ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

LORD BYRON – POETA CRÍTICO:

AS DI(TRANS)GRESSÕES METALINGUISTICAS EM DON JUAN

 

Daniel Lacerda

 

 

1. Beppo: um ensaio para Don Juan

 

 

Em 1817, chega às mãos de Lord Byron – então vivendo em Veneza e meditando há algum tempo sobre uma composição em uma nova forma que, poesia ou prosa, incorporasse algo de suas observações pessoais acerca da cidade – um exemplar de Whistlecraft, poema satírico-heróico em ottava rima recém-publicado, de autoria de John Hookham Frere. Segundo Leslie Alexis Marchand, o poema de Frere “passeava com total abandono coloquial por diversos assuntos, incidentes e personagens” (MARCHAND,1957, p.709). As características semântico-formais da composição descritas pelo biógrafo byroniano, e que citaremos a seguir, na realidade antecipam com precisão e atestam o decisivo influxo que o Whistlecrat teria sobre o último e mais profícuo Byron. Senão, vejamos: “sua falta de unidade, suas digressões, seu engenho epigramático, sua irônica deflação de sentimentos, enfatizada pelos versos cortantes dos dísticos finais das estrofes de oito linhas, seu tom conversacional, os retratos anti-heróicos dos personagens e o desarmante realismo de sua interpretação de vida fez dele um meio ideal para o intento de Byron” (idem).

 

            Preserve with care your noble parts of speech

               And take it as a maxim to endeavour

            To talk as your good mothers us’d to teach

               And then these lines of mine may last for ever;

            And don’t confound the language of the nation

            With long-tail’d words in osity and ation.

            (idem)

 

 

Esta estrofe extraída do Whistlecraft dá bem a medida de seu ‘tom conversacional’ e, também, de sua irônica reflexão sobre a língua inglesa. O poeta sugere ao leitor não confundir a língua da nação com ‘longas palavras em em e ão’ (long-tail’d words in osity and ation), defendendo a adoção de um vocabulário mais coloquial, menos pomposo. Ambas as características certamente devem ter sido as molas propulsoras do entusiasmo de Byron acerca da obra.  Não à toa, sob o impacto da leitura do poema freriano, Byron, conta-nos Paulo  Henriques Britto, “em pouco mais de um mês (...) escreveu a primeira de suas três obras-primas em oitava-rima: Beppo: a Venetian Story(...); era bem diversa de tudo que ele escrevera até então(...); era satírica e não romanesca; era narrativa e não dissertativa” (BYRON, 2003, p.312). E Britto – aliás, o (competente) tradutor de Beppo para a nossa língua –,define com muita propriedade o caráter antecipatório da composição no conjunto da obra do último Byron:

 

 

Em Beppo já se encontram os elementos que iriam caracterizar Don Juan: as rimas jocosas, a narrativa como pretexto para a sátira de costumes, o tom coloquial e íntimo, e principalmente a voz do narrador, o verdadeiro protagonista de Beppo tanto quanto de Don Juan, uma voz ferina, irreverente, a perder-se em digressões infindáveis, a fazer comparações entre Inglaterra e Europa continental, entre figuras históricas ou mitológicas e personagens totalmente desprovidos de grandeza.    

            (idem)

 

 

            Passemos, pois, a uma análise do Don Juan byroniano.

 

 

 

2. Don Juan: poema experimental

 

