ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

MIRAR A IMAGEM: CAMINHAR ENTRE A TENTAÇÃO E O DESERTO.

ALGUNS MOVIMENTOS DE ESCRITA AO LER CORAL BRACHO.

 

Eduardo Jorge

 

 

Andar por um lugar desertado, pelo monocromático em uma história que começa por um personagem (realmente será necessário um personagem?). É assim que o pensador francês contemporâneo Georges Didi-Huberman inicia um ensaio chamado L’homme qui marchait dans la couleur (2005). Da mesma maneira é o que se torna possível de se imaginar os movimentos de escrita pictórica da poeta mexicana Coral Bracho. Não pelo apenas pelo lugar desertado, pelo monocromático, mas por uma imagem que fica de uma poesia que caminha por lugares desertados (e a poesia também como um lugar desertado). Aqui o tempo, um fio de tempo pelo verbo que se faz imagem em Ese espacio, ese jardín (2003). E, para trazer novamente o pensamento de Georges Didi-Huberman, quando ele assinala que o artista é um inventor de lugares, o artista dá carne a espaços improváveis, impossíveis ou impensáveis. É assim que surge o desvio do desertado. Coral Bracho, como se caminhasse pelo deserto, cria em um livro-poema texturas, espacialidades e imagens fulgurantes cujo rastro está apenas no odor da morte, este por sua vez, potente e erótico. Como em um eco, a poeta articula o que apontou Deleuze e Guattari: “Não há diferença entre aquilo de que um livro fala e a maneira como é feito”1, transpondo-o sua escrita ao limite do objeto, mas um objeto de contorno móvel, desenhado com linhas de fuga e explodindo em linhas de força. 

As imagens fulgurantes da poesia de Coral Bracho, assim como a fotografia, têm como matéria a própria luz. Por isso o poema, na potência de sua leitura, como a luz natural, se esvai, em tempo e espaço inseparáveis. Nessa leitura, é interessante configurar a própria sugestão de um início, um jardim como uma configuração espaço-temporal onde as cores possuem uma morte visível, um tempo de vida limitado.  

Do erotismo é possível dizer que ele é a aprovação da vida até na morte. É assim que Georges Bataille inicia a introdução do seu livro O erotismo. Ou como se pode ler em um fragmento de Coral Bracho: “Porque la muerte tiene, en el torneado corazón/ de la vida/ encajados sus vértices.”2 Então, parece que mesmo em torno do cheiro de morte vindo das flores, cujos vértices estão no coração da vida e também pelo olor de musgo que nos permite lembrar que o caminho pelo deserto é cheio de imagens, ou de modo mais específico, cheio de tentações. Assim, o que é a imagem senão a tentação? E o que é a imagem, além do deserto, senão uma miragem. A miragem como potência e como palavra tem muito a ser explorada. Pode ser o próprio esvaziamento do ato “mirar” – que aqui a ação-hispânica mirar se sobressai à ação-portuguesa-brasileira olhar, pois há uma objetividade, uma atenção maior. Por outro lado, a insistência de mirar também ilude. A imagem desaparece na iminência do toque. Ou vindo como uma tentação, contrai o pensamento. Põe a santidade à prova. A imagem tenta. Um dos estatutos mais presentes da imagem é sua capacidade de tentar. E boa parte de homens que seguiram para a solidão do deserto, que desertaram a vida mundana, em busca da purificação tiveram como desafio enfrentar essas imagens-tentação.

É nesse ponto que o poema, em sua potência de imagem, tenta. As imagens do poema tentam. É nessa tentação que Coral Bracho nos tenta com aparições como as de personagens (personagens?) de seu poema como a raposa, o jaguar, o bufão ubíquo ou crianças jorrando plenitude. Aparições não amarram simplesmente uma narrativa linear, mas surgem como imagens que tentam. Como a uma dança, Coral nos convida ao movimento de “mirar”:

 

Mira tu mano./ Mira la moneda girar;/ mira los gestos/ trabar su espacio, su secuencia. La sensación/ de su secuencia;/ mira el gesto que engendra/ la sensación,/ el cuerpo nítido que esboza,/ que articula; es um pájaro/ arqueado este vacío, es una línea enmarañada/ su interludio burlón. (BRACHO, 2003, p.12-13). 

