DA MANCHA À PARTIDA: CORPUS SUCESSIVOS
DE LEITURAS E ESCRITA
Érica Zíngano
Há muitas formas de ler um livro. Há muitas formas de escrever um livro. Se percorro este 3o. livro de Danilo Bueno, Corpo sucessivo, insistindo em começar – repetindo, já de início, o sucessivo – pelo título, talvez seja apenas para sublinhar no corpo do livro e na escrita do corpo alguma continuidade, como escreve Roland Barthes: "L'écriture, c'est la main, c'est donc le corps: ses pulsions, ses contrôles, ses rythmes, ses pesées, ses glissements, ses complications, ses fuites". Assim, sublinhando seu título, lembro que há três acepções dicionarísticas para ler da qualidade do sucessivo: 1) relativo a sucessão, hereditário; 2) que vem depois, em seguida; 3) que se repete consecutivamente, consecutivo. Estas três possibilidades, simultaneamente, inscrevem-se no seu gesto de escrita, no corpo do livro, em seus poemas-corpus:
De hereditário, podemos ler o corpo do livro, seu livro-corpo, inscrito, não à toa, não de forma ingênua, entre duas "grandes" epígrafes – Ezra Pound e Haroldo de Campos: um livro herdeiro de uma modernidade que não passa longe, nem tardia – reflexões sobre um legado;
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Do em seguida, um gesto permanente, já que no corpo do livro não há divisórias, os poemas estão dispostos sucessivamente um após o outro, sem hierarquias nem datas que marcariam os seus tempos de (re)escritas – um corpus reunido ao longo de cinco anos de trabalho sucessivo;
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Do que se repete, consecutivamente, talvez como uma obsessão: as vozes de outros poetas, Wallace Stevens, Carlos Drummond de Andrade, Charles Baudelaire, Ruy Belo, dentre vários, absorvidas, apropriadas pelo gesto de uma escrita que insiste em (re)dizer corpo, pelo corpo, passagens, continuidades: poemas inscritos, incorporados do corpus da Literatura.
Se há algum estranhamento quando folheamos o corpo do livro, seu corpus de poemas, talvez seja porque, nas diversas formas experimentadas, como exercício de mão de verso, não há nenhuma que implique uma decisão, uma escolha, todas se inscrevem como possibilidades, em diferentes feituras: de dísticos a poemas em prosa, o corpo ensaia, em vocabulários que lembram um tempo já corrido longe – clarinetes, alaúdes, estrelas imemoriais, guirlandas de delírios, hercúleo, júbilo, cancionou –, para apenas dizer, como no poema "hino": "difícil escrever sobre isso. tudo com seu duplo, a velocidade apenas outra técnica. novas frases pelo mesmo pé de verso que o tempo cancionou// esquinas e vento noroeste. hoje as árvores quase saíram do chão. esquinas e horizontes de janelas. o piso manchado. esquinas e guinchos// algo assim não se deve escrever: hoje árvores que quase saíram do chão disseram vento aberto pelas janelas".
Felizmente há muitas formas de inscrever corpo, como relembra o poema "inscrição", poema a partir de Wallace Stevens, na sucessão deste grande corpus movente que é a Literatura, um corpus afetivo: "Poetry is a destructive force//Listen to my heartbeat". Também o poema "excertos" parece querer repetir o mesmo, quando a sucessão pode querer falar de tempo: "há muitas formas de dizer tempo: aquele muro, só, também. o depois de prestar atenção nas cores: lapso e cálculo habitam o mesmo instante. versos não são o corpo, mas rentes – pulmões e tensão hipnótica.// …//o livro na página certa. algumas espécies de som fogem à síntese; outras, solam as vísceras. pontos de dor podem desaparecer, se massageados. ninguém dorme até o fim. estar é uma questão em aberto.//…// última pálpebra viva. voltar a isto. relógios sempre atraem uma distância maior, – matei um pássaro, uma vez. não há mais certas idades. já não existo em alguns lugares. depois da palavra, às vezes, sobra pouco. como daqui, de onde leio:". Porque, junto ao corpo, no movimento do próprio corpo, mão verso poema escrita corpus, juntos, rentes, as formas do livro lêem-se, escrevem-se, continuam-se, sucessivamente.
Estas formas de inscrever sucessão não se querem como conclusões, longe disto, mesmo que haja dois poemas do corpus assim nomeados, são como pistas falsas, em meio ao frenético movimento de leitura: são apenas definições em desmesura. O livro-corpo, longe de concluir, recomeça: o último poema deste seleto corpus, escolhido e trabalhado a dedo, "1979", ao cifrar o ano de nascimento de Danilo, incorpora apenas uma possibilidade de fim-começo, "agora sim pode virar": o corpo, o livro, o leitor, o escritor. Agora sim o escritor leitor pode virar, tornar-se, continuar corpo escrita movências sucessivas de uma mesma mão que lê e (re)escreve.
Corpo sucessivo é um livro-corpo que parece não parar de falar de si mesmo, o tempo todo, marcando o seu gesto de escrita-leitura, como no poema "eis" e lembrando apenas que "não há qualquer certeza/ que a própria coisa possa estar aí/ mas é preciso insistir/ aceder à urgência/ da linha imaginária// […] uma incontornável pronúncia/ de si para si/ coagula/ faz do não-lugar/ mancha e partida". Do que fica da leitura do corpus da Literatura é a mancha e, para pensar um processo de escrita, partida, mesmo que este processo seja apenas como "algumas outras linhas", um esforço de escrever/inscrever/reescrever sucessivamente o legado recebido, escolhido a dedo, lido a dedo, um "esforço initerrupto/de devolver os ossos/ ao mundo". Essa partida-(re)começo, é como se fosse um a partir, "(como quem fica, não como quem parte)", porque nessa sucessão de corpus é "tudo escrito para amarrar seu pulso/ ao meu/ do surto sangüíneo ao hino do invisível/ o que ficou sem nenhum desígnio ambíguo –/ um último poema, algum adeus irredutível/ o espanto branco de tudo que existia/ mãos em concha para a cascata do vivido/ abrir-se só e íntimo ao óbvio abismo/ (o olvido é incisivo disse o Livro) eu digo" então, em eco, repetindo, já num a partir: há muitas formas de ler um livro, há muitas formas de escrever um livro.
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Érica Zíngano publicou a plaquete drobapura: a arte da meditação, editada pelo centro cultural Dragão do Mar; e poemas na Zunái e n'O casulo. Atualmente, faz mestrado em Literatura Portuguesa na Universidade de São Paulo.
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