ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

SIMULTÂNEA E MÚLTIPLA:

POESIA CONTEMPORÂNEA DE SEMPRE

 

 

Emerson Sitta

 

A poesia sofreu diversas transformações na passagem do século XIX para o XX. Algumas parecem que existiam instintivamente, talvez. Entretanto, teorizá-las e colocá-las em prática foi uma conquista que inegavelmente abriu novas possibilidades de leitura e, especialmente, novas experimentações poéticas.

 

Para refletirmos sobre essa condição, do período e do poema, discutiremos dois ensaios: o primeiro, de Julio Cortázar (2006), Para uma poética e o segundo, de Octavio Paz (2006), Signos em Rotação.

 

Em face das transformações do mundo, a poesia passou a operar uma relação direta com os acontecimentos de forma simultânea e múltipla. Esta ideia a ser perseguida tem origem fundamentalmente na imagem que, segundo Cortázar, permite ao poeta experimentar o conhecimento daquilo que, muitas vezes, nunca terá contato direto em sua vida.

 

Sem duvidar ou hesitar, o poeta se aventura em situações provocadas pela capacidade sensitiva de ver e perceber o mundo. A metáfora funciona como um meio de transporte direto e sem volta para o que pensa, o que quer e deseja o poeta. Todavia esta “viagem” apenas acontece no momento de domínio lógico da linguagem, pois a metáfora é uma tomada de poder feita pelo homem. Logo eliminando o “como”, partícula que caracteriza uma comparação, adentramos instantaneamente na temática em questão.

 

Cortázar (2006, p. 95) cita um exemplo: “O cervo é um vento escuro...”. Observa que, ao retirarmos a expressão “como”, promovemos uma participação naquilo de que se fala. Essa condição dá ao poeta a possibilidade de “ser ou vir a ser” aquilo de que fala, no caso o cervo. Esse desenvolvimento é brilhantemente concluído com uma citação de John Keats: “ Se um pardal vem à minha janela, participo da existência dele e bico os grãozinhos de areia...”

A simultaneidade estaria aí contida, entretanto a multiplicidade ainda não estaria completa. Adiante, Cortázar afirma, que para exteriorizar a multiplicidade, o que nos tornaria mais ricos de ser, deveríamos além de cervo, tentarmos ingressar no vento escuro. Assim nos multiplicaríamos diversas vezes, exercitando uma vontade comum do próprio homem.

 

Num poema de Juan Ramón, Cortázar (2006, p. 97) manifesta a relação de essencialidade, quando o poeta assegura ter vivenciado aquilo que fala poeticamente e não como uma empresa mágica:

 

... Que mi palavra sea

La cosa misma,

Creada por mi alma nuevamente.

 

“Criada” poeticamente; isto é, “essencializada”. E a palavra – angustiosa necessidade do poeta – não vale já como signo tradutor dessa essência, mas como portadora do que afinal é a própria coisa na sua forma, sua idéia, seu estado mais puro e alto.

 

Essa palavra essencializada nos remete, no Brasil, diretamente ao conceito trabalhado por João Cabral de palavra substantiva e, consequentemente, ao de palavra coisa dos concretos. Para assegurar ainda mais essas relações, vejamos outra citação de Cortázar (2000, p. 98):

 

Cantar a coisa (...) é unir-se, no ato poético, a qualidades ontológicas que não são as do homem, qualidades essas que o homem, descobridor maravilhado, anseia atingir e ser na fusão do poema, que o amalgama ao objeto cantado, cedendo-lhe a entidade deste e enriquecendo-o. Porque o “outro” é, na verdade, aquilo que lhe pode dar graus do ser alheios à específica condição humana.

 

O conhecimento que a desenvoltura poética proporciona ao poeta é infinitamente superior a qualquer condição natural e real. Ao experimentar ser o que não pode, o homem atinge a simultaneidade, logo continua sendo o que é mais o que quer ser. Consequentemente, experimenta a multiplicidade, pois alimenta-se do outro, saboreia um universo irreal, aumentando sua capacidade natural de análise e relações.

