ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

UMA POÉTICA DE DISTINTA LIGA DE AÇO

 

Daniel Lacerda

 

De pouco ou nenhum ganho será a empreitada de quem quer que se debruce sobre a poética de Augusto de Campos – entendida esta como um compêndio de suas tradução, ensaística e “poesia pessoal” propriamente dita – como quem se detém sobre uma linguagem comum, uma linguagem “poética”, com todos os recalques e artificialismos que a palavra traz em seu emprego mais vulgar. A obra de Augusto deve, antes, ser tomada (lida, vista e ouvida, dada a verbivocovisualidade que essencialmente a caracteriza) como uma obra extrema – “distinta liga de aço”, como a nomeou João Cabral de Melo Neto –, que em verdade não se quer “poética”, e sim, anti-poética; e, aqui, é preciso cuidado para não cairmos, também, na vala comum do “anti”, tantas vezes aplicado de forma pueril e inconseqüente para definir poesias que, embora se queiram anti, não logram senão  reiterar outras que as antecederam: são as linguagens dos, no dizer de Ezra Pound, diluidores (diluters), que, não conseguindo galgar as alturas alcançadas por seus mestres (masters),  os quais não criaram linguagens novas, mas superaram as de seus antepassados, não passam de subs; particularmente, em nossa terra brasilis, pululam os sub-drummonds, os sub-cabrais, para ficar apenas nas duas principais sub-categorias de nossa contemporaneidade. Pois bem: embora muitos destes sub-produtos outorguem-se o voto de anti, forjando uma oposição à tradição, sem, no entanto, ir além de meros exercícios pseudo-vanguardistas, é na poética de autores extremos como Augusto de Campos que radicalmente o anti se impõe, opondo-a à corriqueira lírica  tardo romântico-simbolista que permeia as vozes da maioria da poesia aqui e alhures produzida.

Mas em que radica a sua antipoética? Que fatores distanciam-na tanto da tradição passada quanto da diluição presente? Responder a estas duas questões é o objetivo deste estudo.

Um pouco de diacronia, mesmo em uma visada que se pretende prioritariamente sincrônica, se faz necessário: se os nomes de Augusto e Haroldo de Campos, Décio Pignatari, e não somente os deles, mas também os dos nem sempre lembrados José Lino Grünewald e Ronaldo Azeredo, estão irremediavelmente cercados e cerceados pela pecha de concretos, ou concretistas como prefere a crítica acadêmica mais rançosamente conservadora, numa tentativa de lançar os nomes dos poetas no mesmo balaio dos demais ismos da modernidade, é mister situarmos o movimento no âmbito da literatura e das artes do século XX, principalmente por tratar-se este de um trabalho sobre a arte daquele que é indubitavelmente o qual, em sua obra posterior ao movimento dos anos de 1950, dele mais reteve elementos estéticos.

Dentre tantos, um dos maiores empecilhos para uma melhor compreensão da Poesia Concreta no panorama da era moderna (excetuados os preconceitos de praxe dos que a hostilizam permanente e gratuitamente, sem nem sequer se dar ao trabalho de analisá-la, ainda que superficialmente; ou dos que, para poupar maiores incômodos, simplesmente a ignoram), sempre foi a ausência de uma contextualização estética e social de sua aparição, permanência e queda por parte de seus críticos; isto porque a crítica do movimento foi feita (e muito bem feita) pelos seus próprios membros. Crítica e autocrítica, portanto. Hoje, no entanto, mais de meio-século após o seu lançamento (1956), urge, cremos, a) situar o poema concreto à luz, primeiramente, dos movimentos de vanguarda do início do século, que o precederam; b) refletir sobre seus desdobramentos nas obras a posteriori de seus poetas, traçando um pequeno paralelo entre a obra-objeto de nossa investigação e as dos demais concretos. Ou seja, procurar compreender as razões pelas quais um grupo de poetas brasileiros, nascidos no final dos anos de 1920 e começo dos anos de 1930, vieram a desencadear uma poética (pois de poética, afinal, se trata, com um corpo crítico permanente correndo paralelo às criações poéticas) que primava, a um só tempo, pela originalidade e pela radicalidade de suas realizações, é a tarefa à qual aqui nos propomos.