Em 1819, quando os Cantos I e II de Don Juan ganharam publicação na Grã-Bretanha – work in progress, o poema seria escrito e publicado em série, daquele ano até a morte de seu autor, em 1824 –, Lord Byron, perguntado pelo amigo e editor John Murray, acerca de seus planos para a obra, afirmaria: “I have no plan – I had no plan – but I had or have materials” (BYRON,2004, p. 7). A resposta, ainda que deva, compreensivelmente, ter soado preocupante aos ouvidos de um interlocutor tão ávido pelos futuros lucros do então incipiente trabalho, a nós, seus leitores póstumos, soa bastante instigante enquanto ponto-de-partida para uma análise metalingüística em torno de suas principais características estilístico-semânticas; isto porque, ainda que aparentemente revestido de uma capa de irresponsabilidade e inconseqüência, ou mesmo de uma áurea predominantemente platônico-romântica, uma vez que traz implícita a idéia de um processo de composição gerado meramente pela inspiração, em detrimento do rigor e da elaboração prévia, o dizer de Byron aponta, na realidade, para o fator diferencial, definidor mesmo do caráter do poema: a experimentação. Ao afirmar não ter um projeto, um ‘plano’, mas ‘materiais’ para seu Juan, o poeta atesta o viés experimental que caracterizaria a composição, viés este reforçado pela sua própria condição de obra serial, a princípio ‘programada’, a exemplo dos clássicos épicos, para doze cantos – “my poem’s epic and is meant to be / divided in twelve books” (idem, p. 96), como se lê no primeiro canto – , mas, posteriormente, ampliada a ponto de o autor mencionar, em duas ocasiões distintas, sua disposição de escrever 50 ou mesmo 100 cantos, não sendo a versão que até nós chegou mais do que uma ‘introdução’ ao que se seguiria: “Byron assured his publisher (...) that he had enough juice for ’50 cantos’; and just months before he died, he told his doctor in Greece that ‘he meant to write a hundred’ at the very least, ‘that he had not yet really begun the work – that the sixteen cantos already written were only a kind of introduction’” (BYRON,200, p.8), como afirmam Susan Wolfson e Peter Manning, em ensaio introdutório à uma das edições do poema. Assim, cremos ser lícito interpretar a ausência de um projeto de composição para sua obra como, por si só, um ‘projeto’de Byron para ela; um projeto a ser levado a cabo concomitantemente com a elaboração de seus ‘materiais’, quais sejam, seus versos em oitavas; a poética e a metalinguagem clivadas, portanto: daí o caráter eminentemente experimental do poema byroniano, projetado e executado a um só tempo, perfazendo-se o que Samira Chalhub chama de ‘noção de metalinguagem’ por parte do poeta: “essa é a noção de metalinguagem como duplo: DIZER = FAZER; ao criar, autoCRIticAR, numa inter-ação dinâmica entre criação poética e poética crítica (...);isso implica uma consciência da linguagem do poeta” (CHALHUB, 2005, p. 46).

 

E a fonte teórica do experimentalismo de Don Juan está exatamente naquela que é, para Mikhail Bakhtin, a principal das características da sátira menipéia – à qual, como demonstramos no capítulo anterior, a obra, em suas principais premissas, está filiada. Em seu estudo sobre a sátira, afirma Bakhtin:

 

 

A particularidade mais importante do gênero da menipéia consiste em que a fantasia mais audaciosa e descomedida e a aventura são interiormente motivadas, justificadas e focalizadas aqui pelo fim puramente filosófico-ideológico, qual seja, o de criar situações extraordinárias para provocar e experimentar uma idéia filosófica: uma palavra, uma verdade materializada na imagem do sábio que procura essa verdade. Cabe salientar que, aqui, a fantasia não serve à materialização positiva da verdade, mas à busca, à provocação e principalmente à experimentação dessa verdade. (BAKHTIN, 2005. p. 114)

 

 

Pois, no poema byroniano, o que se dá é precisamente esta submissão da ‘aventura’, ou de seu enredo, à ‘verdade materializada na imagem do sábio’ que a cria, qual seja, o próprio autor. Bem claro está no dizer bakhtiniano, que esta ‘verdade’ não deve ser submetida a qualquer tipo de prova, mas deve, sim, principalmente ser ‘experimentada’ ao longo da obra. Mas, como se dá tal ‘experimentação’? Para entendermo-la, é preciso que não tomemos o termo ‘verdade’ em seu sentido literal e corriqueiro, mas sim como um mero tópico ou ponto de vista aberto,em torno ao qual o autor vai tecer suas hipóteses e considerações. Ou seja, neste ‘experimentar a verdade’ sátiro-menipéico está o cerne da metalinguagem, éthos condutor do poema de Lord Byron. A metalinguagem é, pois, parte integrante, componente essencial da sátira menipéia, residindo na intersecção de ambas o experimentalismo do último Byron.