 

  Cada imagem que surge na sequência tem um apelo maior que a anterior. Esta é uma lógica quando, dentro dos limites da tentação, imagem a imagem vão falhando. E como a proposta da imagem é tentar, cada uma vem mais forte que a outra, em camadas. E para pegar seu último verso do poema citado, as camadas de imagens que tentam possuem um interlúdio zombador. Pois se tentam é também para zombar desta marcha para o deserto, para zombar do ato de desertar. Zombar desse desapego da carne. De qualquer tentativa de purificação. 

Voltando ao jardim, estar diante de um é também estar diante de uma diversidade de tempos  – e sua imagem também nos impõe espaços – ou, como podemos ler essa questão a partir de Michel Foucault, em heterocronias e heterotopias. Esta imagem múltipla, repleta de “durações” não se situa mais dentro de um propósito efêmero, tal como afirmou Georges Didi-Huberman em Ante el tiempo (2008):

 

Ante una imagen – tan reciente, tan contemporánea como sea –, el pasado no cesa nunca de reconfigurarse, dado que esta imagen sólo deviene pensable en una construción de la memória, cuando no de la obsesión. En fin, ante una imagen, tenemos humildemente que reconocer lo seguiente: que propablemente ella nos sobreviverá, que ante ella somos el elemento frágil, el elemento de paso, y que ante nosotros ella es el elemento del futuro, el elemento de la duración. La imagen a menudo tiene más memória y más de porvenir que el ser que la mira (DIDI-HUBERMAN, 2008, p. 32).

 

Muito provável que um “interlúdio zombador” – diante da nossa duração –existente na imagem, exista porque julgamos a mais fulgaz das aparições. Por isso, a imagem na poesia de Coral Bracho combina com a fulgurância de Walter Benjamin, com sua dialética. Quando se pensa, na verdade, a fragilidade da carne diante da imagem, o poema como portador destas imagens amplia sua ubiqüidade bufa, zomba como imagem qualquer ensaio de permanência que a literatura e as artes estabelecem como uma miragem ao artista.

Importante também ressaltar que a aparição vai além da aparência. Vai além do real. A aparição aqui exige cautela. Talvez de natureza membranosa e tensa ela se valha da imagem e da fulguração para se manter em um plano imanente, desta forma, exigindo miradas, mesmo dos que querem desviar o olhar. Pois, ainda Didi-Huberman, em Ante el tiempo nos diz que se pede muito pouco a imagem ao reduzi-la a uma aparência, se pede muito quando se busca nela o real.3

O poema Ese espacio, ese jardín, publicado em 2003 no México, é tão real quanto qualquer outra coisa. Coral Bracho deu carne, deu lugar a ele:

 

En el tiempo que se urde y se recorre.Todo traba/su gozne; silba/ el bufón/ su acaecer./ Silba en el bosque/ su abrasivo deleite, su irisado/ lugar. – Silba su gozo// inextricable (BRACHO, 2003, p. 13).

 

Coral Bracho ensaia no poema Ese espacio, ese jardín uma infância da morte. Aliás, a morte engatinha entre os móveis: “La muerte,/ a gatas entre los muebles,/ interpone sus prelúdios:/ las caobas rollizas.4 Ou próxima dos brinquedos: “ – Sobre la cama los juguetes. La llave//La muerte/ es el lugar que se tiende en este objeto compacto/ y delicado”.5Ela canta, ainda, suavemente na porta do pátio sob o silêncio dos limoeiros e: “La muerte,/ como un laurel, bebe los ecos de las casas.6 A morte segue leve pelo poema, longe de um ápice dramático. Ela segue como imagem, brincando. Ou arriscando, como uma imagem-tentação.