O fato de o movimento ter eclodido no Brasil não torna as coisas mais fáceis. Muito pelo contrário. Um país onde a literatura sempre fora um braço da metrópole e cuja expressão, consequentemente, mormente a partir de sua independência, passara a ser determinada pelo teor de nacionalidade que trazia em seu bojo – o movimento romântico e modernista brasileiros foram, essencialmente o primeiro e, embora em maior grau de complexidade, marcadamente o segundo, nacionalistas –, pois, em um país onde a literatura sempre fora subserviente à pátria, que lugar teria uma poesia que absolutamente não tinha nenhuma pretensão de ser nacional, elegendo mesmo todo um corpo de precursores estrangeiros, com exceção de Oswald de Andrade (poesia-minuto) e João Cabral de Melo Neto (arquitetura funcional do verso), e ambos, ainda assim, de ascendência minoritária, teórico-crítica antes que poética propriamente dita, sobre ela?

Na verdade, esta questão jamais interessou aos concretos, que sempre se quiseram e se autodenominaram internacionalistas, pouco importando que relevância teria para o país no qual viviam e criavam (circunstancialmente, o Brasil...) o movimento que produziam. Seu intuito era dialogar com a arte de alto repertório produzida mundialmente na primeira metade dos Novecentos.

E o corpo de precursores estrangeiros ao qual aludimos acima, ou o seu paideuma, termo cunhado do grego, uma vez mais por Ezra Pound, para denominar um repertório de autores para com os quais determinado(s) criador(es) teria(m) débito, tendo sido aqueles de significativo influxo sobre as obras destes, teria uma característica peculiar e originalíssima, nem sempre posta em relevância pela crítica: o paideuma concreto formar-se-ia por obras que a crítica europeia e norte-americana ainda não descobrira, e que o grupo de poetas brasileiros, avant la lettre, traria à tona, elegendo-as como predecessoras. Tanto o Stephane Mallarmé de Un coup de dés, o qual, sob os influxos da página do jornal e da notação musical, desencadearia um poema-constelação (“sub-divisão prismática de ideias”, como diria o próprio poeta na nota que acompanharia o poema), quanto o Ezra Pound do método ideogrâmico aplicado à composição de seus Cantares, quanto o James Joyce dos portmanteau (palavras-montagem) de seu Finnegans wake, quanto o e.e. cummings dos lirismos “tortográficos” (atomização dos vocábulos na página), foram “descobertos” pela Poesia Concreta brasileira.

Foi, portanto, a gesta concreta uma gesta antes de inclusão do que, ao contrário do que creem e propagem seus detratores, de exclusão: o paideuma concreto compõe-se, sim, de um corpus de obras-limite de pouquíssima penetração, até então, entre a crítica, obras estas cujos elementos serviriam de base para a composição da estética do movimento; mas isto não implica em exclusão de outras obras, à época já melhor digeridas, e que, em maior ou menor grau, também viriam a exercer, seja durante o período de vigência do movimento, seja posteriormente, influxo sobre o grupo de poetas brasileiros – autores como Rainer Maria Rilke, Federico Garcia Lorca, Wallace Stevens, Dylan Thomas, para ficar só em algumas poucos, seriam por eles traduzidos, embora alguns deles por via de aspectos pouco convencionais, ou colocados em segundo plano pela maioria de seus críticos (Rilke, por exemplo, com alguns de seus Novos poemas traduzidos por Augusto de Campos, acentuadamente mais “concreto” do que o Rilke eminentemente “subjetivo” de Elegias de Duino). Assim, é justo dizer que os concretos agregaram vozes ainda por ouvir ao coro da poesia e da arte ocidentais, sem, no entanto, ignorar as demais, e sim, por vezes, abordando-as em alguns aspectos algo inusitados.  

