JORGE
DE SENA: O SER COMO A GRANDE MÁSCARA
Danilo Bueno
Jorge
de Sena (1919, Lisboa - 1978, Santa Bárbara, Califórnia),
é um poeta central para o debate estético do século XX,
tendo erigido uma extensa obra pelos mais variados segmentos,
como a poesia, a crítica, a prosa de ficção e o teatro.
Para efeitos deste breve estudo, focalizaremos a poesia de
Jorge de Sena e sua relação com a heteronímia na obra de
Fernando Pessoa.
Se,
em Pessoa, a poética do fingimento e da despersonalização
do sujeito poético é programaticamente utilizada como
característica de uma estética que visava à descentralização
da expressão egóica culminando na "abolição do dogma da
individualidade artística" (PESSOA, 1986: 518), em Sena, a
estratégia é diametralmente oposta, como já consignaram
alguns dos seus estudiosos, como Jorge Fazenda Lourenço, e
Fernando Guimarães, uma vez que Jorge de Sena prefere o
testemunho ao fingimento, a vigilância à despersonalização.
Em
Pessoa os heterônimos atingem um raio de ação amplo, dado
os vários projetos poéticos propostos pelas características
de cada heterônimo, construindo uma multiplicidade da apreensão
poética e das grandes pulsões da literatura, como a clássica
em Ricardo Reis e a romântica em Álvaro de Campos. Ao
abarcar posturas e pontos de vista diferentes, Pessoa insere
em sua poética, além da discussão da individualidade
autoral, várias perspectivas para a manufatura do poema, que,
dependendo do heterônimo, contemplava este ou aquele segmento
estético, porém sempre ao nível da idealidade e do
fingimento.
Em
Jorge de Sena, todavia, esfacela-se o próprio eu poético,
desdobrando-se a própria máscara para dar conta da realidade
em que sua poesia quer ser contextualizada. Não há,
portanto, o suporte ficcional pessoano, mas a experimentação
das diversas faces da realidade, sendo que a linguagem do
poema também vai sendo tomada pela surpresa e pelo
conhecimento deste eu poético em uma relação íntima entre
vida e linguagem. Conforme as palavras de Fernando Guimarães:
"O
fingimento seria substituído por uma disponibilidade
vigilante, pelo testemunho. E aquele analitismo que, em
Pessoa, incidia sobre o eu passa a ser transferido para um
plano diferente. Qual? O de uma apreensão das múltiplas distâncias
que tanto nos aproximam como separam das coisas ou dos outros,
criando-se um tu
latente que vai, afinal, sofrer do mesmo modo um desfibramento
analítico." (LISBOA (org.), 1984: 156, itálico da edição).
O
que se depreende do excerto acima é o redimensionamento do
fingimento pessoano atuante na esfera do "eu" para uma
configuração na esfera do "tu". Muda-se o ponto de
vista, mas, ao final, o esfacelamento do "tu" pelo
testemunho é tão grande quanto o do fingimento do "eu",
como se em Sena toda relação com a realidade se erigisse
pelo empirismo deste "tu" perscrutador do tangível, ao
contrário da ficção da heteronímia.
Esta
escolha de Jorge de Sena implica em elevar o próprio ser a
uma espécie de grande cobaia do mundo, sempre aberto e disponível,
aumentando a voltagem lírica de seus poemas, já que se sabe
que a "dor" seniana é algo que, de fato, açoda o poeta,
atingindo sua existência e suas convicções.
O
testemunho seniano não é, de forma alguma, uma expressão
confessional, no sentido pejorativo do termo. Ao contrário, o
ser transmuta a linguagem e constrói sua percepção do
mundo, e não parte de um desabafo ou um esvaziamento do eu
para extrair sua poeticidade.
