ZUNÁI
- Revista de poesia & debates
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JORGE LUIS
BORGES:
ENIGMAS
E LABIRINTOS LITERÁRIOS
Elo Cunha
"Sem
dúvidas, um dos grandes méritos de sua expressão literária é ter
incorporado o leitor na obra. Autor, obra e leitor convivem em permanente
metamorfose, possibilitando que cada texto, em face de diferentes
leitores, adote diferentes versões, transformando nesse processo
o próprio autor".
Alejandro Vaccaro
O
sistema de funcionamento de toda língua pode se resumir na identificação
de signos, significantes e significados. Sendo este processo tanto
exterior como interior ao próprio homem, pois este faz uso da linguagem
- e seu código: a língua. Assim, este sistema permite ao homem transformar
conhecimento abstrato em reflexão; permitindo-lhe conceber uma representação
qualquer, abstrata ou intuitiva, racional ou empírica.
Essa
capacidade de representação inata ao ser humano tem entre seus expoentes
a linguagem e, por conseqüência, a literatura. É por meio desta
que pode subverter a lógica da linguagem, "trapacear com a língua,
trapacear a língua. Essa trapaça salutar, essa esquiva, esse logro
magnífico que permite ouvir a língua fora do poder, no esplendor
de uma revolução permanente da linguagem".
[1]
Pois a literatura permite a substituição da "realidade",
enquanto referente da literatura, pela própria literatura.
Esta
é a questão: uma simples letra - o nosso Aleph borgiano - pode carregar
o potencial de representar todo o universo, percebido através dos
olhos humanos - e de que outra forma poderia ser? - e
vai além... poderia representar o ficcional, o não dito, o dito,
o passado, a representação do futuro, do presente, do espaço e da
relação entre o espaço e o tempo. Segundo Compagnon, "a teoria
da literatura instituiu a autonomia da literatura em relação à realidade,
ao mundo, e defendeu a tese do primado da forma sobre o fundo, da
expressão sobre o conteúdo, do significante sobre o significado."
[2]
Tomemos
a idéia primeira de que "a relação lingüística primária não estabeleça
mais uma relação entre a palavra e a coisa, ou o signo e o referente,
o texto e o mundo, mas entre um signo e outro signo, um texto e
outro texto."
[3]
. Assim, tudo o que resta a verificar são as relações
de comparação e de compartilhamento de signos, idéias, conceitos
e textos. Tratemos de intertextualidade como referência explícita
que substitui o lugar da realidade. "A intertextualidade está pois
calçada naquilo que Bakhtin chama de dialogismo, isto é, nas relações
que todo o enunciado mantém com os outros enunciados"
[4]
.
Assim
como todos os textos seriam compartilhados e sofreriam um processo
de eterna referenciação, como Borges nos sugere na "Biblioteca de
Babel", o mesmo aconteceria com as idéias. Se podemos chegar a um
só exemplar - livro - que possa conter todo o conhecimento compartilhado
pela humanidade, assim também poderíamos fazer com as idéias e com
a própria concepção de homem. Podendo um só homem ser representante
de toda uma humanidade.
Para
Borges, a literatura parece ser única e os autores seriam apenas
traços distintivos que permitem às idéias meterializarem-se de modo
diferenciado, retornando sempre a uma concepção pré-existente, imemorável,
em um eterno regressus ad infinitum, em busca de um início
onde toda a arte é compartilhada:
Para
mentes clássicas, a literatura é o essencial, não os indivíduos.
George Moore e James Joyce incorporaram, em sua páginas, páginas
de sentenças alheias; Oscar Wilde costumava dar seus argumentos
de presente para que outros os executassem; ambas as condutas, embora
superficialmente opostas, podem evidenciar um mesmo sentido da arte,
Um sentido ecumênico, impessoal...
[5]
Essa
passagem, retirada do conto "A flor de Coleridge", nos remete à
concepção borgiana de uma literatura universal, na qual os argumentos
estariam disponíveis para qualquer um que queira trabalhá-los. Apresentando
ainda, ao final do conto, a idéia de que a literatura não está em
um homem, ou autor, mas no conjunto de autores que alimentam a capacidade
imaginativa de seu leitor.
A
escrita de Borges é permeada de elementos que nos levam a perceber
a universalidade das idéias. As representações ausentes de significados
absolutos e a escrita labiríntica fazem de sua obra uma fonte constante
de novas observações. A estratégia de escrita de atribuir a autoria
de seus textos a outros autores envolve o leitor numa teia, gerando
um simulacro de realidade. Não se trata de imitação ou ilusão sobre
o mundo real, mas uma ilusão do discurso verdadeiro sobre o mundo
real ou sobre o próprio discurso.
Podemos
perceber, na escrita de Borges, o potencial da palavra, assim como
o poder de sua menor unidade: a letra. O universo maravilhoso da
literatura borgiana nos faz, por diversas vezes, repensar esta idéia:
a de que uma simples palavra, ou um simples conceito, pode ser superior
à concepção de tempo e espaço, ou mesmo à idéia de materialidade.