 

E, curiosamente, não foi um crítico, mas sim uma ficcionista quem modernamente melhor definiu o gesto experimental deste último Byron; referimo-nos a Virginia Woolf que em um fragmento de seus apontamentos críticos afirma: “it is the most readable poem of its length ever written, I suppose: a quality which it owes in part to. . . its method; this method is a discovery in itself; it’s what one has looked for in vain – an elastic shape which will hold whatever one has loked for in vain – an elastic shape which will hold whatever you choose to put into it . . . he could say whatever came into his head; he wasn’t commited to be poetical; and thus escaped his evil genius of the false romantic and imaginative” (WOOLF, 1976 apud EISLER, 2000, p. 610) [grifos meus].

 

Vindo de uma autora radicalmente modernista como Woolf, este depoimento fornece o ensejo para uma discussão em torno do grau de experimentalismo contido no poema byroniano: a autora de Mrs. Dalloway credita sua afirmação de que Don Juan é o mais ‘legível’ dos poemas longos jamais escrito ao seu ‘método’, método este que é, por si só, segundo a autora, uma ‘descoberta’: a de um ‘poema-elástico’, que possa abarcar em si tudo que o autor quiser nele colocar. Não estando mesmo sequer ‘comprometido em ser poético’, Byron, por este viés, desvincularia seu ‘gênio mal’ do ‘falso romântico e imaginativo’.

 

Ora, é precisamente neste seu viés não-poético, ou, talvez fosse melhor dizer, anti-poético, que reside a experimentação de Don Juan e, conseqüentemente, sua desvinculação do credo romântico: ao adotar uma linguagem coloquial-irônica e fazer de todo e qualquer tema objeto de sua obra, Byron permite-se a liberdade de experimentar, tanto em sua dicção quanto em sua temática, a ponto mesmo de fazer com que, ainda hoje, ao lermos seu poema, perguntemo-nos: isto é poesia?

 

E este caráter de experimentação está explicitado já na própria escolha do herói do poema, que se dá no início de sua composição:

 

            I want a hero, an uncommon want,

                 When every year and month sends forth a new one,

            Till after cloying the gazettes with cant,

                 The age discovers he is not the true one.

            Of such as these I should not care to vaunt;

                 I’ll therefore take our ancient friend Don Juan.

            We all have seen him in the pantomime

            Sent to the devil somewhat ere this time.

            (BYRON, 2000, p. 46)

 

 

 

O fato de principiar afirmando ‘I want a hero’ já indica que o poeta queria levar para dentro do corpus poemático a decisão. E de fato o fez. E a forma como o fez não é, como é de praxe nos poemas épico-heróicos, exaltando o nome do herói, no caso do mito lendário da cultura e literatura popular; este, na verdade, foi escolhido em função das necessidades rítmicas da ottava rima: alterando a sonoridade castelhana original do nome da lenda, Byron anglicizou-o para rimar com o ‘one’ de dois versos acima: “old-sounding Juan is only a faint echo in the sound of the repeated ‘one’” (idem, p.13), conforme afirmam Wolfson e Manning. Assim, o nome do libertino sedutor da lenda espanhola é elevado à categoria de herói do poema em função de sua adequação à rima, deixando o poeta, já na abertura de sua obra, clara a sua intenção de nela experimentar. Buscando, no entanto, justificar por meios semânticos sua opção, Byron gasta as duas estrofes seguintes listando nomes de supostos ‘candidatos’ a heróis contemporâneos seus – todos, no entanto, não fazendo, a exemplo de Juan, senão compor as exigências métricas de seus versos ... – , para, no final da segunda delas, afirmar serem eles, sem exceção, embora admiráveis em seus feitos, não ‘adaptáveis às suas rimas’: “exceedingly remarkable at times / but not at all adapted to my rhymes” (idem). Mais adiante, na estrofe de número 5, em um arremate da argumentação em questão, o poeta volta a utilizar o nome do protagonista de seu poema em rima com o vocábulo ‘one’:

 

                             (...) I condemn none,

                  But can’t find any in the present age

            Fit for my poem (that is, for my new one);

                   So, as I said, I’ll take my friend Don Juan.