Jorge
Fazenda Lourenço discorre acerca da tópica testemunhal,
conforme se lê:
"Se
a criação heteronímica pessoana, como a dos apócrifos de
Antonio Machado, a das "máscaras" de W.B.Yeats, ou a das
"personae" de um Ezra Pound, dava expressão a uma
pluralidade ontológica, o facto é que essa forma ou técnica
de apreensão da diversidade do real e transformava numa fórmula
que afirmava um abismo intransponível entre a poesia e o
vivido existencial. Com efeito, a "criação de
personalidades", criaturas
pretensamente autónomas em relação ao seu criador,
nomeadamente na heteronomínia, radica na consideração de
uma exterioridade do estético
em relação ao vivido existencial, reconduzindo a uma,
rejeitada por Jorge de Sena, esteticização da experiência."
(LOURENÇO, 1998: 121, itálicos da edição).
Torna-se
claro, portanto, que em Sena a apreensão do real (inclusive
do temporal, ao contrário da biografia imaginária dos heterônimos
pessoanos) passa obrigatoriamente pelo vivido e pelo
experienciado, até chegar à condição testemunhal que provê
o discurso poético. Tal inversão de perspectiva, em relação
ao gigante precursor Fernando Pessoa, resulta uma opção estética
de extrema originalidade, rejeitando peremptoriamente qualquer
possibilidade de um pessoanismo ingênuo, que muitos poetas
portugueses de meados do século XX sucumbiram.
Somente
para ilustrarmos a perspicácia da análise seniana sobre a
despersonalização por intermédio do fingimento heteronímico
na obra de Fernando Pessoa, leia-se a passagem abaixo:
"Lado
a lado com os heterónimos, o Pessoa ele-mesmo não é menos
heterónimo do que eles. Isto é: o poeta que na vida
civil se chamou Fernando António Nogueira Pessoa, não é de
modo algum mais ele mesmo em seu próprio nome que quando se
deu a escrever no estilo e nos esquemas formais peculiares de
outras personalidades que assumiu. Cremos ser um erro absoluto
quer o aceitarem-se os heterónimos como só admiráveis criações
de um ilustre talento, quer o proclamar-se a fundamental
unidade deles todos com aquele senhor F. A. N.
P. - uma e outra atitude não são resultado de uma
concepção vulgarmente romântica da criação poética, e de
confundir-se a pessoa civil e física de uma criatura com as
sua invenções estéticas." (SENA, 1984: 324, itálicos da
edição).
Torna-se
evidente que Sena apreende o leitmotiv
da técnica pessoana, retirando a aura romântica que a
envolve, ao notar que até a obra ortônima serve para
complementar o programa estético do "drama em gente"
idealizado propositalmente por Pessoa, que como é amplamente
sabido, queria ser o super-Camões. Assim, na outra
extremidade dessa proposição, surge o conceito de
testemunho, conforme outra esclarecedora passagem de Jorge de
Sena:
"Se
a poesia é, acima de tudo, nas relações do poeta consigo
mesmo e com seus leitores, uma educação, é também, nas
relações do poeta com o que transforma em poesia, e com o
acto de transformar e com a própria transformação efectuada
- o poema -, uma actividade revolucionária. Se o
"fingimento" [pessoano] é, sem dúvida, a mais alta forma
de educação, de libertação e esclarecimento do espírito
enquanto educador de si próprio e dos outros, o
"testemunho" é, na sua expectação, na sua discrição,
na sua vigilância, a mais alta forma de transformação do
mundo, porque nele, com ele e através dele, que é antes de
mais linguagem, se processa a remodelação dos esquemas
feitos, das ideas aceites, dos hábitos sociais inconscientes
vividos, dos sentimentos convencionalmente aferidos. Como um
processo testemunhal sempre entendi a poesia, cuja melhor arte
consistirá em dar expressão ao que o mundo (o dentro e o
fora) nos vai revelando, não apenas de outros mundos simultânea
e idealmente possíveis, mas, principalmente, de outros que a
nossa dignidade humana deseja convocar
que o sejam de facto. Testemunhar do que, em nós e
através de nós, se transforma, e por isso ser capaz de
compreender tudo, de reconhecer a função positiva ou
negativa (mas função) de tudo, e de sofrer na consciência
ou nos afectos tudo, recusando ao mesmo tempo as disciplinas
em que outros serão mais eficientes, os convívios em que
alguns serão mais pródigos, ou o isolamento de
que muitos serão
mais ciosos - eis o que foi, e é, para mim, a
poesia." (SENA, 1988: 25-6).
