ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

POESIA INTIMISTA EM VOZ ALTA

 

Dirceu Villa

 

Conheci Alfredo Fressia creio que em 2002 ou 2003, na época em que ele lançava seu Eclipse (cierta poesia, 1973-2003) [1] e eu lançava o meu Descort; tive imediatamente o entusiasmo que os jovens poetas têm na descoberta de um mestre numa geração anterior à sua. Mas dizer “mestre” é dizer pouco: é possível dominar os meios que nos dão uma voz distintamente poética sem que haja nada daquele gai savoir de transformar não apenas a forma do poema numa assinatura de sua inteligência, mas o poema num ícone, que transforma, ou matiza, por sua vez, nossa percepção.

 

E Fressia tem essa peculiar e rara felicidade: a intimidade de sua voz com a poesia é notável, e permite que nos reconheçamos em seus versos, a nós mesmos e já outros por lê-los, como diz Rilke de modo inesquecível na tradução de Manuel Bandeira para o último verso de “Archaïscher Torso Apollos” [O Torso Arcaico de Apolo]: “força é mudares de vida”. Agora, Fábio Aristimunho Vargas nos trouxe Cantop desalojado, sua cuidada tradução de trinta e poucos poemas de Fressia, em edição bilíngue, que apresenta o poeta uruguaio (vivendo no Brasil há mais de 30 anos) ao público leitor brasileiro.

 

Escrevi, creio que em 2004, um brevíssimo ensaio sobre sua poesia, pretendendo então sugerir algo dessa intensidade contida, centrípeta, que se beneficia de um uso discreto e muito experiente das formas do verso [2], ao mesmo tempo que mantém nas palavras suas qualidades imprescindíveis de mistério (aquela palabra latente, debajo de la palabra que las designa, como propunha o espertíssimo Huidobro), operando nelas sua sutil mudança. Fressia então dizia “penumbrista” para falar de si mesmo, relendo-se ironicamente sob o signo daquele eclipse, de múltiplos significados, que nomeava seu livro.

 

Essa penumbra é na verdade o domínio pouco quantificável em que a inteligência poética organiza o ritual que estabelece aquelas ligações necessárias — e em geral imprevistas —, o aspecto antes difuso se concentrando para nomear as sensações (Drummond escreveria o famoso “penetra surdamente no reino das palavras” para o mesmo efeito), e não aquele grupo penumbrista de franceses, que restavam perdidos numa era que não compreendiam nem desejavam compreender [3]. Alfredo Fressia talvez nos chegue com uma voz particularmente educada e límpida, e talvez a raridade desse feito atualmente nos faça refletir.

 

Montaigne ― que não há de desagradar o Fressia professor de francês ― tinha a sabedoria de filosofar com coisas, é provável que desconfiado de grandes abstrações sistêmicas (quando olhamos para as coisas em detalhe, isso em geral acontece). Há a sabedoria de coisas na poesia de Fressia, também, que é uma sabedoria de si mesmo, um nosce te ipsum, como escreveria em 1580 o próprio Montaigne numa linha justamente célebre: ainsi, Lecteur, je suis moy-mesme la matiere de mon livre, “assim, leitor, sou eu mesmo a matéria de meu livro”. Não porque confessionalmente falasse de si, mas porque percebia o foco muito específico de suas percepções. A poesia de Fressia  habita de um modo definido os lugares, os temperamentos, os diálogos abertos com as vozes dos vivos e dos mortos, acomoda-os dentro de uma possibilidade já quase esquecida de ler o mundo.

 

É talvez importante recordar que a poesia latino-americana de língua espanhola seguiu rumos muito diversos da brasileira, de língua portuguesa: enquanto, nos últimos 50 anos, os brasileiros dividiram-se entre os seguidores da vanguarda concreta e os que se opunham a ela (com poucos poetas que não pertenciam nem a um nem a outro grupo, e faziam marcada questão de não pertencer), entre os de língua espanhola todo tipo de poesia e experimento floresceu [4], de modo que a existência ou não do verso não é essa questão bizantina entre eles, nem o tamanho que a fita métrica lhe der [5]. Há poetas caudalosos tão respeitados quanto poetas de dicção mínima, há poemas de construção muitíssimo incomum ao lado de poemas de formas mais convencionais, lidos pelo que são, e não pela filiação que os enobreceria ou empobreceria, de partida.

 

Fressia, de qualquer forma, não pertence a nenhum extremo, de esdrúxulo incomum ou de mera convencionalidade: quase horaciano, nesse sentido, sua dicção se elabora no justo meio, sem medo nem etiquetas de fácil identificação. Poderíamos talvez pensar que a poesia de Fressia — sobretudo considerando a oportunidade convidativa do Canto desalojado, esta antologia de percurso, com inéditos regalos ao final — vem elaborando dentro de si um discurso que, abolindo as regras de qualquer discurso não-poético, se tornou algo que magicamente combina uma simplicidade muito grande, e aparente, a uma concisão arcana de fórmulas mágicas; mas eu diria sobretudo o que já comecei a dizer pelo título desta modesta reflexão.