A Biblioteca de Babel, detentora de todo o conhecimento humano,
repleta de segredos, obscuridades e labirintos de conhecimento,
pode nos ser apresentada em um único volume, ou mesmo em uma única
letra: o Aleph. Assim como a diversidade humana, todos os tipos
ou situações de suas vivências podem ser representados pela existência
de um único indivíduo. Para Canto,
Borges
insistiu em quase todos os seus contos, em seus poemas, até em algumas
entrevistas deturpadas - como são a maioria - que um homem é "todos
os homens". Ou seja, o homem encerra em si mesmo todas as possibilidades:
o homem é o microcosmo.
[6]
O
escritor argentino joga com suas tortuosas citações, seus caminhos
bifurcados e imensos labirintos. Para ele, a palavra é conceito,
símbolo e representação latentes à figura humana. As idéias são
universais, atemporais; canalizadas, porém, pela capacidade de interpretação
de cada indivíduo. Essa concepção nos leva à possibilidade de subverter
os conceitos de plágio e de autoria e a ingressar no poderoso efeito
lúdico desse autor.
Dos
contos escritos por Borges dois destacam-se no que diz respeito
ao processo da escrita e da construção da própria ficção, correlacionando
autor, leitor e obra: "Pierre de Menard, autor do Quixote"
e "A Biblioteca de Babel". O que nos leva à necessidade de realizar
um breve comentário sobre ambos.
O
conto "Pierre Menard, autor do Quixote" nos apresenta um questionamento
acerca da questão da autoria, refletindo sobre a importância do
autor e do compartilhamento de idéias, explicitando a existência
de lacunas diversas a serem preenchidas no sistema de interpretações
que é a literatura. Esse conto nos remete às mais profundas interligações
e relações estabelecidas entre autor e leitor, realçando a possibilidade
desse leitor vir a tornar-se, também, autor, o que nos levaria a
uma estrutura cíclica. Nesse conto um segundo escritor propõe-se
a reescrever a obra de Miguel de Cervantes, Dom Quixote,
trezentos anos depois do autor original. E realmente o faz. Mas
o conflito do conto apresenta-se: "O texto de Cervantes e o de Menard
são verbalmente idênticos, mas o segundo é quase infinitamente mais
rico. (Mais ambíguo, dirão seus detratores; mas a ambigüidade é
uma riqueza)"
[7]
. Santiago nos elucida esta comparação entre esses autores
de uma mesma obra:
No projeto
de Pierre Menard o modelo e o decalque são idênticos, tornando
a sua versão do Don Quijote diferente das suas produções anteriores
onde sempre acrescentava semelhanças. O narrador do conto - e esta
seria a razão de sua escrita - nos propõe então uma nova catalogação
da obra global de Pierre de Menard, sob duas rubricas: levar-se-iam
em conta o seu aspecto visível, e por outro lado o seu aspecto invisível.
Este seria determinante da sua obra interminablemente heróica, da
sua obra "impar".
[8]
Segundo
Monegal, nosso narrador borgiano reflete que "é lícito ver no Quixote
'final' uma espécie de palimpsesto
[9]
, no qual devem transluzir os rastros - tênues mas não
indecifráveis - da 'prévia' escrita de nosso amigo"
[10]
- Pierre Menard. Como se, na verdade, abaixo dos
originais de Cervantes estivessem os rascunhos de Menard. Como se
fosse possível ao primeiro ter acesso ao texto do segundo, apesar
dos séculos que os separam. Como se todo homem fosse capaz de todas
as idéias, num contexto de universalidade que nos é também apresentado
em outro conto presente em Ficções: "A Biblioteca de Babel".
Nesse
conto o escritor nos apresenta uma gigantesca biblioteca que promete
ser a representação do próprio universo, onde estão inseridos livros
de tamanhos, formatos e quantidades de letras exatos, iguais e pré-determinados,
onde repetem-se, aleatoriamente, os vinte e cinco signos gráficos
que compõem a escrita humana - o ponto, a virgula, o espaço e as
vinte e duas letras do alfabeto - , e que, se combinados,
podem gerar significados distintos que nos permitam a representação
de qualquer conceito ou objeto em qualquer idioma.
Não que
a biblioteca não tenha previsto e que nalguma de suas línguas secretas
não contenham um terrível sentido. Ninguém pode articular uma sílaba
que não esteja cheia de ternura e de temores; que não seja nalguma
dessas linguagens o nome poderoso de um deus. Falar é incorrer em
tautologias.
[11]
A
idealização máxima para a existência dessa biblioteca seria a figura
de um livro que abarcasse a versão de todos os livros em todas as
línguas, as intercalações de cada livro em todos os livros. Idéia
muito próxima do pensamento de Foucault:
O livro
não é mais o espaço onde a palavra adquire figura (figuras de estilo,
de retórica e de linguagem), mas o lugar onde os livros são retomados
e consumidos: lugar sem lugar, pois abriga todos os livros passados
neste impossível 'volume', que vem colocar seu murmúrio entre tantos
outros - após todos os outros, antes de todos os outros.
