garantia que a situação paradisíaca não poderia durar muito. Mas haveria de vir um movimento em que a liberdade absoluta fosse concedida pela primeira vez. Esta liberdade poderia  levar ( e levou) a uma nova arte – ou a nada. Descerceado pela tradição, libertado pela gratidão (um débito raramente pago por uma geração à outra), Dadá expôs suas teses, anti-teses e a-teses. (RICHTER : 1997, p. 34)  

 

 

Caro seria, sem dúvida, à linguagem cagiana o espírito libertário dadaísta, notadamente pelo diálogo que travaria ela com a arte de Marcel Duchamp. Sobre o teor desse diálogo, no entanto, nos deteremos mais demoradamente em nossa leitura da obra duchampiana. 

 

Mas Cage via com ceticismo a abordagem Zen-dadaísta de sua arte. No ensaio intradutório a “Silence”, o autor afirma que os conceitos do Zen e de Dadá estariam, na América dos anos cinquenta, obnubilados:

Críticos freqüentemente gritam “Dadá” após assistir um de meus concertos ou ouvir uma de minhas conferências. Outros lamentam meu interesse pelo Zen. Uma das mais entusiásticas conferências que eu já ouvi foi dada por Nancy Wilson Ross na Cornish School, em Seattle. Chamava-se Zen Budismo e Dadá. É possível fazer uma conexão entre os dois, mas nem Dadá nem o Zen é um tangível fixo. Eles mudam; e de formas bem diferentes, em diferentes tempos e lugares, eles revigoram ações. O que foi Dadá nos anos vinte é agora, com exceção do trabalho de Marcel Duchamp, somente arte. O que eu faço, eu não pretendo creditar ao Zen, ainda que sem o meu engajamento com o Zen (assistindo a conferências de Alan Watts e D. T. Suzuki, lendo a literatura) eu duvido que teria feito o que fiz. Ouvi dizer que Alan Watts questionou  a relação de minha arte com o Zen. Digo isto a fim de isentar o Zen de qualquer responsabilidade por minhas ações. Deverei continuar a fazê-las, no entanto. Eu costumo dizer que hoje em dia Dadá tem em si um branco, um vazio que anteriormente lhe faltava. O que é hoje, na América de meados do século vinte,  o Zen? (CAGE : 1973, p. xi)

 

À guisa de conclusão, perguntar-se-ia em que medida a interdisciplinaridade – Zen-budista, dadaísta, anarquista, ou como a queiram rotular – de John Cage, tão distante da estrutura ideogrâmica, a permear as vozes de um Stephane Mallarmé, de um Ezra Pound, de um James Joyce, de um e. e. cummings, de um Arnold Schoenberg, de um Anton Webern, e –  por conta dos influxos delas – do próprio Augusto de Campos, interferiria na poética deste último?

 

A chave para a compreensão da inflexão camposiana fornece-a, em depoimento a J. J. de Moraes (CAMPOS : 1997), o próprio Campos.

 

Após declarar que seu diálogo com Cage reside antes nas dissimetrias do que nas similaridades entre suas obras – “Eu admiro Cage - e muito -  pelo que ele tem de diferente de mim. Por saber fazer aquilo que eu não sei fazer.” (CAMPOS : 1997, p. 142) – , afirma o poeta que sua produção primeira, a dos anos 50, guarda contato mais íntimo com o “cerrado estruturalismo de Stockhausen e Boulez” (idem ibidem, p. 143). Na década de 60, no entanto, sob o influxo das composições aleatórias e indeterminadas de Cage, passaria o acaso a integrar a elaboração de suas peças:

 

É o que acontece com Acaso e Cidade, ambos de 1963. O primeiro, que faz do acaso seu próprio tema, foi composto com todas as permutações possíveis das letras dessa palavra, libertando assim o controle semântico do texto; no segundo, as palavras terminadas em cidade foram simplesmente arroladas em ordem alfabética, e depois reduzidas, por um segundo critério arbitrário (o da identidade da grafia em português, francês e inglês) ao formato final do poema.