Embora vanguardistas até a medula, aos poetas paulistas não interessou, direta e primordialmente, o simultaneísmo, o tudo-ao-mesmo-tempo-agora das vanguardas do início do século XX. Ainda assim, partiram delas, opondo-se naquele ponto que mais diretamente as caracterizava, qual seja, a celeridade de suas produções: tanto o Futurismo quanto Dadá são produtos estético-culturais da efervescência de um século que iniciara sob o signo da primeira Guerra Mundial e da produção quanti-qualitativa serial em massa gerada pela segunda Revolução Industrial. Um século no qual a física newtoniana, que pressupunha um universo íntegro e homogêneo, teria sua primazia de mais de dois séculos posta em cheque pela ideia de um mundo contingente e multifacetado. Tudo era ebulição. E as parole in libertá de Marinetti e seu grupo, bem como a arte nonsense dadaísta, que havia sido precedida pela Gertrude Stein de Tender Buttons (obra em prosa subdividida em capítulos, cujos títulos nada têm em comum com os segmentos que os compõe),foram produtos deste tempo, intensíssimo e pouco dado à reflexão: se os futuristas ainda tinham um projeto, ou um antiprojeto, que era destruir tudo o que lhes precedera e gerar uma arte nova, na velocidade e no vigor da época, Dadá, como afirma Hans Richter em seu fundamental Dada: Art and Anti-Art, não somente não tinham projeto algum, como também eram contra todos os projetos...

Quatro décadas e duas guerras mundiais mais tarde, outro, bem outro, seria o cenário no qual eclodiria o credo concreto: o Brasil dos anos de 1950 (e aqui, para nós, refletindo a uma considerável distância, acerca do movimento e suas nuances estético-culturais, ao contrário de seus membros, releva, sim, situá-lo em meio à realidade do país) viveria o sonho kubitchekiano da emancipação econômica e cultural. E, em meio à euforia que caracterizaria esta verve emancipatória, surgiriam manifestações estéticas que impressionariam pelas suas dimensões: João Gilberto, Brasília, Pelé, Grande sertão: veredas,tudo parecia convergir para uma potencialização do “produto” nacional, elevado à categoria de excelência em diversos códigos. E, aqui, a poesia concreta tornar-se-ia, precisamente pelo seu caráter universalista anteriormente mencionado, um corpo estranho, jamais vindo a gozar da amplitude receptiva que teriam as demais manifestações – embora, é preciso dizer que o Grande sertão de Guimarães Rosa também ultrapasse em muito as fronteiras restritivas do romance regionalista, ao qual que durante muito a crítica acadêmica mais conservadora tentou, sem êxito, atrelá-lo. O Rosa de Grande sertão é, quer queiram os “puristas” ou não, o nosso James Joyce, sendo o Ulisses e mesmo, em alguns de seus excertos mais ousadamente inventivos, o Finnegans wake,seus paralelos mais pertinentes.

Assim, ainda que sua estética estivesse à margem da cultura de sua pátria natal, os poetas concretos, dada a ambiência brasileira da época, aqui encontraram, cremos ser justo dizer, solo fértil para produzir uma arte que, ao contrário das vanguardas europeias das primeiras décadas dos Novecentos, traria um projeto claríssimo, elaborado no plano piloto do movimento. Tensão de palavras-coisa no espaço-tempo: esta a divisa do movimento, que elevava a página em branco à condição de elemento essencial para a composição (lição mallarmaica), distribuindo, como átomos, no corpus dela, os seus vocábulos (lição cummingsiana).

Outra, essencial, distinção entre o poema concreto e as artes futurista e dadaísta está exatamente na organização dos signos (pois de signos, nem sempre verbais, como veremos, se trata: lição peirceana), ora na página, ora na tela: enquanto as parole in libertá do Futurismo, ou as nonsense radicais de Dadá acham-se pautadas pela entropia, pelo caos, às palavras-coisa concretas permeiam-lhes a ordem, mormente determinada pela utilização da caneta futura em seus poemas, à qual empresta aos vocábulos uma clareza e uma precisão que jamais estiveram na pauta dos vanguardistas europeus. Portanto, quando afirmamos anteriormente que a poesia concreta partiu dos movimentos avant-garde que o antecederam, quisemos dizer que sem a entropia deles ela não teria existido tal qual existiu, contrapondo-lhes como um cristal, a um só tempo claro e rigoroso.