            (idem, p. 47)

                       

 

 

Obviamente que todos os poetas épicos clássicos cantaram seus heróis – fossem eles um Aquiles, um Godefredo, um Gama – em versos rimados e metrificados, hora em hexâmetros, como em Homero, hora em oitavas rimas, como em Torquato Tasso e Luís de Camões, e as escolhas daqueles heróis por estes poetas não se deveram absolutamente às adaptações de seus nomes às rimas de suas estrofes. Não se queira, pois, atribuir a escolha do Juan de Lord Byron exclusivamente a este fator; na verdade, se no poema byroniano o mito de Don Juan fosse utilizado seguindo as premissas da lenda à qual ele acha-se atrelado, este seria meramente um detalhe a ser mencionado e, logo após, ignorado. Não é, no entanto, isto que ocorre no poema de Byron.

3.O Don Juan de Lord Byron e a lenda de Don Juan

Don Juan nasce para as letras na Espanha dos seiscentos, mais precisamente em 1630, com a publicação da peça teatral El Burlador de Sevilla y el Convidado de Piedra, muito provavelmente (não se tem absoluta certeza de quem a teria escrito) criada pelo frei Gabriel Téllez (1581?-1648), o qual assinava suas obras sob, entre outros pseudônimos (consta que vários foram, tais quais Paracuellos de Cabañas e Gil Berrugo de Texares), aquele que assina a peça em questão: Tirso de Molina, combinando tirso, nome grego que designa o cetro de Dioniso, e molina, variação espanhola para a palavra moinho. A peça gira em torno de quatro conquistas amorosas do sedutor Juan: Dona Isabel, que o recebe em seu quarto antes de casar-se; Dona Ana, que se revolta com um casamento arranjado pelo pai e cede aos cortejos de Juan; Tisbea, uma pescadora que, a exemplo de Haidée no poema de Byron, encontra o jovem desacordado na praia da ilha onde mora e com ele principia um romance que, em verdade, duraria apenas uma noite e, finalmente, Aminta, uma camponesa que em sua festa de noivado é seduzida por Juan.

 

Com a repercussão da peça de Tirso de Molina na Espanha, algumas outras versões do mito registrar-se-iam fora do país em um espaço menor que o de uma geração. Entre elas, destaca-se, na França, a de Molière, ou Jean-Baptiste Poquelin (1622-1675), intitulada Don Juan ou Le Festin de Pierre (‘Don Juan, ou o Festim de Pedra’), datada de 1665. Segundo Celina Diaféria, sua tradutora para o português, a peça de Molière é “mais do que uma narrativa sobre as conquistas amorosas de um devasso” (MOLIÈRE,2006, p. 4); o Juan

do autor francês seria, antes, um personagem mais complexo, “que começa sedutor e, num crescendo, revela-se ateu, libertino e hipócrita” (idem).

 

No século XVIII, o mito migraria de mídia, do teatro para a música: trata-se de Don Giovanni, ópera de Wolfgang Amadeus Mozart composta a partir de libreto de Lorenzo da Ponte. Para Soren Kierkegaard, a abordagem do mito paradigmático da sensualidade que é Don Juan por meio da música tem o predicado essencial de expressá-lo, ao contrário do que ocorre na dramaturgia, de forma abstrata:

 

Sensual love (...) can lump everything together; what is essential for it is woman quite in the abstract, and at most distinctions of the more sensual kind. Love from the soul is a continuation in time, sensual love a disappearance in time, but the medium which expresses this is precisely music. This is something music is excellently fitted to accomplish, since it is far more abstract than language and therefore does not express the particular but the general in all its generality, and yet it expresses the general, not in the reflective abstraction, but in the concreteness of the immediacy. (KIERKEGAARD,1992, p.101)

 

 

