OVELHA NEGRA:
O REBANHO DE POETAS ESCOCESES
Donny Correia
Não
é a primeira vez que me debruço para escrever umas tantas
palavras sobre o trabalho de Virna Teixeira. Poeta das mais
significativas nos últimos tempos, Virna também é tradutora, e
sua tradução está focada principalmente na poesia da Escócia,
país onde viveu entre 2001 e 2003 quando recebeu uma bolsa do
British council para os estudos de mestrado na área médica.
Justamente no campo da tradução poética, Virna Teixeira lançou
este ano o livro Ovelha Negra - Uma antologia de poesia da
Escócia do século XX (Lumme Editor), um discreto volume
que revela muito sobre a criação em versos daquele país.
Discreto, sim, porém absolutamente pertinente e essencial à
compreensão da poesia em seu todo.
Já
na introdução da obra a tradutora nos avisa que neste Ovelha
Negra o leitor encontrará uma seleção bastante pessoal. No
entanto esta seleção, mesmo que subjetiva, revela muito dos
paradigmas criativos dos artífices literários britânicos: um
estilo de composição que transita de maneira muito sutil entre
a poesia e a prosa. Neste sentido, traduzir este tipo de
poesia requer uma habilidade que vai além de transpor para o
português (ou qualquer outra língua de chegada) o sentido
literal do original. O tradutor que lida com a poesia
produzida no Reino Unido precisa ficar bastante atento aos
limites que separam os componentes prosaicos dos poéticos.
Ainda, para se trabalhar neste tipo de composição, há que se
ter uma afinada intimidade com a cultura daqueles países, uma
vez que os autores britânicos são mestres em rechear seus
poemas com várias referências muito peculiares e arraigadas à
vida de seu povo, amalgamando-as a impressões pessoais. Tais
referências às vezes tornam-se obscuras armadilhas nas mãos
inábeis de um tradutor de primeira viagem que se mostra
disposto a enfrentar os highland espalhados nos versos
da poesia britânica.
O
que chama mais atenção no trabalho de Virna Teixeira é
exatamente esta habilidade em lidar com referências,
vocabulário algumas vezes dialetado (já que na Escócia, embora
o inglês seja língua oficial, existem alguns dialetos
derivados do gaélico e do scotts, línguas faladas no princípio
daquelas civilizações), e uma profunda consciência
nacionalista presentes nos versos dos 13 autores selecionados,
que revelam como o país está presente nas preocupações do
poeta.
Como o subtítulo da obra mostra, trata-se de um mapeamento
criterioso do que há de mais significativo na trajetória
poética escocesa do século XX. Estão lá desde declarações de
amor explícito ao país, como os poemas de Hugh MacDiarmid
(1892-1976) e Norman MacCaig (1910-1996), até panoramas da
vida cotidiana e histórica, como mostram poemas de Liz
Lochhead, ou a marcante presença das questões culturais como
matéria prima para a composição, como é o caso de Pais e
filhos, do poeta Tom Leonard.
Transcrevo a seguir pequenos trechos de cada poeta citado
acima para ilustrar meu raciocínio.
De
Hugh MacDiarmid um pequeno poema que filosofa e transita entre
o interno e o externo de alguém que só quer estar em paz com
suas origens:
A Pequena Rosa Branca
A
rosa do mundo não é para mim.
Da minha parte eu quero
Apenas a pequena rosa branca da Escócia
Que cheira cortante e doce - e parte o coração
Repare-se neste curto poema que a alegria e a melancolia de
ser escocês caminham de mãos dadas. Já
em
Norman MacCaig,
não há dúvidas da urgência em se estar em casa e a fé em sua
terra natal.
De Londres a Edimburgo
(...)
Escócia, para você eu me apresso
Para o meu futuro que
A cada minuto
Decresce na dianteira.
Tom
Leonard retoma a questão cultural, desta vez com menos lirismo
e mais com um quê de humor britânico:
Pais e Filhos
(...)
'Você não acha
o uso do dialeto fonético urbano
algo constritivo?'
Liz
Lochhead é hoje uma das mais importantes e comentadas poetas
da Escócia, e a propósito disso cabe uma nota pessoal: Foi
exatamente na ocasião da visita de Liz ao Brasil que fui
apresentado a Virna Teixeira. O consulado britânico
em
São Paulo havia me solicitado a tradução de 7 ou 8 poemas de
Liz Lochhead para um recital, em setembro de 2005. Vim a saber
que Virna Teixeira também estava traduzindo a poeta e
provavelmente já trabalhando no que viria a ser a Ovelha
Negra. Assim começou nosso debate a respeito da poesia
britânica. Coincidentemente, Virna já havia trabalhado um dos
poemas o qual eu traduzira. Exatamente um dos que mais me deu
panos para a manga por não conseguir decifrar as entrelinhas
dos versos e por não ter, naquela época, a tal intimidade
cultural a qual mencionei anteriormente. Soma-se a isso o
tempo exíguo para que os poemas fossem entregues. Reproduzo o
original e a tradução na íntegra para que o leitor veja, na
prática, o que significa o domínio que Virna mostra ao verter
para o português esta crítica política e social que Liz
Lochhead forja a partir de referencias emblemáticas.