Um cristal, no entanto, de várias fontes e faces, no qual dá-se o que havia sido apenas ensaiado e intentado pelas obras antecessoras de seu paideuma: a morte do verso, tal qual este fora até então concebido e executado até então, isto é, o verso puramente verbal, sem intercessões diretas de sons e imagens. O poema concreto promove a descompartimentação do código verbal, inserindo nele elementos sonoros e visuais. Um vocábulo pinçado de um fragmento do Finnegans Wake joyciano sintetizaria a radicalidade da operação: an admirable verbivocovisual presentmentVerbi (verbo), voco (voz, som), visual (visual, imagem): na mescla de tais elementos residiria o credo da Poesia Concreta.

E este credo, para se constituir, viria a sofrer influxos outros, oriundos de outros códigos, além do verbal, matiz das obras componentes do paideuma, embora nelas já se achasse latente a tensão verbovocovisual que caracterizaria o movimento. Pensado e praticado como uma estrutura dinâmica, na qual dar-se-ia uma multiplicidade de movimentos concomitantes, o poema concreto incorporaria elementos temporais da pintura, arte essencialmente espacial, e elementos espaciais da música, arte essencialmente temporal, fazendo-o através das lições, nas artes plásticas, de, entre outros, o neoplasticismo de Piet Mondrian, cuja arte sofreria, mormente na série Boogie-woogie, um dinamismo que raiava à sonoridade das grandes metrópoles, e, na música, mormente da klangfarbenmelodie (melodia-de-timbres) primeiramente concebida por Arnold Schoenberg e mais tarde purificada por Anton Webern, na qual a cadeia sonora dos timbres, normalmente exclusivamente sonora, é produzida na notação por cores.

A lição weberniana, aliás, viria a produzir influxo direto sobre a obra proto-concreta poetamenos (1953), de Augusto de Campos, na qual a melodia contínua, produzida na música do compositor austríaco por via de deslocamentos de um instrumento para outro, acabaria por gerar, nos poemas seriais de Augusto, frames gráfico-fônicos nos quais frases, e mesmo fonemas, fraturam-se em tons e cores diversas. É, sob certos aspectos, uma das obras mais radicalmente inovadoras do poeta, que representa um interregno entre sua primeira produção e a sua lavra concreta.

Não, a obra de Augusto de Campos, bem como as de Haroldo de Campos, Décio Pignatari, José Lino Grünewald e Ronaldo Azevedo, pasmem os leitores (!), não começa, nem tampouco termina, concreta. A exemplo dos demais, há um Augusto pré e um Augusto pós-concreto, embora tal fato escape aos “críticos” que insistem em chamá-los a todos de concretistas, sem levar em consideração as marcantes diferenças que os separam. E aqui começamos a segunda parte de nosso trabalho: um paralelo (obviamente breve, conciso, compatível com o espaço que dispomos) entre as obras dos “concretistas”.

E comecemos justamente com aquele cuja linguagem mais drasticamente desafia o conceito de concreto. Tão complexa quanto intrigante, a obra de Haroldo de Campos começa – com o Auto do possesso, datado de 1949, quando o poeta contava apenas 19 anos – e termina – com A máquina do mundo repensada, publicada em 2000, três anos antes de sua morte – barroca; ou neobarroca, como passaram a ser chamada as poéticas de autores dos novecentos, em sua maioria latino-americanos, cujas características poéticas sugerem uma retomada da escola dos Seiscentos. E nada mais antagônico ao mínimo múltiplo comum postulado pelo movimento dos anos de 1950 do que a abundância verbal da pérola irregular (neo)barroquista. Assim, pode-se dizer que a Poesia Concreta disciplinou a obra de Haroldo, tornando-a mais sintética e, em alguns momentos, plástica do que fazia antever sua produção pré-concreta – na qual releva o belíssimo Ciropédia, ou a educação do príncipe, portrait of the artist as a young man, que de certa forma emblematiza sua primeira lavra. 