Ou seja, meio mais abstrato do que a linguagem verbal, a música não expressa o particular, e sim o geral, mas não o geral em sua ‘abstração reflexiva’ (abstract reflexion); ela expressa o geral na ‘concretude do imediato’ (concreteness of the immediacy). O próprio Kierkegaard exemplifica seu argumento citando a segunda ária da ópera de Mozart / da Ponte, onde todas as mulheres seduzidas por Juan deveriam ser listadas. Segundo o filósofo dinamarquês, tal tarefa nas mãos, por exemplo, de um poeta épico, resultaria interminável: “give him the task of celebrating Don Giovanni epically in song, of unfolding the list of the seduced; what would be the result? he will never finish it! (...); the poet will enter into the multiplicity, there will always be enough to give pleasure but he will never achieve the effect that Mozart has obtained” (idem). Em Mozart, no entanto, o efeito é obtido por via de uma concisão que só a música pode proporcionar:

 

Mozart has not even embarked upon the multiplicity; what he deals with are certain large configurations of passing events. This has its sufficient reason in the very medium, in music, which is too abstract to express the differences. The musical epic thus becomes something comparatively short, and yet it has in an incomparable manner the epic quality of going as long as need be, since it can always let it begin again and hear it over and over again, precisely because it expresses the general in the concreteness of the immediacy.

(idem, p.102)

 

Falando de forma a sintetizar a utilização da figura mítica nas três versões acima citadas, Julia Kristeva afirma:

 

Saída da sombria e calorosa terra de Espanha (El Burlador de Sevilla, de Tirso de Molina, data de 1630), ele lança às mulheres a aos céus (como seria de se esperar em França: Don Juan, de Molière, 1665), piscadelas tão irônicas quanto fascinadas: Dom Juan sedutor, celerado, ridículo, irresistível, é, sem dúvida, a figura mais perfeitamente ambígua – mais perfeita – que nos lega a lenda ocidental em matéria de sexualidade masculina. Foi preciso Mozart, que, em 1787, vai criar em Praga a sua Ópera buffa Dom Juan, para que a temível sedução do nobre espanhol se libertasse enfim da condenação moral que a perseguiu talvez desde seu aparecimento, na imagem febril dos precursores de Tirso de Molina, e encontrasse na música a linguagem direta do erotismo amoral. Assim, ela pode ressoar no mundo todo como um hino à liberdade. (KRISTEVA,1989, p. 225)

 

A citação integral do dizer algo longo e, em linhas gerais, por demais acalorado de Kristeva justifica-se aqui por dar (em que pese, repitamos, seu excessivo entusiasmo) bem a idéia do percurso trilhado pela figura mítica de Don Juan até chegar, em língua inglesa, à Itália do século XIX (Byron havia deixado a sua terra natal, a Inglaterra, para não mais retornar, em 1818). Assim, a lenda, que principiara obscura em Molina, ganharia luz na retórica de Molière e atingiria, como vimos com Kierkegaard e confirmamos com Kristeva, a sua liberdade e a sua espontaneidade na música de Mozart e no libreto de da Ponte. Mas, e Byron, o que faria do tresloucado sedutor em seu poema?  Primeiramente, ‘desmistificando o mito’, torna-lo-ia um personagem humano, com uma história de vida: nascido, crescido e formado culturalmente em sua Sevilha natal, ganharia, mais tarde o mundo – forçosamente, é verdade, em virtude da revelação de seu affair com Dona Julia. Esta ‘desmistificação’, que o afasta das demais ‘versões’ da lenda, foi detectada por Kierkegaard, o qual, ainda que admitindo a ousadia da idéia byroniana, a tomaria negativamente, como uma descaracterização do mito: “Byron has dared to bring Don Juan into existence for us, to tell us of his childhood and youth, to reconstruct him from a context of finite life-cirscumstances (...); the result is to make Don Juan into a reflective personality who loses the ideality that is his in the traditional conception” (KIEKEGAARD,1992, p.111).

