ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

LEIA COMO QUISER

 

Elaine Pauvolid

 

A obra de Luis Serguilha não dever ser lida nem como poesia, nem como ensaio, nem como testemunho. Algo aproximado do que seja pode ser traduzido pela palavra grito. Um grito contínuo, que não cessa.

 

Este grito é facilmente reconhecível e mencionado em diversos ensaios sobre o autor. A chave para isso talvez esteja no mistério que o incita. Sua obra, assim como o grito, não revela, apenas sinaliza, aponta a estranheza.

 

Algo deste fenômeno notou o estudioso português E. M. de Melo e Castro ao afirmar, num dos textos que produziu a respeito do autor, que:

 

É assim que as imagens se organizam numa aparente hipotaxe ou subordinação, gerando uma melopeia de características encantatórias, numa magia sonora  muito própria destes textos poéticos. Textos que, por isso mesmo, devem ser lidos em voz alta para serem devidamente fruídos.

Estamos assim, perante uma inesperada recuperação das origens orais da poesia, que nas repetições, não já apenas paralelísticas e rímicas, típicas do verso, mas sim estruturais e sintácticas ao modo da prosa, se reencontram consigo mesmas, como fenómeno genésico de comunicação e de encantamento, para além dos sentidos denotativos das palavras e, principalmente até para além dos vários sentidos conotativos e das metáforas.

 

Poderá até dizer-se que se trata de uma trans-semântica, o que nos autoriza a pensar numa “língua poética” diferente da língua pragmática da comunicação quotidiana, mas sim, talvez a forma de comunicação que remonta às origens da humanidade …

 

 

Para tentar dar conta de sua obra, mais que um ensaio, seria melhor a  cena do monolito do filme  “2001 - Uma odisséia no espaço” (Stanley Kubrik, 1968). O mistério, o confronto com  a diferença, o desconhecido, o espanto, o nascimento, tudo isso está contido na obra serguilhiana, tanto nos ensaios quanto nos poemas. E aproveitando que vivemos na era do hipertexto, se  esta leitura estiver sendo feita em um computador ligado a Internet, não custa rever a cena em: http://www.youtube.com/watch?v=ML1OZCHixR0. Certamente diz muito mais da obra que está sendo comentada do que qualquer tentativa de análise ou tradução em palavras.

 

O autor de Famalicão produziu até agora uma obra extensa em que se percebe o abandono paulatino de uma escrita linear, com sentidos explícitos e de um sujeito enunciador. Quanto mais recentes são seus textos mais se percebe o abandono da escrita convencional e a radicalização de uma poética caracterizada pela exploração do vocabulário, da disposição das palavras no papel, da variação no tamanho das letras e da utilização de sinais gráficos.

 

Antes de desenvolver a poética atual, seu trabalho passou pela prosa, onde já se vislumbrava o que viria. No livro Entre nós (2000), um narrador percebe uma tarde de sol e intercala esta percepção com jorros de imagens através de palavras com raras conjugações. Estas conjugações dominarão totalmente os livros posteriores, deixando de ser apenas cortes em uma narrativa delimitada no espaço e tempo. Além disso as conjugações de palavras tornar-se-ão cada vez mais extravagantes, a ponto de tornarem-se uma linguagem própria em que os significados originais das palavras pouco importarão. Aliás, este processo é radicalizado a tal ponto que leva o leitor mesmo a crer que estes significados jamais existiram ou tiveram qualquer funcionalidade. 

 

O livro Lorosae e boca de sândalo (2001) é um diferencial na obra de Serguilha. Apesar de ser totalmente distinto do que se seguirá, assim como em Entre nós, percebe-se germens da poética que solidificou posteriormente. Independente dos traços que já se alinhavavam, com a consciência o ou não do autor, ou do rumo que a poesia tomou, trata-se de um livro essencialmente lírico e totalmente dissonante do resto da obra. Parece que ali ainda resta uma intenção que se dirige ao leitor. Uma espécie de tentativa de aceno de um eu poético imaginário, antes deste cerrar a porta e partir para uma poética totalmente distante de uma tentativa de comunicação através de significados. Podemos dizer que entre todos é o que o mais se destaca do rumo que sua poética tomou. É intrigante porque ali uma poética  madura e de grande força imagética não permite que seja esquecido e  deixe de ser apontado como grande obra do autor. Entre outros momentos dignos de nota, selecionamos:

 