Poder-se-ia, cremos, afirmar que é na proesia (Caetano Veloso) de suas Galáxias (1963-1979), fragmentos independentes em prosa joyciana, com laivos do Rosa de Grande sertão e, diríamos nós, em acréscimo aos dois primeiros paralelos já apontados previamente por outros analistas e pelo próprio Haroldo, da dicção experimental de Gertrude Stein (em especial a dos Portraits, em seus melhores momentos), pois é nas Galáxias que o essencialmente barroquista Haroldo de Campos se deixa “contaminar” de forma mais direta e intensa pela lição concreta.

Entre os três principais concretos, é, sem dúvida, Décio Pignatari aquele cuja obra mais carece de uma análise crítica que faça jus à sua permanente inventividade e experimentação. Isto levando em conta que a obra de Augusto foi revista criticamente na coletânea Sobre Augusto de Campos,organizada por Flora Sussekind e Julio Castanõn Guimarães e publicada em 2004 pela Editora 7 Letras, ao passo que a obra de Haroldo de Campos foi igualmente analisada, em diversas nuances, na obra póstuma Céu acima, belamente editada pela Perspectiva, em 2006. Com grandes poemas criados em sua fase pré-concreta – O lobisomem, Rosa d’amigos, Eupoema, Noção de pátria, além de O jogral e a prostituta negra, esta última, uma peça de verve cummingsiana, em nossa modestíssima opinião um dos pontos altos da poesia brasileira no século XX – Décio comporia, também na fase concreta, geniais obras-primas, tais quais Organismo, poema-orgasmo, no qual o símbolo – o organismo quer perdurar / o organismo quer repetir – iconiza-se passo a passo, até chegar ao “clímax” final, tornando-se um ícone em seu mais puro estado; ou o anti-advertisement beba (babe) coca-cola(cloaca), para citar só alguns pouquíssimos.

Da prática à teoria: em sua fase pós-concreta, Décio descobre a obra de Charles Sanders Peirce, pai da semiótica, e dedica-se profundamente ao estudo de sua obra, vindo a produzir dois estudos absolutamente fundamentais, Semiótica e literatura (1975) e Semiótica da arte e da arquitetura (1978), teses conclusivas de doutoramento e livre-docência, respectivamente, que introduziriam a ciência peirceana entre nós. A leitura dos trabalhos de Décio sobre o semioticista norte-americano não deixa dúvidas que a Poesia Concreta levara às últimas consequências a iconização do símbolo, já antevista em Edgar Allan Poe, Machado de Assis e no Coup de dés mallarmaico, todos eles objetos de análise, sob a ótica de Peirce, por Décio na obra de 1975.

Não satisfeito com a revolução que ajudara a produzir na poesia, Décio (sempre sob a égide de Peirce, cujas postulações serviriam de base, lembremos, não somente para sua arte anterior, mas também para tudo que viesse, a partir da descoberta do pensamento do filósofo norta-americano, a criar) migraria para a prosa, sendo ele o único concreto a por ela se interessar de fato (as Galáxias haroldianas são, como vimos, híbridos entre poesia e prosa, antes que “prosa prosa”). O rosto da memória (1985), compêndio de contos de altíssimo teor experimental, seria a primeira produção pignatariana no terreno da arte que consagrou Machado de Assis. Dentre estes contos, impressiona, pelo altíssimo teor paratático de sua composição, Frasca, que abre o volume: aqui, a narrativa hipotática tradicional, própria da prosa clássica, é preterida em prol da ruptura do sentido entre os parágrafos e entre as sentenças.