 

Ser algo, ou (...) cantar o ser de alguma coisa, supõe conhecimento e, na esfera ontológica em que nos movemos, posse. (CORTÁZAR, 2000, p. 99)

                     

Poesia é vontade de posse. O poeta agrega ao seu ser as essências do que canta: canta por isso e para isso. (...) Não quer as coisas: quer a essência delas. (CORTÁZAR, 2000, p. 101)

 

Essas propriedades, “simultaneidade e multiplicidade”, se correspondem diretamente com a poesia concreta, pois seus recursos de linguagem, além de serem elementos formais, são simbólicos.

 

 Em Signos em Rotação, Octavio Paz (2006) faz algumas observações que dialogam e sustentam as afirmações de Cortázar. Na primeira linha de seu ensaio, Paz (2006, p. 95) afirma: “A história da poesia moderna é a de um descomedimento”. Sem dúvida, a construção poética modernista é revolucionária, não por apenas explorar sentidos e objetos que julgava nunca antes vistos ou percebidos, mas por ser ou por querer ser uma manifestação concreta da linguagem.

 

Essa condição pode ser percebida, por exemplo, no poema abaixo de Augusto de Campos, do livro despoesia (1994):

 

 

O poema é síntese de uma declaração de amor, logo que se intitula “ly”, certamente dedicado a sua esposa Lygia. Sem sentimentalismo, no entanto, aborda aspectos verbais, vocais e visuais ao mesmo tempo.

 

A forma do poema nos faz tropeçar. Não conseguimos ler com naturalidade, não existe linearidade. Temos que operar ou aprender a operar uma leitura que nos obriga a ver o verbo, declamar suas partes, reajuntá-las e em seguida organizar um entendimento que explique ou justifique a forma do poema.

 

Uma tradução possível para os dois versos - “eu e você / uma só pessoa” – revela que os versos estão no poema como um ideograma. Existe uma comunicação entre o poema e o leitor que não é apenas verbal, mas visual. A disposição dos versos materializa o encontro entre duas pessoas. Temos duas colunas de letras, cada uma das colunas representa uma pessoa, isolado e frente a frente, exatamente no centro da página.

 

Sintaticamente, as letras estão ilhadas, rompendo qualquer possibilidade de proposição. Abusando do espaço, o entendimento do poema se realiza apenas quando a leitura é feita de forma simultânea, respeitando o verbal e o visual. Assim, a multiplicidade se registra logo que a inventividade do poema é essencializada, quando não juntamos mais as letras para construir uma discursividade, mas quando nos vemos amalgamados no centro do poema nas letras “m” e “a”, ou seja, quando experimentamos ser um deles.

 

A palavra concreta, se assim podemos dizer já que o livro despoesia não pertence à fase ortodoxa do Concretismo, são as letras “m” e “a”. Estão nelas essencializadas o centro, o encontro, o laço, talvez o beijo. O posicionamento delas também favorece essa leitura, estão exatamente entre quatro letras para cima e quatro para baixo.

 

Assim, o homem moderno ou mesmo o poeta moderno não abandonou os sentimentos de sua natureza, mas procurou entender e absorver o que pouco compreende por meio da linguagem. Ao experimentar novas formas de registro, o poeta despertou ou provocou a consciência humana, materializando no poema a confusão racional da substância, da coisa e do que ele, homem, é, em um signo, em um signo em rotação ininterrupta.

 

No poema de Augusto de Campos, a simultaneidade está ligada ao que compreendemos do mundo organizado, sintaticamente organizado, o que de fato somos, e a multiplicidade ao que pensamos do mundo de forma desorganizada, numa nova ordem sintática, o que de fato queremos ser. Exercitando a leitura simultânea promovemos a multiplicação, ou seja, nos tornamos outros. Experimentamos o outro, nos alimentamos dele, adquirindo conhecimento e novos encantos.

 

Esse processo poético, basicamente uma técnica, é resultado direto de um projeto de poesia que visa constantemente à palavra essencializada ou a própria coisa de que se diz. Uma citação de Paz (2006, p. 108) que ilumina essa atitude é esta:

 

Ser um mesmo é condenar-se a mutilação pois o homem é apetite perpétuo de ser outro.

 

É preciso conceber que a técnica colaborou criteriosamente para o desenvolvimento formal da poesia contemporânea. Antes, a verdade sobre a poesia parecia distante, pois estava repleta de histórias misteriosas e fantásticas. No presente momento, a poesia ainda vive carente de explicações definitivas, no entanto apresenta um compromisso mais objetivo do que é e do que quer ser.