“são rostos de iodo nos impulsos das janelas alvoroçadas

                                                        Aflorando a sombra das lâmpadas

e os músculos navegam enviesados para prepararem a raiva do jorro

encoberto na elevação do solo

                                                        Os dedos percorrem os intervalos das

asas onde se refaz a irreverência dos poros”(p.15)

 

Ainda assim, já existe neste exemplar singulares conjugações de palavras e o vocabulário utilizado é bem  pouco comum. Isso se radicaliza nos livros mais recentes, assim como ocorre o abandono de um sujeito aparente. À medida que os anos passam e os livros se sucedem, fica cada vez mais difícil perceber um “eu” e as palavras tomam importância cada vez maior, não apenas como significantes carregando significados, mas como obejtos, que o autor dispõe como bem entende no papel. Tal como percebeu E. M. de Melo e Castro, que em outro texto a respeito do autor diz: “Trata-se portanto de um experimentalismo semântico que se realiza no texto através da utilização das palavras como objectos manipulados.”

 

Passear pelos significados das palavras e diversas imagens construídas, como a olhar um calidoscópio, pode ser uma forma de leitura, dentre muitas. Porém, o ritmo criado, através das conjugações das palavras, e em determinada altura, torna irrelevantes seus significados.

 

Outra forma de ler é perceber a disposição das palavras. Atento a isso, logo o leitor sensível perceberá uma ginástica ocular. Os olhos são capazes de fazer movimentos circulares, descendentes ou de zigue-zague espontaneamente. Este despertar para o automatismo dos olhos prega uma peça no fruidor,  ao mesmo tempo em que sinaliza para existência da materialidade do corpo para muito além dos significados das coisas. 

 

Também se pode ler escolhendo as palavras, montando seu próprio texto, seu próprio sentido. O poder da mancha no papel e a força da palavra como coisa viva ou como objeto móvel se evidenciam.

 

Leitura possível e que remonta à questão primeira deste texto, o grito, refere-se a tentativa do leitor de buscar sentido ou uma lógica que se repetiria até o fim. A falha deste intuito remete a um sem saída, a um vazio. É justamente este vazio que nos joga a uma ancestralidade, a uma certa organicidade que ele não cansa de repetir (ou de ressoar). O choque com o mistério, com o vazio criativo. A evocação do grito.

 

Há nos textos em questão uma repetição. Sempre remetem a mesma questão, a da origem, a do espanto, a da criação. Lê-se toda obra, lê-se apenas uma. Esta repetição não é apenas a evocação do que rotineiramente se diz dos bons poetas, cuja obra inteira seria a história de um poema só.

 

A repetição neste caso é bem mais material. Os textos, ao serem lidos, evocam trabalhos anteriores, produzindo entre ele um eco, uma ressonância. Ao lermos uma seqüência de livros do autor, entramos numa espécie de caixa sonora. E aqui voltamos ao grito primitivo. À guisa de analogia ou como metáfora,  este mesmo  som, a do grito primitivo, devido à repetição incansável remeteria ao “Om”, que, para algumas religiões, é a tradução da própria “voz” do universo, ou o  mais profundo silêncio. Neste caso em questão, o grito que não cessa.

 

A obra de Luis Serguilha segue à risca o que Umberto Eco denominou de obra aberta. Assim como toda obra de arte é aberta, no sentido de que o fruidor acaba por construí-la no momento mesmo que entra em contato com ela, os textos aqui comentados também carregam este aspecto. Além disso, se aproximam do que o ensaísta italiano coloca a respeito de obras que são abertas numa acepção mais palpável, como as obras musicais em que os compositores dão aos intérpretes várias formas possíveis de execução, ficando a cargo dele a combinatória.

 

O leitor pode e dever escolher como ler a obra de Luis Serguilha, principalmente as mais recentes. Não há manual de instruções, nenhuma indicação para que  o leitor disponha de como queira do material que tem em mãos. No entanto, apesar de isso não aparecer como instrução, é facilmente perceptível ao leitor sensível. Talvez para facilitar a vida daqueles mais carentes de definições, os livros de Luis Serguilha, devessem trazer uma única indicação: leia como quiser. Acrescente-se a isso, que a obra do autor de Famalicão vem nos lembrar que essencialmente toda leitura deve ser feita assim, ou melhor toda relação com a arte deve partir, sobretudo de uma atividade consciente do fruidor em fazer da obra que tem a frente o que bem ou mal entenda.

 

Rio de Janeiro, março de 2011.

 

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