Coral Bracho, com o poema, parece duvidar da matéria das coisas e põe em dúvida também em ese espacio, ese jardín, a matéria das personagens (personagens?) do poema. As formas da vida, dentro do poema, não são formas formadas, aliás, até duvidam da forma e mesmo do que Heidegger afirmou do animal (pobre de mundo), da pedra (sem mundo) e do homem (formador de mundo). Por contágio, personagem, animal, objeto, na aparição em si se confundem, misturando-se à matéria que torna fundamental a imanência de cada um deles: a luz. Nesta confusão construída como linguagem, os rastros são igualmente importantes. Como se houvesse uma modulação do olhar (interferência da poeta) para com o ritmo dos mínimos deslocamentos, incluindo o deslocamento da luz sobre o imóvel.

É por isso que a matéria de Coral Bracho é informe. O informe na acepção de Bataille:

 

Um dicionário começaria na altura em que deixasse de dar o sentido das palavras para se ocupar das suas tarefas. Deste modo, informe não é só um adjetivo com determinado sentido mas um termo que serve para desclassificar e em geral exige que todas as coisas tenham a sua forma. O que ele designa em nenhum sentido possui direitos, em todo o lado é esmagado como uma aranha ou um verme. Na verdade, para os homens acadêmicos ficarem contentes seria necessário que o universo tomasse forma. A filosofia, toda ela, não tem outro objectivo: trata-se de dar uma sobrecasaca ao que existe, uma sobrecasaca matemática. Pelo contrário, afirmar que o universo não parece com nada, e mais não é do que informe, equivale a dizer que o universo é qualquer coisa como uma aranha ou um escarro (BATAILLE, 1994, p. 99).

 

Coral corrobora para este informe na medida em que trabalha com um desenho em seu poema e faz algo sempre móvel das linhas desse desenho. Como se, ao desenhar uma paisagem, as linhas tencionadas pela própria terra fossem abertas, soltas, desmanchando contorno e forma, sua sobrecasaca matemática para pegar um termo de Bataille que conforma o olhar: Una línea se adentra/ con su rojo averbal/ en los contornos del paisaje./ Los ocres se abren; la interrogan.7

O que consegue Coral Bracho com este desenho? Diminuir a dimensão do trágico? Mas ao percorrer todo o poema e aqui visão e leitura se articulam continuamente, pois ese espacio, ese jardín é um poema haptico, entrelaçando toque e olhar. A dimensão do trágico não fica concentrada em um ponto específico. Na verdade, talvez a poeta nos espalhe esse trágico em todo o poema e, junto a ele, uma alegria em cores e texturas, pois a morte também está nesta alegria. Ela engatinha ao redor de tudo o que tem vida, para pegar um termo caro a Coral. Assim, o pathos presente em todo o livro não se separa do maravilhamento da passagem fulgurante das imagens, texturas presentes ao redor e no movimento de nosso corpo. O exercício de convivência com a perda é algo diário, com dor e ao mesmo tempo, alegria, pelo sentimento diante do inevitável. É exatamente aqui que dor e desenho de linhas móveis que Coral Bracho nos apresenta esta imagem: ¿Y qué de ese dolor sin fondo, / de ese mar ya vaciado, negro/ entre lo negro sin bordes? Algo fictício/ tiembla, se burla dentro.8

É por isso que ese espacio, ese jardín é um poema onde o nada importa. Coral Bracho revela uma potência do vazio. E seus adornos cercados de miragens que nos tentam. As imagens tentam, esvaziam seu conteúdo. O nada se sobressai porque é inevitável. Porque é de uma potência que nenhum excesso de preenchimento (em camadas) suplanta. Porque camada a camada vai caindo. Até que se descasca esse nada. E, por intermédio de um não-saber contido na superfície das páginas de seu livro, Coral compõe assim uma espécie de partitura para despedidas ou deserções cheia de encantos, sedução e ludicidade.

 

Pequena nota para situar Coral Bracho no Brasil.