 

Para esses poetas que dominam uma técnica, que se preocuparam em desenvolver um projeto de poesia, a constante angústia e a confusão ainda permanecem. Na realidade elas são reativadas a cada nova tentativa de adequação do verso ao projeto poético desse ou daquele poeta. O fato é que a poesia artificial, aquela que apresenta um trabalho formal, como a de João Cabral e Augusto de Campos, poetas citados aqui, são prolongamentos da experiência. Evidentemente que ausente dela, ou seja, o poeta preocupa-se em colocar na expressão da linguagem o que sofreu para sentir e compreender. Portanto, a forma de um poema não é um exercício de destreza lingüística, mas sim um resultado de sua intenção: promover o enlace entre a consciência e a vida.

 

No poema de Augusto de Campos, “ly” essa verdade é pontual, pois o poema não se declama nem convida o leitor a declamá-lo. Entretanto, quando investigado e compreendido, sua conotação é lírica e expressivamente dolorosa.

 

Nesse ponto, fica clara a simultaneidade e a multiplicidade. A leitura de tudo, de qualquer ponto que possa ser desmascarado, e a experimentação de outras tantas possibilidades impossibilitadas realmente.

 

Em tempo, para concluir, vale uma última citação de Paz (2006, p. 110), longa, mas persuasiva.

 

Na dispersão de seus fragmentos... O poema não será esse espaço vibrante sobre o qual se projeta um punhado de signos como um ideograma que fosse provedor de significações? Espaço, projeção, ideograma: estas três palavras aludem a uma operação que consiste em desdobrar um lugar, um aqui, que receba e sustente uma escritura: fragmentos que se reagrupam e procuram constituir uma figura, um núcleo de significados. Ao imaginar o poema como uma configuração de signos sobre um espaço animado não penso na página do livro: penso nas Ilhas Açores vistas como um arquipélago de chamas numa noite de 1938, nas tendas negras dos nômades nos vales do Afeganistão, nos cogumelos dos pára-quedas suspensos sobre uma cidade adormecida, na pequena cratera de formigas vermelhas em algum pátio citadino, na lua que se multiplica e se anula e desaparece e reaparece sobre o seio gotejante da Índia após as monções. Constelações: ideogramas. Penso em uma música nunca ouvida, música para os olhos, uma música nunca vista. Penso em Um coup de dés.

 

 

BIBLIOGRAFIA

 

AGUILAR, Gonzalo. Poesia concreta brasileira: as vanguardas na encruzilhada modernista. São Paulo: Edusp, 2005

 

CAMARA, Rogério. Grafo-Sintaxe concreta: o projeto Noigrandes. Rio de Janeiro: Marca d’água Livraria Editora Ltda., 2000.

 

CAMPOS, Augusto de. VIVA VAIA Sâo Paulo: Ateliê Editorial, 2001

 

______. despoesia. São Paulo, Editora Perspectiva, 1994

 

______. NÃO POEMAS. São Paulo, Editora Perspectiva, 2003

CAMPOS, Augusto de; PIGNATARI, Décio; CAMPOS, Haroldo de. Teoria da Poesia Concreta. 3º ed. São Paulo: Brasiliense, 2006

 

CAMPOS, Augusto de. Verso Reverso Controverso. São Paulo. Editora Perspectiva,

 

______. Poesia antipoesia antropofagia. São Paulo: Cortez & Moraes, 1978

 

CORTÁZAR, Julio. Valise de Cronópios. 2º edição, São Paulo, Perspectiva. 2006

 

FRANCHETTI, Paulo. Alguns Aspectos da poesia concreta. São Paulo: Unicamp, 1992.

 

MELO NETO, João Cabral de – Obra Completa – Rio de Janeiro – Editora Nova Aguilar – 1994

 

PAZ, Octavio. Signos em rotação.  3º edição, São Paulo, Perspectiva, 2006

 

SUSSEKIND, Flora e GUIMARÃES, Júlio Castañon. (org). Sobre Augusto de Campos. Rio de Janeiro: 7 letras, 2004

 

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