 

A esta constatação do filósofo, nosso estudo propõe-se a acrescentar precisamente o rasgo libertário experimental que Byron leva a cabo em seu Juan. Byron opera em seu poema o que poderíamos chamar de bi-polaridade narrativa, qual seja, a instalação de dois pólos de narração, o primeiro deles centrado na figura do protagonista, e o segundo na figura do narrador. Se este procedimento narrativo, por si só, não é nenhuma novidade, uma vez que comum a todos os épicos, em Byron ele ganha, sim, uma dimensão inovadora: referimo-nos ao fato de que o primeiro destes pólos, fulcrado em Juan, é, em Byron, minoritário, não passando de mero adorno e, ou, suporte para o segundo, fulcrado no narrador, este sim majoritário, dominante, fio-condutor do fluxo narrativo e responsável pelos seus momentos de maior crucialidade. Portanto, e esta é mais uma característica experimental do poema que o diferencia sobremaneira das demais variáveis da lenda, remetendo-o, antes, à prosa do Laurence Sterne de The Life and Opinions of Tristram Shandy, o personagem Juan, nas mãos de Byron, não somente despe-se de sua auréola mítica, como vimos com Kierkegaard, mas também torna-se um personagem menor, cujas ‘aventuras’, a exemplo do Shandy de Sterne, não são senão banais, corriqueiras, muito distantes daquelas vividas pelos Juans de Molina, Molière, ou Mozart/da Ponte; muito distante, pois, do mito donjuanesco, mormente pelo fato de que, em Byron, Juan não é um sedutor irreprimível e irresistível, como nos autores acima citados, mas sim um naive que é, antes, ‘seduzido’ e, ou, dominado, ao longo do poema, pelas suas mulheres. Como bem definem Wolfson/Manning, “Byron’s Juan is no rakish pursuer of women, but will have his life run by women: his mother, his lovers, a Sultana, a Czarina, a Lady, and then a designing Duchess of the English ‘Gynocrasy’ (so Byron spells it), and always by Fate (the metaphysical woman)” (MANNING, WOLFSON, apud BYRON, 2004, p. 13). Demonstremos, brevemente, como se dá a predominância do polo narrativo centrado no narrador, por via da análise de segmentos do poema no qual há uma relfexão em torno do ato de criação da obra em si.

 

4. Considerações críticas acerca de Don Juan

 

No que tange às reflexões traçadas no próprio corpus do poemaacerca da mecânica de sua criação, Byron não foi nada avaro. Ao contrário. Abundam, ao longo dos dezessete cantos do Juan, digressões, ora acerca de sua extensão e conteúdo, ora acerca das diferenças que separam o poema das obras do poeta que o antecederam. Embora outras possíveis sendas de penetração a esta característica digressivo-metalingüística da obra possam por ventura existir, a nós parecem estas as mais representativas. Busquemos, pois, instantes do poema nos quais elas se dão.

 

                                   CC

My poem’s epic, and is meant to be

                        Divided in twelve books; each book containing,

            With love, and war, a heavy gale at sea,

                        A list of ships, and captains, and kings reigning,

            New characters; the episodes are three;

                        A panoramic view of hell’s in training,

            After the style of Virgil and of Homer,

            So that my name of Epic’s no misnomer.

 

                                               CCI

            All these things will be specified in time,

                        With strict regard to Aristotle’s rules,

            The Vade Mecum of the true sublime,

                        Which makes so many poets, and some fools:

            Prose poets like blank verse, I’m fond of rhyme,

                        Good workmen never quarrel with their tools;

            I’ve got new mythological machinery,

            And very handsome supernatural scenery.