 

No Brasil, a poeta mexicana Coral Bracho (1951) tem uma antologia publicada pela editora Mirabilia com tradução de Josely Vianna Baptista, Rastros de Luz9 (2004). A poeta e tradutora Josely Vianna Baptista também foi responsável pela difusão dos poemas de Coral e é uma interlocutora criativa da poeta. No livro Musa Paradisíaca (2003) que reúne, além de um diálogo com a poesia contemporânea brasileira, alguns poetas da América Latina, Josely dedica um texto crítico sobre a poeta mexicana, de onde separamos este recorte:

 

“Não à toa, em vários de seus textos vemos nódulos verbais se espessando ao redor de um obsessivo referente fasciculado, como no poema, sem título, que começa com o verso “água de medusas...” e segue se multiplicando em volteios e ritornelos sobre signos aquosos, em torrente, circularmente, feito a ‘alma na lama’ de Walter Benjamin, enlevada aqui a “malvos paroxismos” (BAPTISTA, 2003, p. 448).

 

Já na apresentação do livro Rastros de luz, Adolfo Castañon precisa a poeta entre duas palavras:

 

Se fosse preciso isolar na poesia de Coral Bracho uma palavra geradora e matriz, esta – terra – seria uma; a outra seria água, com toda sua cauda fervilhante de vozes líquidas, aquáticas, ondulantes e, entre ambas as palavras, o território polposo dos centros evasivos, das bordas em que se dá a transfiguração reordenadora da luz no tempo e da voz do espaço. Assim, o enunciado se dá naturalmente como o curso líquido da voz pela rocha ignorada ou, antes, esquecida no já dito (CASTAÑON, 2004, p. 10).

 

E com apenas duas palavras (terra, água) Coral compõe possibilidades infinitas, desenhos móveis onde a linha não domestica a paisagem e, as bordas entre terra e água, passando por fulgurações, são de suma importância para a composição de uma poesia possível de tocar com os olhos, de “mirar”. Esse gesto pictórico não retira do poema seu pathos, mas também não o concentra em uma parte específica. Iguamente, o maravilhamento tão presente na vida cotidiana medieva e tão distanciado da experiência contemporânea é retomado de maneira anacrônica e, por isso seus poemas se sobressaem, porque transporta uma falta, uma necessidade de sobrevivência (para aludir uma leitura de Aby Warburg por Georges Didi-Huberman) de imagens que sempre estiveram presentes na vida do homem.

 

NOTAS


1 DELEUZE; GUATTARI, 2000, p. 11.

2 BRACHO, 2003, p. 12.

3 DIDI-HUBERMAN, 2008, p. 12.

4 BRACHO, 2003, p. 10.

5 Ibid.

6 Op. cit. p. 31.

7 Op. cit. p. 19.

8 Op. cit. p. 37.

9 A antologia reúne seus livros Peixes de pele fugaz (1977), O ser que vai morrer (1982) e terra de estranha ardente (1992). O livro ese espacio, ese jardin é do ano de 2003 e foi resultado de uma bolsa da Fundação John Simon Guggnheim (Estados Unidos).

 

 

Referências

BAPTISTA, Josely Vianna. Coral Bracho. In: BAPTISTA, Josely Vianna et FARIA, Francisco. Musa Paradisíaca. Antologia da página de cultura (1995-2000). Paraná, Mirabilia, 2003. p. 448-455.

BATAILLE, Georges. O erotismo. Trad. Antonio Carlos Viana. Porto Alegre: LP&M,  1987.

_____. A mutilação sacrificial e a orelha cortada de Van Gogh. Trad. Carlos Valente. Lisboa: Hiena, 1994.

BRACHO, Coral. Huellas de luz. México: Tercera Lecturas, Serie Mexicanas, 1994.

_____. La voluntad ambar. México: Era, 1998.

_____.Ese espacio, ese jardín. México: Era, 2003.

_____. Rastros de luz. trad. Josely Vianna Baptista. Paraná, São Paulo: Mirabilia, Olavobrás: 2004.

DIDI-HUBERMAN, Georges. L’homme que marchait dans la coleur. Paris: Les éditions de minuit, 2001.

_____. Ante el tiempo. Buenos Aires: Adriana Hidalgo, 2008.

DELEUZE, Gilles, GUATTARI, Felix. Mil platôs. Vol. 1. trad. Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa. São Paulo: Ed. 34, 2000.

 

*

 

Eduardo Jorge é escritor e mestrando em Estudos Literários (Teoria da Literatura) pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG.

*

 

retornar <<<

[ ZUNÁI- 2003 - 2009 ]