Panteros, publicado em 1992, é o único romance lançado por Décio até aqui. “Auto-biografia não autorizada”, como a ele se referiu o autor à época de seu lançamento, é o relato de um caso de amor adolescente, cujos capítulos, cada um deles intitulados por versos extraídos da canção As time goes by, tema do filme Casablanca, devem ser lidos intercaladamente – o primeiro seguido do último, o segundo do ante-penúltimo, e assim por diante –, terminando no meio do volume, com um desenho – o ícone peirceano, uma vez mais, predominando.

Releva, ainda, citar os “biografemas” intitulados Errâncias (2000), os quais nasceram de instigações causadas por fotos de diversas épocas –  arquivo morto tornado “arquivo vivo”, mais uma vez nas palavras do próprio Décio, em entrevista concedida à época do lançamento da obra. Também em Errâncias, dá-se o predomínio da semiótica de Peirce, com o visual (a fotografia) invadindo o texto escrito (verbal), ou sendo por ele invadido, numa interpenetração mútua de códigos.

O “braço carioca” do movimento da Poesia Concreta foi José Lino Grünewald, cuja obra, a exemplo das dos irmãos Campos e da de Pignatari, compõe-se, além de sua poesia propriamente dita, compendiada no volume Escreviver (finalmente, quase uma década após a morte do autor, recentemente reeditada, com todo o suporte editorial que sempre requerera, pela Editora Perspectiva, compensando a paupérrima edição anterior da Nova Fronteira), por uma crítica aguda e arejada, hoje acessível sob o título que, com muita propriedade, sugere uma extensão teórica de sua obra poética: O grau zero do escreviver, e por um corpus tradutório no qual relevam a tradução completa dos Cantares de Ezra Pound e poemas em verso e em prosa de Stephane Mallarmé. Indispensáveis, também, no conjunto da obra de Grünewald, seus ensaios sobre o cinema do século XX. Um filme é um filme é um filme traz visadas seminais sobre a modernidade cinematográfica, notadamente no que diz respeito à linguagem de Jean-Luc Godard, sua evolução em relação à vanguarda que lhe antecedera, notadamente Serguei Eisenstein, evolução esta nem sempre ressaltada, e com certeza não ressaltada em toda a sua complexidade, pela crítica ‘especializada’ de cinema. E é notável que tenha cabido a um poeta uma análise tão abrangente e profunda acerca do cinema moderno.

Já Ronaldo Azeredo é um caso à parte, não somente no panorama da Poesia Concreta, mas, não seria exagero dizer, da própria poesia moderna. Autor de uma obra eminente e complexamente semiótica, na qual ressalta aquele que é, talvez, o mais citado e comentado poema concreto jamais composto – Velocidade –, além de peças em prosa poética e poemas ricamente verbi-voco-visuais, Azeredo, no extremo oposto de seus colegas de movimento, não deixou nenhum ensaio crítico, nem tampouco dedicou-se à tradução, além de ter concedido apenas uma entrevista, no final da vida, ao cineasta e escritor Carlos Adriano (na revista eletrônica Trópico). Sua obra, apenas publicada postumamente, pode, no entanto, ser lida, vista e ouvida (ouça-se, por exemplo, a oralização de seu Velocidade por Cid Campos), como um instigante tecido heurístico-crítico, a dialogar com as de seus colegas concretos.

Como, pois, em meio ao barroquismo de Haroldo de Campos, à semioticidade de Décio Pignatari, ao sincretismo de códigos de José Lino Grünewald e à naiveté de Ronaldo Azevedo situar (obviamente extrapolando o preconceito de praxe de análises estrábicas e preconceituosas, que teimam em ignorar as distinções das linguagens de cada autor, taxando-os, numa estratégia que visa tão somente minimizar suas riquezas e complexidades, de concretistas), situar, em meio a outras que, como ela, um dia foram concretas, mas que posteriormente desenvolveram-se, cada qual a seu modo, personalíssimas, a linguagem de Augusto de Campos?