The Unknown Citizen
How
to exist
Except
In
a land of unreadable signs and ambiguous symbols
Except
Between the hache and the ampersand
Except
Between the ankh and the ziggurat
Between the fylfot and the fleur de lys
Between the cross and the cresecent
Between the twinned sigrunes and the swastika
Or
the sauvastika its mirror image, its opposite -
Meaning dakness/light whichever -
With a blank page for passport
Except
Under some flag
Some bloody flag with a
Crucially five
(or
six or seven)
pointed star?
O cidadão Desconhecido
Como existir
Exceto
Numa terra de sinais ilegíveis e símbolos ambíguos
Exceto
Entre o "e" comercial
Exceto
Entre a cruz ansada e o zigurate
Entre a cruz gamada e a flor de lis
Entre a cruz e o cresecente
Entre o sigrune duplo e a suástica
Ou
a sauvástica sua umagem espelho, seu oposto -
Significando escuridão/luz o que seja-
Uma
página em branco como passaporte
Exceto
Sob
alguma bandeira
Alguma maldita bandeira sobretudo
Com
uma estrela de cinco
(ou
seis ou sete)
pontas?
A
poesia britânica é marcante, sobretudo, pelo recurso
aliterativo no vocabulário. Recurso que Virna recupera muito
bem ao transpor para o português.
Avançando antologia à dentro, há o trabalho de Dilys Rose,
poeta e pensadora que escreve também para crianças. Pelos
poemas selecionados percebe-se, aqui sim, uma autora que marca
muito bem a função poética através de textos que lidam com as
fobias.
Hipnofobia
Era
o deslizamento o derreter
A
fronteira apagada entre substância e ausência
Era
morder sobre cinzas seus ossos desmoronados
O
reflexo dos faróis dianteiros ampliando a cortina por fendas
(...)
o
cobertor do seu próprio cheiro sua própria
pele
era
o abraço do travesseiro definhado a devoradora
escuridão
O medo de dormir na poesia de Dilys Rose fornece matéria prima
para o desenrolar poético na semântica de cada léxico
escolhido, dispostos de maneira precisa, explorando os vácuos
que cindem cada verso.
A
propósito do estilo adotado na tradução dos poemas
em
Ovelha Negra, Virna Teixeira não segue muito a linha da
transcriação ou da tradução como crítica, conceitos
professados por Pound, os irmãos Campos e Décio Pignatari, e
tão retomados, ora de maneira preciosa, ora enfadonha, por
diversos tradutores de poesia. Ela segue uma linha mais fiel
ao original e muito discreta. Isso não é nenhum demérito ao
trabalho final. Pelo contrário, quem conhece a produção
original de Virna Teixeira, sabe que ela prova a cada novo
poema que menos é mais. Por isso, talvez, ela sinta-se tão à
vontade para afirmar que a seleção desta antologia é pessoal,
porque muito da visão contemplativa e minimalista dos poetas
escolhidos, estão na própria obra da tradutora (refiro-me aos
livros Visita e Distância).
Virna já havia lançado em
2006 a antologia Na estação central, tradução de poemas
de Edwin Morgan, e não o deixou de fora neste rebanho de
ovelhas negras. Aliás, em Edwin Morgan consigo enxergar alguns
dos elementos principais que influenciam os poemas escritos
por Virna. Transcrevo abaixo fragmentos de um poema da
antologia.
Glasgow 5 de março de 1971
(...)
O
rosto do rapaz
Está repleto de fragmentos de vidro
E a
perna da garota ficou presa
Fora da janela quebrada
(...)
No
cenário dois motoristas
Observam a estrada.
Morgan assume a posição de observador de um mundo mansamente
caótico. E eu já havia comentado em outro texto sobre Virna
Teixeira, a capacidade que ela mostra em seus poemas de
assumir a mesma posição contemplativa a partir de uma vitrine
do mundo, onde coisas acontecem a despeito dos reflexos em
nós.
Ovelha Negra é sim, uma seleção pessoal, um roteiro de viagem
que convida o leitor a transitar por diversas vozes. Acima de
tudo é uma seleção bidimensional que nos revela quais são as
vozes poéticas mais representativas da Escócia hoje, e também
mostra as influencias da poeta-tradutora por traz da
interpretação precisa de cada linha no livro. Marcante pela
pertinência e pelo ineditismo em terras brasileiras, Ovelha
Negra é uma antologia que evolui num travelling pelos montes e
pelos vales escoceses, através de uma câmera apurada e atenta
a cada detalhe, a cada ovelha desgarrada que busca
identificação, a seu modo, com o resto do rebanho.
*
Donny Correia,
27, paulista. É poeta e tradutor. Atualmente faz graduação
em Letras - tradução na Unibero. Prepara-se para lançar seu
segundo livro de poemas em 2008 e tem pesquisado a interação
entre imagem e poesia no cinema experimental. É coordenador
cultural da Casa das Rosas - Espaço Haroldo de Campos de Poesia
e Literatura.
*
Leia
também um ensaio
do autor sobre IMP, livro de Thiago Ponce de Moraes
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