            (idem, p. 659)

 

 

O que Byron faz no primeiro segmento em questão é, auto-denominando seu poema épico – a expressão se repete ao final da estrofe, desta vez em caixa-alta, como que “agigantada” pela proximidade dos nomes de Virgílio e Homero –, listar os ingredientes essenciais, comuns a todos os épicos, quais sejam: a divisão em doze livros (meant to be divided in twelve books); ‘amor, guerra e uma terrível tempestade no mar, / uma lista de navios, capitães e reis reinando’ (love, and war, a heavy gale at sea, / a list of ships, and captains, and kings / reigning); e, por fim, ‘uma vista panorâmica do inferno’ (a panoramic view of hell), a qual, ‘seguindo o estilo de Virgilio e de Homero’ (after the style of Virgil and of Homer), ainda achava-se ‘em treinamento’ (in training). Tais componentes seriam essenciais à composição, ‘para que o nome Épico não fosse desonrado’ (so that my name of Epic’s no misnomer). A sintaxe a ser empregada, é o tema da estrofe seguinte: ‘estreita consideração às leis de Aristóteles’ (strict regard to Aristotle’s rules), ‘o Vade Mecum do real sublime’ (the Vade Mecum of the true sublime) – o qual ‘faz tantos poetas grandes e alguns tolos’ (makes so many great poets, and some fools) – e, last but not least, a rima: ‘poetas da prosa gostam de versos livres; eu gosto de rimas, / bons trabalhadores nunca brigam com suas ferramentas’ (prose poets like blank-verse, I’m fond of rhyme, / good workmen never quarrel with their tools). Aqui, um ponto fulcral do poema byroniano: o contraponto entre sua sintaxe e sua semântica; ou seja, a estrutura hermeticamente cerrada de seus mais de dezesseis mil versos, divididos em oitavas (com rimas, invariavelmente, em abababcc), contrapondo-se à “abertura” da infinidade de digressões ali operadas. Quanto ao projeto de extensão do poema ali acalentado pelo poeta (doze livros), ele acabaria por ser,

como vimos, extrapolado. É o que se lê exatamente no Canto XII, onde a composição deveria encerrar e, no entanto, onde ouvimos do poeta exatamente o oposto: que ela estava apenas por começar:

 

 

                                               LIV

            But now I will begin my poem. ’Tis

                        Perhaps a little strange, if not quite new,

            That from the first of Cantos up to this

                        I’ve not begun what we have to go through.

            These first twelve books are merely flourishes,

                        Preludios, trying just a string or two

            Upon my lyre, or making the pegs sure;

            And when so, you shall have the overture.

 

                                               LV

            My Muses do not care a pinch of rosin

                        About what’s call’d success, or not succeeding:

            Such thoughts are quite below the strain they have chosen;

                        ’Tis a ‘great moral lesson they are reading.

 

 

 

            I thought, at setting off, about two dozen

                        Cantos would do; but, at Apolos’s pleading,

            If that my Pegasus should not be founder’ed,

            I think to canter gently through a hundred.

            (idem, p 805)

 

 

Flourishes; preludios; just a string or two upon my lyre: denominações empregadas pelo poeta para referir-se aos onze cantos iniciais de Don Juan, que teria, segundo a “nova norma”, no Canto XII sua overture. Na verdade, o que Byron faz aqui é justamente desafiar a lógica aristotélica, à qual ele afirmara anteriormente, com sua ironia habitual, pretender ser estritamente fiel. Contradizendo a si mesmo, ele re-enfatizava seu anti-projeto experimental, qual seja o de não ter nenhum projeto, nenhum plano para seu poema, e, portanto, poder dizer que todo o percurso que percorrera até seu décimo segundo canto não havia sido senão um ‘prelúdio’ do que teria que percorrer (what we have to go through). Mais uma vez, o descaso para com o sucesso, ou seu oposto, o fracasso, é manifesto (my muses do not care a pinch of rosin / about what’s call’d success,or not succeeding). As suas musas moviam-nas, antes, um propósito didático: ’tis a great moral lesson they are reading.

