DISTÂNCIA
LÍQUIDA NOTURNA E SONORA
Eduardo Jorge
Há
um verso de Joaquim Cardozo que gostaria de destacar:
Escalaram a imensa distância líquida noturna e sonora.
Este verso, do Poema em vários sentidos, me foi entregue
em fotocópia por um outro poeta, Ruy Vasconcelos, um grande
leitor do Cardozo. Aliás, propriamente foi ele quem
me apresentou esse poeta que, antes, só conhecia de nome.
João Cabral de Melo Neto foi um dos poetas influenciados por
Joaquim Cardozo, o mesmo João que um dia disse: Depois,
a distância suprime/por completo todas as linhas. Epígrafe
situada no livro Distância, de Virna Teixeira.
Não
só cabe citar a referência a Cabral, como essa relação que
se aplica do livro de Virna, Distância líquida noturna
e sonora porque seu trabalho contém essa definição precisa,
ao mesmo tempo em que há um deslocamento sensitivo no decorrer
do livro. Antes, no livro Visita, essa distância semelha-se
a um típico estar de passagem, como o disse Manoel
Ricardo de Lima no prefácio: toda visita não deve, não
pode ficar, como tivesse que ir embora. Agora, há uma
tensão maior no que se compôs com delicadeza, pois há delicadezas
incompletas, gestos quase feitos, intenções, por isso, distância.
Como
se olha a distância? E como
tratar esse olhar? Virna compõe fotogramas, um still de
um filme, um contar stacatto percebendo que nessa distância
se tem paisagem e se retorna à intenção, o que poderia ser
feito e que fica a possibilidade, como em Porta-retrato:
contraídos os olhos/ como se olhasse/ a distância// através
da foto/ espaço entre terra e grama// palma de uma mão/ sobre
o dorso da outra// handbag, a estampa/ discreta memória.
E o que se abre entre a brecha da intenção e o feito é um
afastamento, porque a palavra quase dá margem para o que não
se tentou: (...) cartas nunca enviadas//diálogos imaginários
(silêncios), assim como: (...) de postais que não/ chegam
(...) evanesce a distância/ a cada aceno (fevereiro) ou (...)
e a fotografia/ sobre a mesa/ nunca enviada (...) aqui, onde
tudo/ termina (ausência).
Outra
possibilidade de distância, a ausência, o deserto onde o limite
do que pode existir ou não é muito tênue. Talvez seja essa
a validade do deserto, falir o conceito que se tem do real
e afirmá-lo apenas enquanto possibilidade. Na segunda parte
do livro, Entre paredes, há aproximações como o fragmento:
O que fazia, falta. A sala deserta. O/ piano tocado em silêncio.
Quando não/ havia ninguém, em casa.
A
casa parece flutuar em Distância, a casa aqui não como
unidade temática, mas como uma afirmação de passagem, ausência
e afastamento. E isso é o que corre de líquido no livro de
Virna, tal qual uma viagem marinha, de anotações em agenda,
de impressões e, mais uma vez: distância. Porque é um olhar
que não pára, que flui ao que se move, buscando o enquadramento:
o que se vê/ das margens, a/ rapidez das cenas (Tâmisa).
E
nesse pequeno recorte de leitura, falar da distância como
uma impessoalidade (e adjetivar essa impessoalidade, com a
devida licença de Cardozo, como noturna e sonora).
Noturna e sonora como a percepção de: Os vultos na pista de
dança. A música do/ [Depeche Mode. Impessoalidade que a possibilidade
de códigos também permitem, como na noite em uma boate os
corpos são arredores e o líquido aqui que os unem em arquipélago,
a batida da música. Virna é muito musical, não em termos de
rimas, mas de apresentar o melhor momento para uma visualidade
musical. E aqui, no livro, nas palavras de Adalberto Muller,
"Sua música soa mais pelo que não exprime, pelo que não diz:
uma mallarmaica musicienne du silence".
Por fim, uma outra distância,
a da impessoalidade na linguagem, que na verdade, esse pode
ser uma outra questão no livro de Virna Teixeira: algo tão íntimo
que se permite, pelo afeto, chegar ao quase e parar aí porque
há outros códigos entre pessoas que suprimem a distância.
*
Eduardo Jorge
nasceu em Fortaleza (CE) e edita a revista Gazua.
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de Virna Teixeira.
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