[12]
Essa
mesma concepção nos demonstraria como a vastidão dessa biblioteca
pode ser traduzida; como poderia ser compilada em um só volume,
onde cada folha se desdobrasse em outra e essa em outra e se torna
um grande livro circular de lombada contínua, o catálogo dos catálogos,
a expressão idealizada do próprio criador da biblioteca, a manifestação
máxima da existência de um criador, e, para Borges, o bibliotecário
que o consultasse seria análogo a um deus.
Borges
nos demonstra, por meio da metáfora da biblioteca, a característica
unificante da própria literatura. Onde os escritores seriam apenas
bibliotecários a consultar volumes e a construir situações possíveis
de enredos já universalizados. Como se a idéia de plágio ou cópia
apenas nos fizesse compreender a concepção de realidade compartilhada,
e porque não, de literatura compartilhada. Na qual o autor seria
apenas o catalisador desses milhões de eventos ficcionais ou apenas
mais um barqueiro na imensidão de um oceano literário. Temos que,
para Borges, o mundo pode ser representado por uma "combinatória
finita"
[13]
, mas que a literatura e sua realização maior, a recepção
desta pelo leitor, pode possuir significados infinitos.
Para
Borges o sujeito é múltiplo, o ser é múltiplo, o autor é múltiplo
enquanto desdobra-se no "outro": o narrador, ou o personagem em
que se metamorfoseia. Essa multiplicidade, esse compartilhamento
de informações é que, paradoxalmente, faz com que se possa construir
o conceito de realidade compartilhada. Uma vez que o leitor, ao
compartilhar com o autor a construção da obra torna-se, também,
"um duplo inseparável e não antagônico, do autor. Tal qual o autor,
o leitor é ficção. O livro vira diálogo uma vez que os pares de
produção e recepção são complementares".
[14]
Ao
atribuir a autores falsos a autoria de seus textos, ao inserir-se
enquanto personagens de alguns destes ou quando copia abertamente
argumentos de outros escritores - até os cita ou insere como personagens
- Borges funda uma nova concepção de literatura. Como conseqüência,
estabelece uma nova interpretação para a concepção de autoria. Trata-se
de uma nova ficção, como ressalta Costa Lima:
Esta
ficção não remete, sequer como instância mediatizada, a formas de
existência, mas sim a um encaixe de ficções, livros dentro de livros,
comentários ficcionais a textos também ficcionais, onde figuras
muitas vezes reais, autores e amigos, remetem diálogos ficcionais
e relatos ficcionais fingem ser relatos do real.
[15]
Faz-se
necessária a percepção de uma literatura especular, que promova
uma dobra sobre si, refletindo e buscando a reflexão através do
receptor. Jorge Luis Borges escreve textos baseados em outros textos
e escritos por outras mãos. Se existe um grande labirinto em sua
literatura, é o labirinto das idéias. Seus caminhos bifurcados nos
fazem revolver a memória e acabam nos conduzindo a um só lugar:
o próprio texto borgiano. Lugar único, mas ambivalente, onde, juntos,
leitor e autor podem construir um significado também único e pessoal,
mas que possibilita ao labirinto, ou à malha de significação, anexar
mais um caminho possível, mais uma compreensão ímpar, que, somada
às outras muitas, possa encerrar-se nas prateleiras da Biblioteca
de Babel e na constituição de uma identidade universal.
Referências bibliográficas
VACCARO, Alejandro. Borges: uma biografia em imagens.
São Paulo: Planeta, 2006.
BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Ed. Cultrix, 1978.
BORGES, Jorge Luis. Obras Completas II. São Paulo: Editora
Globo, 1995
BORGES, Jorge Luis. Ficções. Rio de Janeiro: Ed Globo.
1986
CANTO, Estela. Borges à contraluz. São Paulo: Iluminuras,
1991
COMPAGNON,
Antoine. O demônio da teoria: literatura e senso comum.
Trad. Cleonice Paes Barreto Mourão. Belo Horizonte: Ed UFMG, 1999.
FOUCAULT,
Michel. Estética: Literatura e Pintura, Música e Cinema.
Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001.
LIMA,
Luis Costa. Mimesis
e modernidade: formas
das sombras. Rio de Janeiro: Edições Graal Ltda, 1980.
MONEGAL, Emir Rodriguez. Borges: uma poética da Leitura.
São Paulo: Perspectica, 1980.
SEDLMAYER,
Sabrina. Quanto a mim, eu: subjetividade literária em Pessoa
e Borges. 2001. Tese (Doutorado em Literatura) - Faculdade de
Letras da UFMG, Belo Horizonte.
SANTIAGO,
Silviano. Uma Literatura nos Trópicos: Ensaios sobre dependência
cultural. Perspectiva: São Paulo, 1978.
Elo
Cunha
é mestrando em literatura na UFMG. E-mail para contato:
eloufmg@yahoo.com.br
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