 

Neste segmento, cremos ver a síntese da gesta metalingüística byroniana: sua permanente condição de prelúdio, de obra-por-vir, por começar, continuamente pensado-se a si mesma, seja em sua estrutura, seja em sua semântica. Nesta característica fundamental do poema reside o seu caráter experimental, que o conecta às obras fundantes da modernidade, elas próprias em constante estado de gênese, proto-obras, a significar o que Charles Sanders Peirce, em sua teoria semiótica, chamou de proto-signo, ou quase-signo: “o signo poético-semiótico, que vela e revela a natureza da linguagem, que é um possível de formas, que é a linguagem (homem) nascendo – ou que a quase-propõe – é um proto-signo ou quase-signo” (PIGNATARI,2004, p.74), conforme a leitura de Peirce por Décio Pignatari. E é o mesmo Pignatari que afirma estar o proto-signo / quase-signo peircianopresente em algumas criações dos séculos XIX e XX: “está em um prelúdio de Chopin, quase feito só de inícios; na Opus 21, de Anton Webern, feita só de inícios; no Coup de dés, em Giorgione, em Maso di Banco, em Volpi” (idem:77). Comuns a todas estas obras, bem como, adicionamos nós, ao Don Juan de Lord Byron, a capacidade de ‘velar e revelar a natureza da linguagem’ do, no caso específico de Byron, poema no ato mesmo de sua criação: não um ‘projeto’, mas ‘materiais’, era o que o poeta possuía quando do início da composição de seu Juan. Pois nestes ‘materiais’ está a sua metalinguagem. E o poeta, ao estender indefinidamente sua obra – ao fazer dela uma permanente proto-obra, um permanente proto-signo – dá provas de seu caráter metalingüístico-experimental que o conecta à modernidade.

 

À guisa de conclusão, cabe dizer que, na bi-polaridade narrativa por nós detectada, demonstrada e analisada em seus dois pólos no Don Juan de Lord Byron, quais sejam, a)  aquele que privilegia o protagonista e b) aquele que privilegia o narrador, dá-se o predomínio deste sobre aquele; ou seja, o predomínio do narrar em si, enquanto compêndio de suas variantes poética e metalingüística – fulcrada, a poética, na fisicalidade mesma do

verso (suas rimas, suas imagens, suas aliterações, etc.) e a metalingüística, na composição deste mesmo verso (análise de sua estrutura, ou das estruturas de versos alheios) –  , sobre o narrado, em sua variante referencial (o enredo, ou narrativa).  O triunfo do narrar em Byron é, pois (já o era em Sterne), o fracasso da narrativa; da narrativa contadora-de-estórias, na qual prevalece aquilo que se conta e não a forma com que se conta. Byron inverte os sinais e chama a atenção, em seu poema, para a metalinguagem que seus contemporâneos (Wordsworth, Coleridge, Shelley, para ficar só em alguns dos principais poetas do Romantismo inglês) deixaram em estudos e ensaios e que ele, avant la lettre, instaurou, destilou, no corpus mesmo de seu poema.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

OBRAS DE GEORGE GORDON, LORD BYRON

 BYRON, George G. Complete Poetical Works.  Oxford, Oxford University Press, 1970

 ______. Selected Poetry of Lord Byron. New York, The Modern Library, 2001.

_______.Lord Byron The Complete Miscellaneous Prose. Oxford, Oxford University Press, 1991

._______.Selected Poetry of Lord Byron. New York, The Modern Library, 2001.

_______.Beppo – Uma História Veneziana. Trad. Paulo Henriques Brito. Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 2003.

 ________. Don Juan. London, Penguin Classics, 2004.     

 

OBRAS GERAIS

KIERKEGAARD, Soren. Either Or. .London, Penguin Classics, 2004.

PIGNATARI, Décio. A Metalinguagem da Arte. In: Cultura Pós-Nacionalista. São Paulo, Imago Editora, 1998.

_______. Semiótica e Literatura. Cotia, Ateliê Editorial, 2004.

 

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Daniel Lacerda tem 45 anos. Natural de Curitiba, onde vive, é mestre em Comunicação e Linguagens pela UTP (Universidade Tuiuti do Paraná - 2003),com projeto sobre a poética de Augusto de Campos, intitulado “A Incomunicabilidade Verbal: O Caso Augusto de Campos” e doutor pela UFPR (Universidade Federal do Paraná – 2007) com projeto sobre o poema Don Juan, de Lord Byron, que leva o mesmo nome do estudo aqui publicado.

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