Neste
importante excerto do prefácio ao livro "Poesia I", Sena
registra a oposição com o texto pessoano, em um claro eixo
dialógico, até obter sua síntese, ou seja, o tema do
testemunho. Mais de um estudioso já demonstrou o cariz
eminentemente programático do prefácio aludido, o que
evidencia a metodologia dialética da criação seniana, entre
sua obra crítica e sua obra poética.
Para
demonstrarmos o exposto até agora, transcrevemos excertos do
poema "Os Trabalhos e Os Dias":
Sento-me
à mesa como se a mesa fosse o mundo inteiro
e principio a escrever como se escrever fosse respirar
(...)
Uma corrente me prende à mesa em que os homens comem
(...)
e só eu sei porque principiei a escrever no princípio do
mundo
e desenhei uma rena para a caçar melhor
e falo da verdade, essa iguaria rara:
este papel, esta mesa, eu apreendendo o que escrevo.
(SENA, 1988: 83-4)
Este
poema demonstra muito bem o estar no mundo, atento e
vigilante: "este papel, esta mesa, eu apreendendo o que
escrevo.", como se o ser e a escritura não pudessem ser
dissociados, atuando como uma única dimensão. Outro exemplo:
"Lepra":
A poesia tão igual a uma lepra!
...
... ... ... ... ... ... ... ....
E os poetas na leprosaria
vão vivendo
uns com os outros,
inspeccionando as chagas
uns dos outros
(SENA,
1988: 48)
Neste
poema, a poesia é representada como uma lepra, uma maldição
que se leva agarrada ao próprio corpo, podendo ser associada
à própria máscara do poeta, porém uma máscara que mais
demonstra do que oculta, tendo a função primordial de
integrar o poeta à realidade urgente e factível
.
Assim,
podemos concluir que a grande máscara seniana é a sua própria
poesia, o seu próprio ser testemunhante, ao contrário do que
já explicitado em Pessoa, tal estratégia afirma ainda mais a
importância da obra seniana no panorama da literatura
portuguesa, já que se desvia do gigante precursor e retira a
aura pejorativa da expressão autêntica do sujeito poético,
que foi execrada pelo uso contínuo de certo romantismo sem
qualidade.
Enfim,
Jorge de Sena coloca-se na linha de frente da poesia
portuguesa do século XX, na tradição direta de Camões e
Pessoa, dada a original abordagem de seus precursores.
*
Referências
bibliográficas
LISBOA, Eugénio
(Org.). Estudos sobre
Jorge de Sena. 1.ª ed. Lisboa: Edições Imprensa
Nacional-Casa da Moeda, 1984.
LOURENÇO, Jorge
Fazenda. A Poesia de
Jorge de Sena: Testemunho, metamorfose, peregrinação. 1ª.
ed. Paris: Fundação Calouste Gulbenkian, 1998.
PESSOA, FERNANDO. Obras
em prosa. 1.ª ed. São Paulo: Editora Nova Aguilar, 1986.
SENA,
Jorge de. Fernando
Pessoa & C.ª Heterónima
(Estudos Coligidos 1940-1978).
Ed. Mécia de Sena. 2 vols. 1982. 2.ª., ver. 1 vol.
Lisboa: Edições 70, 1984.
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Poesia I.
Lisboa: Edições 70, 1988.
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Danilo Bueno
é poeta e mestrando em Literatura Portuguesa na Universidade
de São Paulo.
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