A obra poético-pessoal de Augusto acha-se compendiada em três títulos, quais sejam: VIVA VAIA (conjunto de obras criadas e editadas de 1949 a 1979), Despoesia (1994) e NÃO  Poemas (2003). VIVA VAIA traz os poemas concretos todos, além das obras predecessoras ao movimento, dos Popcretos (1964) e de resultados de suas primeiras incursões no campo das mídias, levadas a cabo nos anos de 1970. Entre esta primeira coletânea, que abrange as três primeiras décadas de sua produção, e a segunda, um gap de aproximadamente 15 anos, suprido pela segunda, que estamparia a maturidade de sua midiatização e os primeiros resultados de sua mactintoshicação: o primeiro contacto do poeta com o computador pessoal (personal computer) dar-se-ia no início da década de 1990. A partir de então, Augusto passaria a compor somente no computador. E da sua imersão na mídia eletrônica computadorizada deflagar-se-ia sua parceria com o filho músico Cid Campos. Da parceria nasceria o CD Poesia é risco, o qual é um apanhado verbo-vocal das principais composições do autor, acrescidas de traduções suas de poemas de William Blake, Arthur Rimbaud e e.e.cummings, entre outros. O contato constante e, por via dele, o seu aperfeiçoamento no trato com as mídias, renderia mais frutos em sua terceira coletânea de poemas, lançada em 2003, que traz um CD room com clips de poemas que compõem a obra, batizados pelo autor de clip-poemas.

Pode-se, portanto, dizer que a evolução (se podemos empregar tal termo ao tratar de poesia, e especialmente de uma poesia de um grau da complexidade da de Augusto de Campos) é a evolução das mídias eletrônicas. Embora sua obra livresca esteja contida nos volumes acima citados, o poeta enveredou por outros suportes, sempre em parceria com ‘tecnólogos’ que tornariam possíveis suas aventuras verbo-voco-visuais, como Omar Guedes, com quem levaria a termo o álbum de serigrafias Expoemas (1985), composto de 13 peças com toda a “luxúria das cores que a imaginação quis”, nas palavras do próprio Augusto; como Moysés Baumstein, com quem transmutaria peças para a holografia, na década de 1990; e como, antes dos demais, e o mais constante e fiel de todos, que foi Julio Plaza, responsável pela edição, a quatro mãos, da Caixa Preta (1975) e dos Poemobiles (1983).

Estas produções extra-livrescas, indissociáveis que são do todo de sua obra, atestam a constante instigação que representariam as mídias para a linguagem de Augusto. Em sua obra poética, mais, talvez, do que em qualquer outra desenvolvida ao largo da segunda metade do século XX – e adentrando, vivíssima e atualíssima, o XXI –, acha-se posta em prática a máxima do teórico em comunicação canadense Marshall McLuhan: the medium is the message. Mas, a máxima lapidar mcluhaniana tomada, é preciso que se diga, de forma distinta da interpretação corrente à qual ela tem estado presa por décadas, que lhe confere o status de “profética”, “revolucionária”, antecipadora dos suportes midiáticos que mais tarde a sucederiam. O dizer de McLuhan deve, antes, ser lido como contraponto à função poética da linguagem, elaborada pelo linguista russo Roman Jakobson, segundo a qual a função poética tem como fulcro a mensagem voltada sobre si mesma, qual seja, sobre sua própria fisicalidade, sobre seus próprios signos. Transportada para a esfera das tecnologias, a função cerne da poesia por Jakobson desencadeada, lança luz sobre o pensamento mcluhaniano, justificando-o: a mídia (the medium), suporte sobre o qual o artista opera sua “signagem”, é a essência da obra, a qual, se composta sobre outra mídia, descaracteriza-se, tornando-se, a exemplo do poema se transmutado para a prosa, uma outra obra. Uma outra mensagem.

E é assim que a linguagem de Augusto de Campos – “teimosamente”, como já disse o próprio poeta, perseverando, ao contrário de seus companheiros do movimento, no ideal concreto (embora não radicando no “ponto zerológico do silêncio” que, no dizer de Haroldo de Campos, caracterizou a tensão de palavras-coisas no espaço-tempo da “fase heroica” do movimento) – , pois é assim que, operando em mídias diversas, cada qual potencializando o seu teor verbi-voco-visual, que a poesia de Augusto de Campos leva às últimas consequências a máxima do teórico canadense.