 

 

 

 

 

Nesses dois exemplos, no entanto, não há indeterminação absoluta, e sim, um balanceamento entre o acaso e a razão semântica,  que acaba direcionando o poema.    (idem ibidem, p. 143)

 

No que diz respeito a “Acaso”(figura 7),  primeira das composições por Campos mencionadas, o débito para com Cage é absolutamente evidente. Verdadeira “chance operation”, nela, segundo Haroldo de Campos (CAMPOS : 1977, p. 31), o acaso “é que constitui a informação estética, o poema”.

 

Figura 8 – “Acaso” (CAMPOS : 2000)

 

 

 

Já em “Cidade”, a matemáticae o aleatório, a determinação e a indeterminação, o racionalismo europeu (Stockhausen, Boulez) e o acaso (Cage) parecem convergir. A princípio dispostos alfabeticamente, os vocábulos a desaguar no vocábulo-título são aleatoriamente re(des)ordenados posteriormente. Essa tensão entre a primeira leitura e  as leituras posteriores do poema é levada às últimas conseqüências na oralização por Augusto de Campos operada, com sonorização de Cid Campos, no CD “Poesia É Risco”, onde ecos, reverberações, alterações de velocidade e de entonação legam à peça a atmosfera caótica de uma cidade como São Paulo, por exemplo; ou Paris; ou Nova Iorque: trilíngüe, o poema pode ser lido em tanto em português, como em francês ou em inglês.

 

A somar-se a esses dois casos, sob os quais está implícita a ascendência de Cage, vem o poema           “Memos” (1976) (figura 8), onde, a exemplo do que ocorre em “Cidade”, dá-se a sobreposição de duas leituras, “uma ordenada, pregnante, e outra, caótica, em caminho-de-rato, que se abre à exploratória casual” (idem ibidem, p. 143).

 

Figura 9 – “ Memos” (CAMPOS : 2000)

 

Mas há, também, as homenagens explícitas a Cage. Além do já mencionado “Hom` cage to Webern” , de 1972,  há a ‘enigmagem’ “Pentahexagrama para John Cage” , de 1977 (CAMPOS : 2000), onde a usual pauta musical de 5 linhas e 4 espaços é cagianamente reinventada  em 6 linhas e 5 espaços, estando a primeira e a quinta linhas entrecortadas por brancos, como que a remeter aos silêncios da música do autor norte-americano.

 

Figura 10 – “ Pentahexagrama para John Cage” (CAMPOS : 2000)

 

 E “Todos os Sons”, de 1979 (figura 9), onde, em meio a termos opostos – sins / nãos; ruins / bons –  e a vocábulos de ‘alto’ – Deus / poetas concretos / mães / almas / corações – e de ‘baixo’ – putas, bocetas, caralhos – calibre, aparecem os nomes de João (Gilberto), (John) Cage e Anton Webern, tudo a antecipar o final da peça, onde, à maneira de Gertrude Stein, os três vocábulos que compõem o seu título são repetidos por quatro vezes. Diferentes formas gráficas  são utilizadas na composição que, embora deva ser lida da esquerda para a dirieita, tem suas palavras organizadas em quatro colunas verticais espaçadas, entrecortadas por brancos / silêncios, outro contato direto com a poética cagiana.

 

 

 

           

Figura 11 – “ Todos os Sons” (CAMPOS : 1994)

 

“Pesssoalmente, me sinto incapaz de trabalhar com o acaso total, ainda que admire profundamente as experiências de Cage e ache que elas são autênticas e coerentes com sua personalidade”, diz Augusto de Campos na entrevista a J.J. de Moraes (CAMPOS : 1997, p. 143). Embora distante da estrutura ideogrâmica da série musical, cunhada por Schoenberg e purificada por Webern – de decisiva ascensão, como vimos, sobre o seminal Campos do “poetamenos” –  , a indeterminação e o acaso cagianos não deixaram, no entanto, de dialogar, direta e indiretamente, com a poética de Augusto de Campos.

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Daniel Lacerda é mestre em Comunicação e Linguagens pela Universidade Tuiuti do Paraná – projeto sobre a poética de Augusto de Campos, intitulado A Severa Forma do Vazio – Uma Leitura da Obra de Augusto de Campos –– e Doutor em Estudos Literários pela Universidade Federal do Paraná – projeto sobre o poema Don Juan, de Lord Byron, intitulado Lord Byron: Poeta Crítico – As Di(Trans)gressões Metalingüísticas em Don Juan. Tem 44 anos e vive em Curitiba (PR).

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