 

Se lemos sua poesia, percebemos uma espécie de cultivado monólogo, é o poeta e sua audiência, ele-mesmo, repassando imaginação, linguagem, vida, os outros, as agudas percepções: no entanto, é um solilóquio tão verdadeiro quanto fingido. Ele supõe essa proximidade da voz para dissolver a impressão dentro de poemas que se aproximam de todas as coisas, sejam elas a memória (no impecável “Cartão Postal”), uma experiência de terror transfigurada (em “Praga Invadida”), uma leitura de Heródoto (em “Os Persas”), ou o amor (em “Belo Amor”, e na inteligente e sutil reinvenção homoerótica do tema da rosa em “Mas a Rosa”), etc. Há nos poemas a duplicidade inevitável desse solilóquio feito para os ouvidos de todos, esse intimismo que nos intima, nos conclama. Como escreve José Ángel Leyva na apresentação da edição mexicana de Eclipse:

 

El poeta se reconoce demasiado extenso, con más definiciones que ser un militante, un hijo, un ciudadano, un exiliado, un inquilino, un varón. [6]

 

Formalmente, é preciso destacar a palavra sutileza: é assim, por exemplo, que Fressia consegue uma relação de contiguidade, sugerida pelo efeito sonoro, entre cuervo (corvo), huevo (ovo) e muerte (morte), em um poema como “A Última Ceia”, que então costura as três imagens num tecido de significado que as propõe como obstrução; ou em “Me pregunto”, no qual uma estrutura clássica de perguntas, semelhante ao ubi sunt?, e em verdade muito simples, se desenvolve sobre questões complexas, comoventes sobretudo porque não sentimentais. E escreve:

 

Cómo pude escaparme de la muerte, tantas veces

el encuentro marcado, el cielo indiferente

y postergado.

 

Que o leitor perceba como Fressia constitui o gesto muito simples e muito esperto de “adiar” a rima em postergado, dando-nos no próprio corpo do poema, em sua estrutura, o seu significado: ele nos faz ver & ouvir aquilo que nos diz. É um sentido ao mesmo tempo musical e estrutural do verso. É disso que estou falando quando uso palavras abstratas como “sutileza” ou “maestria”.

 

A dificuldade de defini-lo vem justamente da delicadeza dessas composições: elas exigem o nosso envolvimento, nosso espanto em desvendar suas enoveladas simplicidades, nossa cumplicidade em descobrir seus segredos, que a bela-inescapável mentira do verso transforma em verdade luminosa; mas a dificuldade da definição, os traços errantes que nos escapam, no esforço de falar coerentemente, em geral revelam a força da hábil poesia que se busca apreender. Não se apreende num simples comentário, é claro, mas pode e será captada in the unstopped ear, como escreveu Ezra Pound no começo de Mauberley: esse é o sentido da poesia, e a de Fressia é uma das mais vivas, hoje.

 

Notas

[1] Livro que, além de apresentar a série Eclipse, reuniu antologicamente seu notável percurso poético de 30 anos.

[2] Como seu último livro, Senryu o El árbol de las sílabas (2008), por exemplo, em que cultiva a forma japonesa  ― semelhante ao haicai ― adaptada em cem poemas brevíssimos.

[3] Fressia estaria em companhia mais condizente entre outros franceses, e de ascendência uruguaia, como Jules Laforgue ou Isidore Ducasse.

[4] Nos EUA aconteceu coisa semelhante ao Brasil, um debate igualmente estéril, registrado no posfácio de Paul Vangelisti à antologia da impressionante e extrema, mas virtualmente desconhecida, poesia de Robert Crosson, no qual escreve sobre algo que se assemelhava ao “debate paroquial” dos anos 1960 e começo de 1970 entre os poetas de “fôlego” e os do “sonho”: “que tendia a fazer a linguagem poética cada vez mais inútil para qualquer coisa que não fosse discurso auto-referencial, e a obra de poetas realmente inovadores como Crosson ficou às moscas.”, in: Crosson, Robert. The Day Sam Goldwyn Stepped off the Train, New York, Agincourt, 2004, p.106.

[5] Ser conciso não é o mesmo que escrever pouco. Há poetas com duas palavras na página muitíssimo mais tagarelas do que os dois poemas épicos de Homero, como bem sabeis.

[6] Leyva, José Ángel. “Presentación”, in: Fressia, Alfredo. Eclipse, cierta poesía (1973-2003), México, D.F., 2006, p.8.

 

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Dirceu Villa é poeta, tradutor, ensaísta e professor de literatura.

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