Já no que tange à vertente tradutória de sua obra, a excelência atingida por Augusto de Campos mede-se não somente pelo repertório de autores por ele traduzidos, mas, principalmente, pelos resultados atingidos em muitos momentos de suas traduções. Dentre estes momentos, avultam, pela primazia quanti-qualitativa, alguns: as canções de Arnaut Daniel (superando, seja em número, seja em rigor, as que Ezra Pound traduzira para o inglês); as elegias erótico-metafísicas de John Donne; o quase impenetrável Gerard Manley Hopkins dos sonetos e, especialmente, do The Wreck of Deutschland; e o quase inacreditável exercício crítico-tradutório (criticism via translation, lembremos, ainda uma vez mais com Pound) de levar a cabo a versão para o português de mais de cem oitavas do magnífico Don Juan, de George Gordon, Lord Byron. Este apenas um pálido apanhado (pautado, obviamente, por um crivo pessoal, a privilegiar a língua inglesa, matéria de nossa especialidade), que certamente exclui outras jóias tradutórias de Augusto, como o Bateau Ivre de Arthur Rimbaud, ou os já citados Novos Poemas de Rainer Maria Rilke, para citar só alguns dentre tantos outros.

Falar da metalinguagem em uma obra eminentemente metalinguística como a de Augusto de Campos é quase que ocioso, uma vez que o exercício crítico lhe é intrínseco, seja em sua poesia, seja em sua tradução, seja em sua ensaística. No terreno desta última, habitat natural da reflexão analítica, chama a atenção, pela sua natureza heurística, uma obra editada em 1985, intitulada muito percucientemente O anticrítico. Compêndio de ensaios-colagens escritos pelo poeta desde o início da década de 1970, a obra dialoga muito de perto com as nonlectures do poeta e compositor norte-americano John Cage, notadamente o de Lecture on nothing e Lecture on something, além de outro Cage, para com quem o débito da anti-crítica de Augusto seja ainda maior: o dos (não)diários How to improve the world: you will only make matters worse, obra  híbrida, inclassificável quanto ao gênero(diário, poema, ensaio, ou um misto de todos eles), a qual Augusto afirmou ser o único poema (classificação do próprio poeta) longo que ele lera e amara depois dos Cantos de Ezra Pound.

Como, pois, traçar paralelos, pontos de contato, entre linguagens tão dispares como as destes autores, que um dia estiveram sob a égide de um credo comum, mas que, posteriormente, construíram, cada qual a seu modo, projetos pessoais, personalíssimos? O que se pode dizer é que a poesia de Augusto de Campos, ao contrário das demais, continuaria a tensionar o arco concreto, deixando-se iconizar por elementos não-verbais, deixando-se voco-visualizar, aí residindo sua extremidade à qual aludimos no início. E é também em Augusto que a comunicação é elevada a primeiro plano, seja no aspecto semântico (teorizada, dramatizada, em vários de seus poemas), seja no aspecto sintático (os vazios mondrianescos e os cachos de silêncios webernianos perpassando-a , ora em maior, ora em menor grau). E é justamente o fato de ele colocar a comunicação (ou a não-comunicação, seria mais exato dizer) como ponto nevrálgico de sua poética que a torna uma anti-poética – metalinguística até a medula, no questionamento constante do próprio ato poético, tal qual este é usualmente tomado – por excelência.

 

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Daniel Lacerda tem 47 anos e vive em Curitiba. É mestre em Comunicação e Linguagens (UTP-PR),com dissertação sobre a poética de Augusto de Campos (A Severa Forma do Vazio - Uma Leitura da Poética de Augusto de Campos) e doutor em Estudos Literários (UFPR-PR), com tese sobre a metalinguagem no poema Don Juan, de Lord Byron, intitulada Lord Byron: Poeta Crítico - As Di(Trans)gressões Metalinguísticas em Don Juan.

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